Crítica | Música


Fotografia de Caio Araújo

Todo futuro importa

março de 2018

Edição: 19


O primeiro disco solo de Giovani Cidreira é uma costura de afetos. As canções que compõem Japanese Food são uma entrega à vida em diversos níveis. Escutá-lo é fazer o exercício de, junto com o canto aberto e para fora de Giovani, pensar o mundo, acompanhando as diferentes camadas da existência. Há pelo menos três dimensões que são cantadas ali, formando um todo onde os afetos se expressam: a dimensão do eu em diálogo consigo mesmo; o eu com o outro nas relações de amor, amizade ou intimidade de alguma espécie; e o eu no contexto social mais amplo. É pelo conflito que essas dimensões tomam vida. Ao aparecerem nas músicas, elas vêm recheadas pelas contradições humanas, dos sentimentos, dos desejos. Além disso, em Japanese Food há uma intensa reflexão sobre o nosso tempo.

Giovani Cidreira fez inúmeros shows em São Paulo no último ano: no Centro Cultural São Paulo, na EAEO Records, no Uvaia Hostel, no programa Cultura Livre, na Sim São Paulo, no Sesc Bom Retiro… várias gigs. No último, no Sesc, antes de cantar “Um Capoeira”, Giovani contou a história da música. Disse que a compôs depois  de um episódio vivido em Salvador. Ele estava indo à praia do Buracão, no Rio Vermelho, quando encontrou alguns amigos que estavam voltando de lá. Os amigos relataram que a praia não estava legal no dia, que o clima estava pesado por causa do público: garotos com cara de ladrão. Ao que Giovani se pergunta: o que é cara de ladrão? Ser preto? Estar de chinelo? Ter o cabelo crespo ou enrolado?

Sendo Giovani um jovem negro, sua sensação é a de que, não apenas ele poderia ser encaixado naquele estereótipo, mas também seus familiares e seus amigos de bairro – ele vem de Valéria, periferia de Salvador. Foi aí que a canção nasceu, com letra em parceria com Paulo Diniz. Como em outras músicas do disco, as rimas fogem do óbvio, ainda que queiram dizê-lo: “agora guarde um segredo/você sente por aí, enquanto cresce”. O medo só aparecerá mais à frente. O medo de quem vê o jovem negro circular pela cidade: “tem medo de mim, você nem me conhece mais/ seu muro não me alcança e na sua falha você vai me ver dançar”. A relação da proximidade se perde pela submissão do sentimento e do olhar crítico ao estereótipo, o ponto auge é o muro criado entre esses caminhos, a barreira para uma suposta proteção, mas que cava ainda mais fundo a desigualdade. Na distância, perde-se o que há de humano nas relações. E quando o que sente medo e impõe barreiras vacila no seu julgamento, quem dança é o outro – e aqui “dançar” pode assumir inúmeros sentidos pra quem ouve. O jovem negro que cresce nesse ambiente só pode se sentir cada vez mais estrangeiro em sua própria terra: “e eles aqui nem me conhecem mais”. É um jogo de vida e morte: “morte certa, ingrata”; por outro lado, de insistência na vida: “o brilho a sede nos olhos/ e quem compra esse mistério/ volta pra casa livre”.

Privilegiando a parte poética das canções na audição, é possível perceber nelas a vida como um percurso incerto, provisório e doloroso. Há uma certeza – e, sobretudo, uma dor – de entender que nada acontece sem construção, sem demora, sem o olhar contínuo sobre algo. O movimento que nos guia é incessante, ainda que ele passe em velocidades distintas a depender do momento. Como no ritmo de Movimento da Espada. A música que abre o disco começa com o instrumental que vai aumentando em volume e estabiliza na entrada do canto, como uma primeira amostra das inúmeras contradições cantadas nas letras: “movimento da espada enquanto o/ movimento em mim procura a ordem”. Além de um sentimento de aflição com o tempo, com a vida, com o amor, com as resoluções, com o que se deveria ser: “vem a hora triste a hora noite que se parte em solidão”. Como uma personagem insone de Dorothy Parker se perguntando: “Qual é o sentido de toda essa escuridão ao meu redor?” Mas logo sai de si para reencontrar a vida na concretude do mundo.

A dimensão do sonho versus o concreto é explorada nas letras de muitas faixas do disco. Listo uma coleção destes versos. Em todos eles os sonhos parecem precisar despertar para virar realidade:

“No fundo do oceano/ onde irei te jogar/ onde irão afundar os sonhos/ Em meio aos sinais e os carros/ onde irei te encontrar/ onde irei resgatar os planos”, em Movimento da Espada;

“meu sonho maduro já cresceu – e além de mim!”, em Pássaro Prata;

“Ela descobriu que mesmo sozinha vive bem/ eu não entendo…/ nada é tão fácil pra mim/ eu não sou tão bom/ mas isso…/ Fosse bem melhor não ser nós dois/ que sonhar não era ser concreto assim”, em Última vida submarina;

Ainda em Última vida submarina, o sonho aparece também como um motor pessoal ou razão da existência: “meu submarino sou eu/ minha força de sonhar sou eu também/ porque quando todos vão embora/ eu me tranco aqui e tudo bem”. Nessa canção, a contradição está na tentativa de construir um caminho novo, percebendo-se só, ao mesmo tempo em que sabe necessária a presença do outro: “e eu preciso tanto das pessoas”. O ponto forte do conflito, que se iniciou com os versos “Alguma coisa mudou nosso vento”, é revelado aqui: “ela descobriu, que mesmo sozinha vive bem”. É como se fosse um diálogo com outra pessoa e ao mesmo tempo consigo mesmo, que vai se desenrolando junto com uma melodia alongada pelo fluxo de consciência que acaba num suspiro. Até a forma como a letra foi disposta no encarte do disco nos submete à sensação da espiral,  à vida num labirinto em tobogã.

Estrada Provisória expressa um conflito parecido. Ela começa com os seguintes versos: “Eu passei o ano inteiro buscando qualquer direção/ Só pra te deixar mais livre e mais viva”; que são repetidos mudando “direção” por “emoção”. O que demonstra um esforço em entender o caminho e a liberdade do outro. Talvez esse seja o grande desafio e busca da nossa geração: como lidar com o desejo de uma maneira múltipla, entendendo que ele pode ser difuso, pluridirecional? Como fazer com que os outros consigam viver essa realidade, sem entrar na loucura de verdades e mentiras contadas para sustentar qualquer crença que não abarque quem está tão próximo?

Muito se falou nesta estreia de Giovani sobre a sonoridade de seu disco ter uma relação com os anos 80. O próprio Giovani canta Legião Urbana nos shows. Assim como tem uma relação poética e sonora com o Clube da Esquina. Talvez essas duas influências citadas pelo próprio artista sejam tão aparentes pois é ele mesmo quem assina os arranjos de todas as faixas. As letras, quase todas em parceria com Paulo Diniz, são o que mais chama atenção no disco. Elas são um zoom in e zoom out da subjetividade, trazem um olhar para si e logo em seguida para o todo. Japanese Food é o primeiro disco solo de Giovani Cidreira, mas que surge depois de anos na banda Velotroz e do EP solo de 2015. Não sei se seria correto considerá-lo uma nova fase, pois no disco a vida é mesmo essa estrada que flui torta, provisória. E que insiste.


Pérola Mathias é crítica e socióloga

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