Crítica | Cênicas


Sobre o espetáculo Com o rei na barriga, do TECA Teatro

A construção da baianidade não data de muito longe. Ainda que seja “terra mãe do Brasil”, como gosta de nos lembrar o slogan, por alguns séculos ser baiano não era considerado lá grande coisa. A mudança da capital para o Rio de Janeiro e outros acontecimentos históricos nos tiraram o destaque como cidade moderna e avançada mas, em meados dos anos 1950, Jorge Amado, Carybé, Verger e outros começaram a desenhar uma Bahia mítica e especial que ajudou a reconstruir o orgulho local.

E o que seria essa baianidade, afinal?

Em ótimo artigo, Edevard Pinto França Junior circunscreve o conceito com muita clareza: “A baianidade, como é conhecida a identidade cultural dos baianos, é um conjunto de regras, práticas, rituais, associados aos moradores da cidade do Salvador e do território circunvizinho, porém generalizados para todos os habitantes do estado da Bahia. (…) O discurso da baianidade é a síntese da ligação entre povo, tradição e cultura, sendo estes elementos ideologicamente construídos (…). Este discurso foi utilizado como expressão máxima de um povo alegre, valente, trabalhador, místico, religioso, sensual.” E eis que, em pouco menos de meio século, ser baiano passou de algo menor e vergonhoso a honraria levada no peito. E a se exibir em qualquer lugar, em alto e bom som, não importa o contexto. Mas, como dizem os populares: tudo que é demais, é sobra.

Foi com essa reflexão que saí da estreia do espetáculo Com o rei na barriga, do TECA Teatro, companhia de teatro infantil capitaneada por Marconi Araponga e Luciana Comin. Fui positivamente surpreendida quando notei que se tratava de uma adaptação do clássico da comédia O burguês ridículo, de Molière, para crianças a partir de 05 anos. O texto, assinado pela própria Luciana juntamente com Lando Augusto, é preciso ao traçar um paralelo entre os desmandos cometidos em nome de status pelo endinheirado Sr. Jourdain com os caprichos de crianças das classes abastadas do nosso país. Em sua agenda repleta de aulas de dança, esgrima, música e recitação, esse sinhozinho mimado emenda uma desfaçatez na outra, destratando empregados, subestimando o conhecimento dos profissionais e exigindo virar, logo e sem demora, um nobre de verdade. Crítico mordaz aos novos ricos de hoje e de outrora, Molière vai ao ponto ao demonstrar que essas pessoas não sustentam sua nobreza senão pelo dinheiro, já que não têm qualquer talento para a reflexão e os bons modos – e sequer disposição para adquiri-los. Cena após cena fica claro que o desejo do jovem Jourdain, representado na montagem por Marconi Araponga, é apenas parecer refinado e não de fato tornar-se assim.

O original de 1670 foi trazido para o tempo presente com uma qualidade nem sempre vista no teatro para crianças. As situações originais são mantidas e se concentram na difícil tarefa dos professores de tornar o patrãozinho alguém requintado. Mesmo com todos investimentos, o ridículo burguesinho não consegue aprender nada, tamanha a sua arrogância e preguiça para qualquer coisa que demande esforço mínimo. Mimado pela mãe superprotetora – que se esforça para suprir a ausência do pai, sempre viajando a trabalho-, o garoto não tem qualquer tolerância à frustração e responde agressivamente a cada crítica daqueles que estão ali justamente para orientá-lo. O estopim é o conflito com o pretendente da sua irmã mais nova que, ao ser enxotado por “não ser nobre o bastante”, decide se vingar do pequeno déspota ridicularizando-o diante de outras pessoas por meio de um rocambolesco golpe.

