Ficção e Poesia | Literatura


Duplo Revelado
Letícia Carvalho

YIN E YANG

junho de 2018

Edição: 20


Devo reconhecer que, muito a contragosto, minha viagem começa em Macau, ainda que até hoje meus familiares jurem de pés juntos que nunca estive lá. Mas quem jura costuma mentir, e há evidências suficientes que provam o contrário. Eu mesma não seria capaz de jurar nem que sim nem que não. Não após tudo ter sido descoberto, catalogado, lido, relido, refletido, comparado. A loucura que foi, do jeito que foi. Começou assim:

“Macau é uma das regiões administrativas especiais da República Popular da China desde vinte de novembro de 1999, sendo a outra, Hong Kong”.

Bem, deveria ter ficado só nisso; digo, na leitura e pesquisa dos textos, mas não: quis avançar, quis mergulhar na realidade da coisa inteira para escrever melhor e de forma mais convincente. Queria testar minha competência, e escrever o primeiro conto de minha vida como se realmente conhecesse cada rua, cada bairro, cada palmo de Macau. Podemos chamar isso de realismo. Chamo de aumentar as chances na roleta. Então da Wikipédia, passei para o Google Maps.

O prêmio exigia que a história se passasse nessa cidade específica (hoje conhecida como a Las Vegas do Oriente) e o valor pago para o conto vencedor não era de se ignorar. Eu, pelo menos, não pude ignorar, afinal, as contas continuam pontuais, mesmo depois que você perde o emprego.

A grande questão para mim era: como escrever um conto satisfatório, a tempo de entregar no prazo, sendo mãe de gêmeos? Poderia pedir ajuda ao pai dos meninos? A resposta seria sim, caso ele não fosse um imprestável que, aliás, atualmente está pedindo revisão de pensão.

Por isso não pude escrever essa história do jeito que gostaria. Não que esteja aqui me justificando perante os jurados, na tentativa de causar alguma espécie de comoção, nada disso. Mas mentiria se não dissesse que teclo essas palavras tentando ao máximo evitar fazer barulho, para não acordá-los e poder continuar trabalhando. Trabalhando e sonhando. São sinônimos para mim.

De nada adianta, Yin acaba de irromper de pijama, na sala. Acordou assustado. Acendo a luz (pois escrevo no escuro, apenas com o feixe elétrico do laptop na cara). Yin pergunta se eu sei de onde vêm os pesadelos. Respondo que não. Quem seria capaz de saber algo assim? Então ele chora, diz que sonhou que a mãe os afogava (ele e seu irmão) na banheira. Eu o abraço e o acalmo. Digo que a mãe deles seria incapaz de fazer algo assim. Por mais cansada que ela estivesse. Mães não fazem esse tipo de coisa com os filhos.

 

Durmo pouco, como mal e sem muitas variações (muito arroz, quase todo dia só arroz) e sou descendente de chineses. Sou chinesa da terceira geração. Muitos imigrantes chineses da primeira geração (meus avós, por exemplo), que vieram para o Brasil bem novos, perguntavam até quando seus descendentes iriam preservar a cultura e a língua chinesas e a resposta é (tirando por mim): a terceira geração nem sequer sabe se o sinal na testa de Mao Tsé Tung é verdadeiro ou se é photoshop.

Tanto que minha saída foi escrever em português para o prêmio, e entre as opções do edital havia, além do idioma que escolhi, o chinês e o inglês. Mas eu não sei falar nem escrever na língua dos meus ancestrais. Já com Yin e Yang a coisa é ainda pior: eles nem imaginam que têm esses ancestrais. Tudo que sabem fazer é rabiscar as paredes, espalhar pela casa peças de lego e dinossauros de plástico, e sugar minhas forças até quase me causar anemia. Devo dizer que os dois são bons nisso. Meus cabelos estão até caindo. A médica diz que é por causa do estresse.

