Selfie | Cênicas


Foto de João Rafael Neto

Crítica impressionisticamente selfie sobre uma experiência contemporânea de ver uma instalação performativa numa Casa Chamada Barabadá

A travessia para assistir/participar da intervenção “Um Corpo em Casa”, projeto coletivo de ocupação da Casa Barabadá por 4 meses, começa quase um mês antes. Sou convidado a um evento, confirmo presença e recebo uma mensagem simpática dizendo que posso adquirir meu ingresso com antecedência, adiantando minha vida, por um lado, e colaborando para a consolidação do projeto, por outro. Topo, claro, não só por ter amigos envolvidos na empreitada, mas por entender que há uma pulsão didática importante nessa relação em que artistas autonomamente, sem nenhum incentivo público ou patrocínio privado, se lançam em busca de parcerias e apoios mais horizontais a fim de ocupar espaços potencialmente virtuosos para experimentações no campo das artes contemporâneas.

Passo um domingo com a experiência de um corpo em casa, entre a leseira dominical, trabalhos pendentes e tarefas domésticas e vou com esse título geral da ocupação na minha cabeça enquanto me desloco a pé do Politeama até o bairro do Santo Antônio. Era um corpo em casa que se deslocava para apreciar uma ocupação chamada Corpo em Casa. Já no final do trajeto, para um carro ao meu lado e vejo um amigo me oferecendo carona para subir a Ladeira do Carmo. Ele me avisa que tinha acabado de acontecer um assalto e era melhor eu subir com ele. Não sou muito impressionável com a violência urbana, sou bicho de cidade, um corpo negro que em algumas situações passa invisível, mas não posso deixar de mencionar essa experiência numa coluna que se chama Selfie. Por mais que negue, cheguei com um olhar sobressaltado e pensando na comodidade de ser um corpo em casa, quando sair é sempre um risco.

E com esse olhar sobressaltado chego à Casa Barabadá e vejo Barbara Freitas tocar uma cuíca enquanto morde uma flor (um cravo branco) na sacada da janela que dava para a rua. Ela me fisga com o olhar. Entro na casa, já bastante ocupada, me identifico como comprador de ingresso antecipado e, após algumas orientações sobre minha liberdade de me mover pela casa e fora dela e consumir, se quiser, produtos do bar da durante as apresentações, entro na sala à direita. Lembro também que perguntei onde aconteceriam as apresentações e ouvi como resposta um amável: “você vai perceber”.

Bem, trata-se de uma casa enorme, provavelmente do início do século passado, mais comprida que larga, com pelo menos 3 quartos além dos cômodos extras no quintal, uma sala onde estava Bárbara e onde já tinha um monte de gente sentada em cadeiras e no chão próxima às paredes e uma das janelas com Barbara mordendo a flor e tocando a cuíca. Lembro que me deu vontade de sair e voltar a olhar de fora e que a sensação era mais interessante, talvez porque fosse mais confortável. Já fraturei o cóccix e ficar sentado no chão por mais de 15 minutos não é a melhor coisa que sei fazer.

Existe um momento em que Barbara desce da janela e aí a gente pensa: começou. Os movimentos de Bárbara se voltam para o interior da casa e finalmente ela se desloca em pé entre nós, dois cômodos e o corredor que dá para a copa. Aquela sensação de fisgada inicial vai se perdendo e tenho aquele sentimento de que mais uma vez me chamaram para ver um espetáculo que rompe com a quarta parede e com o padrão burguês do palco italiano, mas a gente tem de ficar quietinho prestando atenção como se estivesse num teatro. Mas vislumbro nesses movimentos um jogo entre repetição e diferença e um vigor que me fazem querer ver no que aquilo vai dar. E tinha uma criança de colo chorando (muito até) e a interação que ela estabelece fluida e organicamente com essa criança foi o segundo momento que mais gostei de ver. Fiquei pensando no éthos, como relacionar aqueles movimentos com a ideia de um conjunto de códigos e princípios conformadores de uma cultura. Fomos conduzidos por ela a conhecer três cômodos da casa e depois a ficarmos desconfortavelmente imprensados no corredor, mas felizes porque sabíamos que aquilo tudo ia dar na copa. E assim foi.

Lá na copa estávamos mais confortáveis. Eu, pelo menos. Nirlyn Seijas fala um pouco sobre a dinâmica da ocupação, sobre sua curadoria intitulada “O Popular me Atravessa” e nos explica com porcentagens quem estava financiando aquilo. Esse foi um momento tão bonito quanto todos os momentos bonitos da noite. Me senti um espectador-participante tratado como adulto, como apoiador, sem nenhuma hipocrisia, nem minha, nem dela.

Começa então o duo com o título gigante “O horizonte é quando a vista deita os encantos do mundo”,de Ana Brandão e Thiago Cohen,com movimentos referentes à cultura popular pernambucana, sobretudo o cavalo marinho, o boi, o maracatu. Me sinto mais convocado, entendendo melhor porque estávamos ali, fora de um palco italiano, e apesar da dor no cóccix podia perceber melhor o popular nos atravessando. Estava tudo lindo, até que resolveram fazer um joguinho de beber água e cuspir uns aos outros. E como sou chato, não curto saliva alheia sem beijo envolvido, e já sabia onde tudo ia dar, abri meu guarda-chuva e isso gerou riso e os bailarinos responderam dentro da dramaturgia do movimento deles à minha reação, sem subserviência, mas ao mesmo tempo respeitando e acolhendo meu gesto. Sim, eles molharam todo o palco e alguns dos espectadores.

E tinhas as cantigas. Eram dois corpos nus da cintura pra cima que ora jogavam entre si em silêncio, ora entoavam cantigas, sendo que em um momento fizeram uma bonita homenagem a mestres da cultura popular de quem ambos se sentiam tributários. E tinha uma alegria no olhar das pessoas. Tinha um afeto que nos atravessava assim como o popular atravessava os espetáculos da noite. E aquela brincadeira chata (pra mim) com a água culminava numa cantiga mais ou menos assim:

“São Sebastião derramou

amor na água

que te deram pra tomar

Bebe, bebe

A água que me deram pra tomar”

E eles terminam coreografia indo em direção ao quintal, mas a chuva torrencial que resolveu cair naquele justo momento não os deixou sair, era muita, muita água. Tanta a água que nos deram pra tomar. E foi aí que caiu a ficha de que minha pulsão em entender tudo não fazia nenhum sentido ali, e meu cóccix continuou doendo, mas sem me convocar tanto. Pensei então no desenho de movimento de ambas as apresentações que nos fizeram efetivamente atravessar aquele espaço. E o sobressalto virou alegria de estar ali, bebendo amor.

E o popular me atravessou. E eu era, novamente, um corpo em casa.

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