Crítica | Cênicas


Foto de Andrea Magnoni

Vidro Fumê

abril de 2016

Edição: 2


Crítica do espetáculo Ruína de Anjos

Vivemos tempos difíceis: Caos político, ameaças de golpes, violência urbana crescente, repressões institucionais várias, assédio urbano, dificuldade em ocupar os espaços públicos disponíveis (que são poucos), protestos, repressão policial…. É cada dia mais difícil gozar da rua, na rua. Mas “a saída é a rua” como nos diz A Outra Companhia de Teatro através de sua montagem intitulada Ruína de Anjos (Indicada ao Prêmio Braskem de Teatro 2015 – na Categoria Especial). 

Uma estratégia comum de sobrevivência no contexto explicitado é a total ou parcial insensibilização do indivíduo. Fechamos os olhos, os ouvidos, a pele, o espírito para a rua. De outra maneira, talvez, fosse insuportável estar ali. Não é à toa que cerca de 13% da população brasileira apresenta hoje sinais de fobias sociais (seria este o novo mal do século?), resguardando-se em suas casas. Mas “a saída é a rua”.

Assim sendo, qualquer convite à sensibilização é um gozo, mas também nos enche de expectativas, que de uma maneira ou de outra interferem em nosso julgamento.

Falo do lugar de atriz, que se incomoda com a insistência em manter um certo alheamento dos contextos políticos por parte das produções artísticas locais, e do lugar de alguém que se autodiagnosticou com fobia social, ao perceber sintomas físicos de desconforto por apenas estar na rua, e por se sentir covarde em todas as tentativas de apropriar-se dos espaços urbanos.

Percebem o grau da minha expectativa?

Antes de mais nada, é preciso deixar claro que é impossível, para mim, iniciar uma crítica de Ruína, sem falar do primoroso trabalho de ocupação artística do Bairro do Politeama que vem sendo desempenhado pela Outra Companhia de Teatro, desde o ano de 2013.

No ano de 2013, A Outra Companhia passou a sediar na Casa da Outra, uma sala no Centro Comercial Politeama. Desde então, percebendo a dificuldade em conseguir público para suas iniciativas artísticas, diante da periculosidade do lugar, e permitindo-se afetar pela realidade que os circundava, começaram a criar várias ações que fizessem com que os moradores do bairro (incluindo os “moradores da rua”) e os vendedores ambulantes os acolhessem e chamando atenção para o abandono do lugar que já foi frequentado pela “nata” da sociedade soteropolitana – com o movimento Poli-Te-Ama, por exemplo.

Creio que tenha sido o grupo mais bem-sucedido nessa empreitada, para não dizer que foi o único que se lançou nesse desafio (pois seria leviano de minha parte afirmá-lo).

Voltando a Ruína do Anjos, o convite era claro: Tratava-se de um espetáculo itinerante que convocava a mim, espectadora, a refletir sobre o abandono arquitetônico e humano dos centros das grandes cidades.¹ Mas chegando lá, me vi diante dos personagens-Outra e fui capaz de me blindar dos personagens-Rua. A Rua era o cenário e personagem. As histórias daquelas pessoas que vivem na rua eram motes dramatúrgicos. O discurso político me contemplava. Mas eu estava segura e blindada dentro das convenções teatrais. O que é legítimo, e legitimado, mas confesso, não era o que eu esperava. Mas o que eu esperava? E será que tenho direito de esperar alguma coisa?

Ao chegarmos na Casa da Outra somos apresentados a ‘Wilson coffee the nigth’, primeiro personagem-Outra com quem temos contato. Recebemos nossas pulseiras que nos identifica como o grupo que chegou para assistir ao espetáculo, recebemos uma lanterna e somos apresentados às “normas de segurança”. Somos também introduzidos ao ‘mote dramatúrgico’: o antigo cinema vai reabrir. A partir daí somos apresentados às histórias dos personagens que serão (in)diretamente influenciados pelo surgimento deste novo empreendimento no local.

O trabalho de composição destes personagens é muito bem feito e tais personagens são facilmente reconhecidos por nós – se em algum momento de nossas vidas saímos de nossa armadura e olhamos a rua. Tanto que passam desapercebidos pelos desavisados que fecham os vidros dos carros quando a personagem-Evelyn termina sua apresentação de malabarismo na sinaleira.

Entretanto, assim como os personagens-outra passavam desapercebidos pelos transeuntes desavisados, os personagens-rua também passavam desapercebidos pelos espectadores desavisados, o que me causava certo desconforto. Não havia enfrentamento com a rua. Era como se houvesse uma parede. Não entre atores e espectadores, mas entre nós – Ruína – e a rua.

Ruína de Anjos é uma iniciativa bastante ousada – para os padrões soteropolitanos de produção teatral – por se configurar como um teatro itinerante na rua. Mas diminui o seu potencial de afeto ao abrigar-se em convenções teatrais tão rígidas e calcadas na representação. Estávamos no teatro, mesmo estando na rua. E não havia abertura para dúvidas em relação a isso.

Após a itinerância pelo Politeama, voltamos à Casa da Outra. Durante o encerramento do espetáculo os atores ainda vestindo os personagens, se fechavam na galeria e eram aplaudidos. Ao olhar para o lado, vi 4 pessoas dormindo, mas para elas não houve aplausos. E quando o ritual teatral se encerrou, todos voltaram a apertar suas bolsas e seguirem seus caminhos, novamente vulneráveis. Novamente na rua.

Estávamos no teatro, mesmo estando na rua. E não havia abertura para dúvidas em relação a isso.

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