Crítica da Crítica | Cênicas


Tradicionalmente experimental ou palimpsesto crítico: uma leitura de excertos de um texto de Prisca Augustoni sobre performance de Ricardo Aleixo.

Esta crítica da crítica faz a escolha de um texto acadêmico (na verdade, excertos de uma seção de um capítulo) que se debruça sobre uma performance cujo referencial é o texto escrito. Feita essa ressalva, devo explicar as motivações da escolha por esse texto. Trata-se de uma análise de performance poética, mais especificamente o “Poemanto”, ação performativa concebida e realizada pelo poeta e performer Ricardo Aleixo que vem sendo apresentada em diferentes contextos desde o início da década de 2000. Ao tratar, aqui, numa revista de crítica de artes cênicas, de um texto dessa natureza, quero ao mesmo tempo demarcar e firmar meu interesse, pouco maturado ainda, em refletir criticamente sobre ações performativas cujo texto de partida e/ou de chegada sejam poemas, aquilo que venho aqui e ali chamando de “poeformances”, além de sinalizar que se trata de um campo de análise com pouca produção crítica fora do ambiente acadêmico.

O trabalho de Prisca Augustoni, poeta-e-pesquisadora suíço-italiana radicada no Brasil desde 2001, vem há alguns anos se debruçando sobre a produção de poetas afrobrasileiros, inclusive aqueles cuja produção poética abarca diálogos com as artes visuais, a música e a performance. O cerne desse trabalho pode ser conferido no livro[1] que resultou da sua pesquisa de doutoramento e que também serviu de referência para esta crítica da crítica.

Por tratar-se de texto de cunho acadêmico, o amparo em referências bibliográficas e teóricas antecedem a análise do trabalho, que vem, na construção do texto, como que sustentado por eles. Não por acaso uma das primeiras referências é Paul Zumthor, estudioso suíço medievalista responsável por um arcabouço teórico analítico sobre a poesia oral e a vocalização, muito estudado por Ricardo Aleixo. Vale trazer também aqui, assim como no texto de Prisca Augustoni sobre o “Poemanto“, o conceito de performance defendido pelo medievalista: “ação complexa pela qual a mensagem poética é simultaneamente, aqui e agora, transmitida e percebida. Locutor, destinatário e circunstâncias […] se encontram concretamente confrontados”. (ZUMTHOR 1997, apud AUGUSTONI 2013). Embora não se detenha unicamente nessa referência, esse viés é muito importante para entender por que a analista, bem como o analisado, não se/o filia a uma vertente da performance art. Aleixo, inclusive, prefere o termo “performador” em lugar de “performer”.

 Um dos eixos de análise de Augustoni, reforçado pelas referências teórico analíticas apresentadas, parte da ideia de que o poeta-e-performer lança mão das tecnologias do contemporâneo para rasurar o que a tradição dos “griots”, mediado pelas interpretações das diásporas e do próprio artista, lhe legou. Um uso de tecnologias às vezes precárias, ainda que amparado por um refinamento conceitual, que consiste no acerto das escolhas das tecnologias e de processos de precarização. Melhor dizendo, a analista parte da ideia de “griotização contemporânea e urbana” como viés analítico da performance poemanto e do trabalho de corpo-e-voz do poeta-e-performer Ricardo Aleixo. Para tanto, vai recorrer além do medievalista, a dispositivos argumentativos gerados por teóricos em sua maioria europeus, sobre procedimentos de apropriação estético-política das tecnologias do contemporâneo (Haraway) bem como das tecnologias da tradição oral (FRASCA, COLOMBRES, GLISSANT, MARTINS, entre muitos outros).

Naturalmente aqui se faz um resumo precário que não pretende nem de longe substituir a leitura do texto original, mas flagrar alguns dos procedimentos de análise e leitura, pensando, sobretudo, na ausência de textos outros que se debrucem sobre performances outras que tenham a poesia como referência e que não estejam no âmbito estritamente acadêmico (como é o caso). O autor estudado ostenta em sua fortuna crítica outras teses e dissertações e, pelo menos, uma outra tese, exclusivamente voltada para a sua perfomance[2].

Voltando ao texto, segue-se ao momento ritual-acadêmico das citações legitimadas pelo saber ocidental – pertinentes e bem fundamentadas e em consonância com o próprio repertório do artista analisado – a descrição da performance em si, o “Poemanto”, apontando, na descrição, possibilidades de variação observadas nas diversas vezes em que a analista pôde assistir à performance, e abarcando o imprevisível da performance nessa análise.

