alguns casais de vez em quando se levantavam, pra dançar.
ficavam na frente do palco como ficam as árvores na frente de uma loja de discos.
o prazer
da dança
estava justamente nesse encontro duplo, primeiro com a música, depois
com a pele
que guarda a essência do ser amado nem sempre amoroso, há muita raiva
em qualquer união romântica, há disputa
e também solidão.
um casal sentado na plateia entrelaçou os braços.
a mulher vestia preto e um colar de pedras falsas. estava arrepiada, como se alguém tivesse contado uma ardência em seu ouvido.
já o marido usava um terno cáqui; o rosto pálido. emagrecera
involuntariamente nesses últimos meses, suas roupas agora estavam o dobro de seu tamanho e isso lhe conferia uma aparência de
criança triste
perdida
em uma feira de ciências.
é claro que ele fez alguns exames.
estava com medo de carregar no corpo uma doença silenciosa
e secreta, mas
o médico lhe apertou a mão
dizendo que ele não podia estar melhor.
o homem caminhou pelo corredor do hospital, rumo à saída.
entrou no vectra
ainda com a sensação de que
carregava Sim, no corpo
uma doença silenciosa
e secreta
que era a própria Vida.
um Saxofone despontou
no palco
e a iluminação recaiu sobre ele.
a mulher vestida de preto olhou para o marido, é a nossa música
e o cantor entrou
com a sua voz subterrânea
performando
a canção dos amantes que ainda não se beijaram porque são velhos demais e não sabem por onde começar.
o cantor tinha vindo da Grécia, horas e horas pelo céu.
depois do show, teria que jantar com o empresário que estava pagando por quase tudo e por isso pensava que o mundo lhe devia alguma coisa.
mas ainda que esse
Compromisso
tivesse atravessado os pensamentos do cantor, ainda assim ele se manteve
na Música, como se pudesse ser, simultaneamente, dois homens em um.
no jantar.
o empresário vai decorrer sobre a cidade e seus pontos turísticos.
amanhã você vai conhecer uma porção deles, dirá em inglês, propondo um brinde,
e a noite será enfadonha
como têm sido
tantas noites em nossas vidas.
quando o cantor chegar no hotel e finalmente
se deitar na cama,
bem, ele
não conseguirá dormir.
tomará remédios para que isso aconteça, pensará vagamente em tomar uma porção maior e quem sabe
dormir para sempre, aí
o empresário não poderia estar mais enganado sobre o dia de amanhã.
o cantor sorrirá com essa ideia.
pegará o telefone
colocará no ouvido
escutará
aquelas Ondas de possibilidades
pensando no anel
entalado em seu dedo
há tempo que
ele simplesmente parou de tentar tirar. vai ser ótimo
estragar os planos
daquele idiota, pensará em grego,
devolvendo
o telefone
para o gancho,
mas por agora um solo
de Saxofone
tocando
notas obscuras
e o olhar
impenetrável do cantor
que todo artista dá
quando está no palco
um olhar de longo alcance
mas no fundo Cego, por ser inteiramente voltado pra si.
nessa hora, o marido da mulher de preto se levantará
para ir ao banheiro.
ainda não sabe
que aquela será a sua última caminhada pela vida.
e se soubesse? o que teria feito de diferente?
Nada, em absoluto. ou quem sabe apenas andado
um pouco mais devagar.
Aline Bei nasceu em São Paulo, em 1987. É formada em Letras pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e em Artes Cênicas pelo Teatro Escola Célia-Helena. Foi colunista do site cultural Livre Opinião – Ideias em debate, editora chefe do site cultural OitavaArte e escritora convidada na Primavera Literária; Sorbonne Université, França 2018. Também em 2018 participou da Feira Internacional de Guadalajara. Em 2019 participou da Bienal do Rio de Janeiro e da Bienal de Alagoas, além de diversos eventos em Clubes de Leitura, Oficinas de Escrita Criativa e Sescs. O peso do pássaro morto, finalista do prêmio Rio de Literatura e vencedor do prêmio São Paulo de Literatura e do prêmio Toca, é o seu primeiro livro. Será traduzido para o francês em 2021. Ainda em 2021, lançará seu segundo livro pela Companhia das Letras, chamado “Pequena Coreografia do Adeus”.