Em cena, atores convidados e da companhia, composta por jovens alunos egressos de cursos livres de teatro do grupo. Ao todo são cerca de 10 pessoas compondo o elenco, sendo que Luciana Comin demonstra mais uma vez, tal como em outros momentos de sua carreira, inteligência cênica particular. A cenografia é bastante simples, mantendo apenas o que tem função cênica efetiva, com elementos específicos e ao fundo, uma projeção remonta aos panneaux tão usuais nos antigos ballets. Já o visual dos personagens é particularmente bem-cuidado, com um conceito completo de cada um daqueles supostos sujeitos. Digo supostos porque, como é natural da farsa, não há um aprofundamento no interior dos personagens; excetuando-se um ou outro aspecto da mãe e da empregada, em geral os personagens são superficiais. Isso em nada constitui um demérito e sim reitera a escolha pelo universo de Molière e remete à era do selfie após selfie que estamos vivendo.

O ritmo é compatível com o público, com destaque para os entremezzos onde personagens infantis da cultura pop contemporânea surgem como uma gag contínua, invadindo o palco a qualquer pausa da ação dramática para tentarem levar a cabo suas próprias histórias. Essa crítica é tão sutil quanto efetiva e nos lembra o quão nociva pode ser a pasteurização dos conteúdos para infância, com Peppas, Galinhas e Piu-pius se proliferando como ervas-daninhas em cada mínimo canteiro criativo que se oferte para crianças.

Acompanhei o espetáculo com muita satisfação pelo que via, e dei boas risadas com as piadas de repetição e o humor mais corporal. Marconi demonstra propriedade nessa abordagem e é um deleite à parte observar as crianças gargalhando com o ridículo rapazote. As instruções para a tão esperada reverência que será feita para sua pretendente são lembradas incontáveis vezes: “Um, dois, três, joelho!” sintetiza ali a força das estratégias cômicas que remontam aos mambembes da idade média. Então, com elementos tão azeitados, eu poderia ter saído do teatro Molière com a sensação de ter visto uma obra única para crianças. Mas isso não ocorreu por um único motivo: excesso de baianidade.

 

Afeitos que somos à ironia e à pilhéria, por aqui se tem piada pronta para tudo. Mas quando tal humor gira em torno de comentários pueris sobre aparência, evoca referências como o “quadradinho de 8” ou adota gírias locais para despertar o riso, acaba fazendo como o protagonista: toma um atalho que o precipita no erro.

Falo de excesso porque parece uma má escolha trocar a sólida estrutura de Molière, tão bem adaptada pela dupla de dramaturgos, por gracejos que remontam à camada mais superficial de nossa identidade. Afeitos que somos à ironia e à pilhéria, por aqui se tem piada pronta para tudo. Mas quando tal humor gira em torno de comentários pueris sobre aparência, evoca referências como o “quadradinho de 8” ou adota gírias locais para despertar o riso, acaba fazendo como o protagonista: toma um atalho que o precipita no erro. Algumas pessoas até rirão, certamente, porque ali estão combinados justamente os elementos reconhecíveis de outros espaços como a televisão e a Internet. E se por um lado as gargalhadas e aplausos chegam, por outro se joga fora a chance de estender o limite da fruição estética daqueles espectadores para além do terreno já pisado. Com tudo em cena se afinando para um resultado coeso, não há qualquer necessidade de esgarçar o humor para além dos limites da própria montagem. Talvez ter diretor e ator principal na mesma pessoa não tenha permitido que essa reflexão fosse feita com o necessário tempo. Talvez tenha sido justo o contrário e provenha de uma decisão deliberada de trazer Molière para “mais perto” do público… Não saberia dizer.

O que afirmo, enfim, é que o TECA Teatro ensaia em Com o rei na barriga um êxito espetacular na adaptação de clássicos para o público em formação mas, em certa medida, desperdiça essa potência cedendo-a ao retorno imediato que só o riso pode oferecer a uma comédia. Ainda assim, entre franceses e baianos, salvaram-se quase todos, e a montagem segue sendo um suspiro de agradável alívio para os apaixonados pelas Artes para a Infância.

2018 | Revista Barril - ISSN 2526-8872 - Todos os direitos reservados.