O olhar de quem assiste é o olhar que pensa a encenação, os usos das tecnologias, as precariedades pensadas, as limitações e riscos da ação, embora deixe pouco espaço para tratar das próprias limitações de análise. O lugar de fala de quem vê não é assumido explicitamente no texto. O que em se tratando de alguém que tem uma relação com o poeta, de intercâmbio intelectual e artístico, de parceria, é potencialmente esclarecedor e enriquecedor da análise, ainda que saibamos as implicações e os riscos que esse tipo de assunção incorreria numa escrita acadêmica de tese de doutorado.

Uma crítica de um objeto multissemiótico não deveria se bastar no signo verbal: a ilustração com fotos e poemas de Aleixo para demonstrar suas relações com a poesia concreta, por exemplo, são gatilhos para muitas outras leituras. Mais do que ler a relação entre o “poemanto” e os mantos de Arthur Bispo do Rosário, ver fotos do manto nos permite fazer outras ilações e pensar outras referências.

O texto é um vai-e-vem entre as referências teórico-analíticas, intertextuais e intersígnicas, o que torna a leitura positivamente abrangente e eficaz. Uma crítica de um objeto multissemiótico não deveria se bastar no signo verbal: a ilustração com fotos e poemas de Aleixo para demonstrar suas relações com a poesia concreta, por exemplo, são gatilhos para muitas outras leituras. Mais do que ler a relação entre o “poemanto” e os mantos de Arthur Bispo do Rosário, ver fotos do manto nos permite fazer outras ilações e pensar outras referências.

Algumas dissonâncias são produtivas, haja vista que suas produções (ela também é poeta, como referido mais acima) estão em diálogo e arrisco a dizer que o poema que reflete sobre a performance “Poemanto”[3] aqui e ali responde às indagações de Augustoni. Por exemplo, quando afirma que a performance está mais próxima de Bispo do Rosário do que de Oiticica, e as referencias ao rito dos egunguns assumida por Aleixo e aparentemente ignorada pela analista.

Um dos pontos fortes do texto diz respeito à relação entre “invisibilidade do negro” e as escolhas “precárias” de iluminação e sonorização na performance. O blackout como escolha política, o precário como escolha política, e a associação entre essas escolhas e a origem afrodescendente do artista dão o tom à análise e nos fazem entender melhor outras performances, como as de Michelle Mattiuzzi,  Diego Alcântara e Malayka SN, por exemplo. Como em todos os momentos analíticos do texto, a pesquisadora lança mão de referências na própria obra poética do poeta-performer, promovendo, desse modo, uma teoria fundamentada, o que ganha força e se destaca do momento ritual da inserção de pressupostos teóricos que “preparam” o leitor para a análise.

Palimpsesto a refletir sobre outro palimpsesto, as diversas camadas de análise, que partem de referências teóricas para a performance, passando por referências estéticas, poemas, produções sígnicas, escrita performativa, escolhas técnicas, estéticas, ideológicas, em um texto que na sua circularidade propõe-se aproximar de seu objeto de análise nesse vai-e-vem entre objeto que é visto por um sujeito, podem ser pensados em outros contextos, com outros artistas, que relacionam poesia e performance, ou melhor, no simultaneamente aqui e agora, escrevem o poema da presença, da rasura e do imprevisível.

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[1] A poeformance do poemanto. In: AUGUSTONI, Prisca. O Atlântico em Movimento: signos da diáspora africana na poesia contemporânea de língua portuguesa. Belo Horizonte: Mazza Edições. p. 167-191. Uma versão menor desse excerto pode ser lida em: < https://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/4846183.pdf  >

[2] SANTOS, Luciany Aparecida Alves. Modelos Vivo em uso: poesia e performance de Ricardo Aleixo (em) um exercício crítico de literatura contemporânea. João Pessoa: PPGL-UFPR, 2015. (Tese de doutorado inédita). Disponível em URL: < http://tede.biblioteca.ufpb.br/handle/tede/8524  > Acesso em 24 abr. 2017.

[3] ALEIXO, Ricardo. O poemanto: ensaio para escrever com o corpo. In: Modelos Vivos. Belo Horizonte: Crisálidas, 2010.  Vale ressaltar que o poema em questão embora tenha sido publicado antes  do livro de Augustoni, provavelmente foi escrito depois da defesa da tese de doutoramento, o que ocorreu em 2007.

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