Selfie | Cênicas


Foto de Andréa Magnoni
Andréa Magnoni 2018

UMA MULHER QUE RI

junho de 2018

Edição: 20


Sobre Iyá Ilu, de Sanara Rocha

Um teatro, uma igreja, o terreiro-mãe da São Salvador: coisas que convivem em mim e no Centro Cultural da Barroquinha, aonde vou chegando para ver Iyá Ilu. Encontro um corpo pintado com tintas fluorescentes, uma meia nudez resplandecente no corpo de uma mulher negra. Seu torso colorido é maior que qualquer veste e, diante dele, me sinto pequena e brevemente sufocada nas roupas que me cobrem.

Fico olhando a mulher ali em cima e poderia ficar assim por horas. Ou talvez até que todos os corpos daquele espaço se desamarrassem como o dela.

Sanara é o nome da mulher e eu a conheço. Ela e seu tambor, ali no palco, toda revivida em totem, me convocam a outro estado: ritualizo a vida e, por um instante, compreendo tudo. Seu peito aberto destranca o meu, dissolve-me do isolamento de ser um corpo só. Inclino-me um pouco em sinal de reverência e respiro mais profundamente, alargando os espaços íntimos por onde me faço presente. Avivo o desejo de estar sempre nua entre as mulheres, eu e meus peitos que murcharam de tanto dar de mamar.

Observo os refletores, os padrões que escorrem projetados pelas paredes, reflito sobre o teatro, esse modo de inventar mundos e modos de expressão. Sinto que ali outras forças nos ocupam, refazemos outras direções de permissão.

Mais tarde, ela abre o sorriso, já bem perto de mim, e descubro: Exu é uma mulher que ri, que abre o peito e dança. Aquela gaiatice confabula epistemes, revela um modo de criar, um teatro-místico-gaiato, a Bahia, em potência, caotizando definições.

Por instantes, recordo alguma fala recente que li, de algum desses legisladores do mistério, fiéis escudeiros dos dicionários e enciclopédias da arte. Penso nos pensamentos que moveram aquela fala borbulhando diante de Sanara, de seus gestos simples, de seu corpo pequeno e enorme, suado e aberto, nu.

Ela se move pelo espaço e seu corpo comunica o que a palavra não suporta. “Não precisa falar nada”, assim eu penso na hora em que ela resolve soltar umas frases. Aquelas frases, naquela hora, junto ao tambor, dizem menos, dizem pouco, diminuem os sentidos, me dispersam. Penso isso e logo me refaço: se ela quer falar – essa mulher que se dobra diante da própria história para desenterrar os silêncios, que se recria cada vez mais inteira – eu quero estar sempre à escuta. E sei que alguma hora descobriremos, ela e eu, as palavras mágicas, aquelas que realizam o tempo, que penetram as estruturas, que aproximam.

Uma roda de mulheres, quase todas negras, se junta, velas acesas, muito afeto. Elas sussurram coisas que eu só escuto com a pele, entre arrepios.

De lá, saio querendo me estender mais tempo pelas ruas, mas tenho que correr pra pegar meu menino na casa dos avós. Ao chegarmos em casa, vou arrumá-lo pra dormir, cantar alguma coisa doce e oferecer um pouco mais do leite desses meus peitos que murcharam de tanto dar de mamar.


Raiça Bomfim é atriz, escritora e produtora.

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