Crítica | Música


Foto do disco "Conversas com Toshiro"
Mariana Decourt 2005

Toshiro moleque doido

junho de 2018

Edição: 20


Sobre o disco Conversas com Toshiro de Rodrigo Campos

Depois do café da manhã, enquanto preparava as músicas para ouvir durante o passeio com a cachorra, fui surpreendido por uma mensagem de Moisés no celular: “cara, escuta agora o disco novo de Rodrigo Campos. Toshiro moleque doido tá tocando demais”. Não entendi nada da segunda frase, mas de pronto baixei o álbum e saí pra praia levando Minie na coleira. Como escrever é inventar a memória, só agora percebo que aquele passeio canino na primeira escuta de Conversas com Toshiro é das minhas lembranças mais delineadas desses últimos anos.

Desde o début com São Mateus não é um lugar assim tão longe, Rodrigo Campos vem elaborando propostas complexas em seus discos. Há sempre fios esticados em tensões corajosas no encadeamento de seus trabalhos, faixa a faixa, disco a disco. Bairrismo e memória pessoal aliados a uma série de beats amalandrados marcam São Mateus, que tem em Cavaquinho uma síntese do lirismo de lá. Bahia Fantásticaambientado na terrinha mítica da Música, recria a fantasia do Parnaso brasileiro. São andanças e preparações improváveis para as Conversas com Toshiro. Toshiro Mifune, para ser mais específico.

Nesse álbum japonês, o compositor destila nos ouvidos uma série de referências orientais: Toshiro, Wong Kar-Wai, Ozu, Chihiro, dentre outras. Sem concentrar-se apenas nos significados e nos sentidos das palavras estrangeiras, Campos experimenta as sonoridades delas dentro da frase em português. Esse aspecto surge especialmente macio nos vocais suntuosos de Ná Ozetti e Juçara Marçal (Wong Kar-WaiFunatsuTakeshi e Asayo).

Além dos fonemas exóticos e dos exercícios de linguagem, o ouvinte/espectador também se verá diante de vários quadros inusuais e frames pulsantes em intensidade e ritmo. Depois das duas primeiras músicas, o disco se monta como uma galeria ou um parque de imagens. O sentido da visão é acionado a todo momento, como vemos nos versos abaixo:

Deixa eu voar / o meu corpo é de pergaminho” (Dois sozinhos), “Na neblina da estrada preta / Vai uma menina de maiô / Listradinho na bundinha rosa / Rasgadinho no umbigo nu” (Paisagem na neblina), “Funatsu nas telhas, chutando as cancelas / Das casas das velhas da antiga cidade” (Funatsu). “Mar do Japão engole vidro/ Mar do Japão engole a gente” (Mar do Japão).

A movimentação das imagens e a poesia das composições navegam pelos trilhos sinuosos de uma ferrovia suspensa nas nuvens. Às vezes, vem em vórtice. Em Katsumi – uma espécie de musa nipônica para o Humbert Humbert que canta a faixa –, a estrutura circular do arranjo se retroalimenta na figura da borboleta tatuada: “Katsumi é tão linda quanto borboleta / É tão linda e dispersa como borboleta / Ainda tem na virilha uma borboleta”. Há ainda as batidas que Curumim acerta na caixa para intensificar a atmosfera obsedante da tela.

Conversas com Toshiro é diferente dos álbuns anteriores não só pelo fato do Japão estar distante da Bahia e de São Mateus. Aqui Rodrigo Campos aposta na narrativa contando histórias através dos versos e da instrumentação. Toshiro Vingança: cordas, percussão, sopros, vibrafone, drama sinfônico antes da chegada dos slides persecutórios da guitarra: uma abertura a um só tempo discreta e grandiosa. “Toshiro saiu de casa (…) Caiu numa cova rasa / Seu pênis cuspiu um troço”. Segue assim a trajetória de Toshiro, cuja história remete à trágica transformação de Clara Crocodilo. A diferença é que Arrigo Barnabé escreve um roteiro mais sequencial, fechado, enquanto Campos prefere desenhar fragmentos. Em Velho amarelo, não temos a mesma verve narrativa de Toshiro vingança, mas as cordas sugerem cenários para a conclusão do texto e soam como um a secção de créditos de anime. Quase dá pra ver as folhas de cerejeira planando ao sabor do vento. Outra referência inusitada está em Toshiro reverso, cuja abertura evoca os metais das séries de heróis japoneses dos anos 80 e 90.

Sambas tem dois. O primeiro, Chihiro, está totalmente imerso na proposta do disco. Dono da bateria já é outra coisa: só voz e violão destoando de tudo que veio antes na letra e na temática. Essa faixa deslocada que encerra Conversas abre espaço como uma deixa para o disco de 2017, Sambas do absurdo.

As caminhadas de Rodrigo Campos oscilam assim mesmo: entre a liberdade física da criação e o cálculo do absurdo.


Igor de Albuquerque é editor da Barril e crítico.

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