Filhos são consequências, uma cicatriz do passado que levamos para sempre e que só aumenta ao longo dos anos. Além do estímulo pecuniário, talvez o que tenha me levado a participar do prêmio tenha sido a curiosidade de pesquisar sobre uma cultura à qual até então eu não dava a mínima. Imaginava que desse jeito entenderia melhor meu passado e, por consequência, meus filhos. Mas claro que estava errada. Erradíssima.

 

A coisa desandou de vez quando decidi abrir o Google Maps para visualizar as ruas de Macau. Estava sem ideia para escrever e acreditava que sabendo como as ruas eram, alguma ideia surgiria com a pesquisa. Foi o que fiz. O que não deveria ter feito. Comecei passeando o mouse aleatoriamente pelas ruas, sem dar preferência a nenhuma. Quando o nome me interessava, por exemplo, Rua Cidade de Sintra ou, Rua de Fat San, eu simplesmente clicava sobre ela e dava um zoom, para observar tudo de perto, para me sentir mais uma passante qualquer naquelas ruas.

E foi justamente na Rua de Fat San que a vi. Droga. No geral, essas fotos do Maps são tiradas por satélite e datam de um ou dois anos, até serem renovadas. Nessa foto em específico, era dia, e o dia tinha a cor de um foco de incêndio apagado. A rua estava movimentada, dando a impressão de ser uma alameda comercial: placas amarelas, vermelhas, com ideogramas chineses que eu não fazia a mínima ideia do que significavam e pessoas caminhando com sacolas de compras, mas espere…

Aquela mulher com uma bolsa a tiracolo, parada diante da pastelaria Hou Kong se parece muito… comigo.

 

Não sei quantas vezes olhei, não contei. Embora seja uma descendente da terceira geração, minha família não se miscigenou por aqui, o que explica eu ter mantido os meus traços. Aumentei a foto para ter certeza, e quanto mais aumentava, mais ela se parecia comigo. Quando dei o máximo de zoom permitido, consegui ler seu nome no crachá da empresa (ao que parece, uma firma de tecnologia): Chen Shing Lin. Deveria ter deixado para trás e ficado só nisso, mas resolvi procurá-la pelo nome na rede social. Me senti contagiada pelo mistério daquela semelhança e quis tirar a prova dos nove, ver outras fotos, em outras posições, e comparar. Para tanto, tive que reabrir minha página no Facebook, que havia fechado por causa das perseguições do meu ex-marido.

Assim que a reabri (já era madrugada) olhei à minha volta, como se estivesse cometendo um pequeno delito, e segui em frente. Depois de cair em cinco perfis homônimos (dentre os quais o de uma garota de programa) finalmente encontrei a página de Chen Shing Lin. E bastou cinco minutos navegando para que eu quase desmaiasse.

 

No dia seguinte, saí ligando para toda família, perguntando se tínhamos parentes em Macau. A resposta foi uníssona: todos nós viemos de Guangdong, às margens do Rio das Pérolas, de modo que os que restaram na China vivem naquela província até hoje, a saber, duas tias-avós e um tio (que, aliás, está pela hora da morte). Em Macau? Ninguém. E todos tinham certeza disso? Sim, sim, certeza absoluta.

Quanto a Chen Shing Lin: temos a mesma idade, o mesmo cabelo, a mesma cor de olhos, o mesmo sorriso, os mesmos gostos musicais e literários. Falamos a mesma língua também. E assim como eu, ela estudou jornalismo, só que, ao contrário de mim (precisei interromper os estudos quando engravidei) Chen Shing Lin se formou, é assessora de imprensa de uma empresa de tecnologia da informação sediada em Hong Kong e fã (assim como eu) de livros de ficção científica. Temos o mesmo número de amigos até. Gostamos dos mesmos drinques destilados e da mesma comida. Somos quase iguais. A única diferença entre nós é que Chen Shing Lin não tem filhos. Chen Shing Lin não engravidou.

