Ficção e Poesia | Literatura


desenho de Clara Moreira

ÚLTIMAS HORAS

março de 2021

Edição: 22


 

alguns casais de vez em quando se levantavam, pra dançar.

ficavam na frente do palco como ficam as árvores na frente de uma loja de discos.

o prazer

da dança

estava justamente nesse encontro duplo, primeiro com a música, depois

com a pele

que guarda a essência do ser amado nem sempre amoroso, há muita raiva

em qualquer união romântica, há disputa

e também solidão.

 

um casal sentado na plateia entrelaçou os braços.

 

a mulher vestia preto e um colar de pedras falsas. estava arrepiada, como se alguém tivesse contado uma ardência em seu ouvido.

já o marido usava um terno cáqui; o rosto pálido. emagrecera

involuntariamente nesses últimos meses, suas roupas agora estavam o dobro de seu tamanho e isso lhe conferia uma aparência de

criança triste

perdida

em uma feira de ciências.

é claro que ele fez alguns exames.

estava com medo de carregar no corpo uma doença silenciosa

e secreta, mas

o médico lhe apertou a mão

dizendo que ele não podia estar melhor.

 

o homem caminhou pelo corredor do hospital, rumo à saída.

 

entrou no vectra

ainda com a sensação de que

carregava Sim, no corpo

uma doença silenciosa

e secreta

que era a própria Vida.

 

um Saxofone despontou

no palco

e a iluminação recaiu sobre ele.

 

a mulher vestida de preto olhou para o marido, é a nossa música

e o cantor entrou

com a sua voz subterrânea

performando

a canção dos amantes que ainda não se beijaram porque são velhos demais e não sabem por onde começar.

 

o cantor tinha vindo da Grécia, horas e horas pelo céu.

 

depois do show, teria que jantar com o empresário que estava pagando por quase tudo e por isso pensava que o mundo lhe devia alguma coisa.

mas ainda que esse

Compromisso

tivesse atravessado os pensamentos do cantor, ainda assim ele se manteve

na Música, como se pudesse ser, simultaneamente, dois homens em um.

 

no jantar.

 

o empresário vai decorrer sobre a cidade e seus pontos turísticos.

amanhã você vai conhecer uma porção deles, dirá em inglês, propondo um brinde,

e a noite será enfadonha

como têm sido

tantas noites em nossas vidas.

 

quando o cantor chegar no hotel e finalmente

se deitar na cama,

 

bem, ele

não conseguirá dormir.

 

tomará remédios para que isso aconteça, pensará vagamente em tomar uma porção maior e quem sabe

dormir para sempre, aí

o empresário não poderia estar mais enganado sobre o dia de amanhã.

o cantor sorrirá com essa ideia.

pegará o telefone

colocará no ouvido

escutará

aquelas Ondas de possibilidades

pensando no anel

entalado em seu dedo

há tempo que

ele simplesmente parou de tentar tirar. vai ser ótimo

estragar os planos

daquele idiota, pensará em grego,

devolvendo

o telefone

para o gancho,

 

mas por agora um solo

de Saxofone

tocando

notas obscuras

 

e o olhar

impenetrável do cantor

que todo artista dá

quando está no palco

um olhar de longo alcance

mas no fundo Cego, por ser inteiramente voltado pra si.

 

nessa hora, o marido da mulher de preto se levantará

para ir ao banheiro.

ainda não sabe

que aquela será a sua última caminhada pela vida.

e se soubesse? o que teria feito de diferente?

Nada, em absoluto. ou quem sabe apenas andado

um pouco mais devagar.

 


Aline Bei nasceu em São Paulo, em 1987. É formada em Letras pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e em Artes Cênicas pelo Teatro Escola Célia-Helena. Foi colunista do site cultural Livre Opinião – Ideias em debate, editora chefe do site cultural OitavaArte e escritora convidada na Primavera Literária; Sorbonne Université, França 2018. Também em 2018 participou da Feira Internacional de Guadalajara. Em 2019 participou da Bienal do Rio de Janeiro e da Bienal de Alagoas, além de diversos eventos em Clubes de Leitura, Oficinas de Escrita Criativa e Sescs. O peso do pássaro morto, finalista do prêmio Rio de Literatura e vencedor do prêmio São Paulo de Literatura e do prêmio Toca, é o seu primeiro livro. Será traduzido para o francês em 2021. Ainda em 2021, lançará seu segundo livro pela Companhia das Letras, chamado “Pequena Coreografia do Adeus”.

 

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