Para mim a coisa estava quase clara, embora me movesse através de fragmentos, pisando em falso em pistas e pedaços de histórias que pouco conhecia, um território minado, o qual só conseguiria conhecer por completo se fosse totalizado. Foi por isso que resolvi enviar uma solicitação de amizade virtual para ela. Queria conversar com ela, entender tudo finalmente. E enquanto esperava sua resposta, vi sua última atualização: Chen Shing Lin compartilhava a notícia sobre o mesmo prêmio de contos que eu participaria.

 

Por uma semana, esperei sua resposta quanto à solicitação de amizade. Até lá, notei que, das duas uma, ou ela não postou mais nada desde que enviei o convite, ou tornou todas as suas postagens visíveis apenas para seus amigos. Isso começou a me enervar. Fui burra o suficiente para não trocar minhas fotos antes e, claro, ela deve ter se espantado com a semelhança, embora não tenha me bloqueado. Estranho.

Deve ter achado que meu perfil era falso e que eu era alguma espécie de stalker. Talvez algum concorrente querendo catar informações sobre sua participação no prêmio. O pior de tudo é que eu não conseguia avançar no conto, e na verdade não cheguei sequer a desenhar seu argumento, e depois disso estanquei.

Acho que tive isso que os escritores chamam de “bloqueio criativo” (considerando-se a hipótese de possuir qualquer verve para a criação, o que, vai saber, talvez não tenha). O fato é que Chen Shing Lin tinha muitas vantagens em relação a mim. As duas principais? Primeiro, ela morava em Macau. Segundo, ela…

“Mãe, mãe, mãe”…

Outro pesadelo.

Dizem que ser mãe é padecer no paraíso, mas o paraíso eu não conheci. O paraíso é lá onde Chen Shing Lin está. Com tempo para escrever, tem mais chances reais de ganhar o prêmio que eu. Tanto que não consigo entender por que, depois de sete dias, finalmente bloqueou meu perfil em sua página, já que não sou uma concorrente à altura, já que sou eu a mãe desses gêmeos que sugam meu tempo como uma esponja.

Homens fazem filhos nas mulheres só para provarem que são capazes de mudar as nossas vidas. Na verdade, não fazem filhos em nós, mas imprimem a sua marca, que é a marca do nosso erro, e nos condenam a uma vida na qual eles para sempre estarão presentes, ainda que, no mais das vezes, estejam ausentes. Já tentei escrever pela manhã, durante o período em que Yin e Yang estão na escola, mas é inútil. Não funciono bem pela manhã, não consigo ordenar os pensamentos. Tenho sono, muito sono, e ando pela casa esbarrando nos móveis e ferindo os pés em peças de lego e em chifres de dinossauros de plástico, com o agravante de que, até onde eu sei, dinossauros nunca tiveram chifres.

O fato é que só à noite consigo funcionar minimamente, ao menos até um dos dois aparecerem na sala para falar de sua sede, de sua vontade de ir ao banheiro, desses pesadelos onde a mãe os afoga em uma banheira cheia d’água. E desde então, quando isso ocorre, penso no que Chen Shing Lin estará fazendo: entre amigos, fodendo, fumando de piteira e escrevendo seu conto vencedor enquanto beberica um chá de menta quentinho. Que direitos ela acha que tem para fazer isso comigo? Que direito meu ex-marido pensa que tem ao jogar esses dois anjinhos (na verdade, essas duas âncoras) nas minhas costas?

 

Faltam quatro dias para a data final do envio do conto. Sei que é tempo suficiente para escrever um, desde que a dedicação seja integral. Um bom conto, em quatro dias, é tudo o que peço. Tudo que preciso fazer é tomar um bom banho para relaxar. Nem espero mais que os senhores jurados levem em conta todas as dificuldades que tive, nem as coisas das quais precisei abrir mão. Nem me importo mais que Chen Shing Lin seja a vencedora. Tudo o que quero é escrever o conto, um bom conto, e enviar. Fazer o meu trabalho, o trabalho que precisa ser feito.

É só sobre isso que penso, esperando a banheira encher. E está quase.


Mariana Carvalho é ficcionista, socióloga e professora.

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