Ensaio | Cênicas


Ilustração de Conde Baltazar

Tentativa analítica de um crítico perdido

Estou em meados do abril pandêmico de 2021. Estou no meio do festival, ou melhor, estou em minha casa no meio do festival que me convidou para escrever um texto crítico sobre as coisas que esse festival apresentaria na sua programação e sobre o festival em si e o nome desse festival é Cenas do Nordeste.

Estou irritado porque o vídeo do teatro virtual de hoje travou (por culpa da internet, é claro, e não dos produtores do festival), então aproveitei para vir aqui escrever as coisas que eu estava pensando em escrever antes mesmo de o vídeo travar, no meio de uma performance aliás muito interessante que, se vista até o fim, talvez colocasse muitas das minhas argumentações vindouras em risco porque, veja, se o trabalho crítico não é o da argumentação, linguagem, retórica e imagem (resumindo, hipnose & sedução, i.e., tudo o que a arte também busca), então não sei o que estou fazendo aqui e deveria, talvez, meter o rabo entre as pernas e procurar tirar não sei de onde o que certos consumidores culturais pedem a qualquer um hoje em dia, sentimento & sinceridade, coisas que, justamente por serem solicitadas a todo o momento, está na cara que faltam ou não existem hoje ou desde sempre, essas coisas que só o teatro parece poder inventar sem ficar piegas, isso se não ficar piegas mesmo assim, porque se tem uma coisa que essa linguagem chamada teatro pode ser é piegas, deus benza.

Adendo ao parágrafo anterior: o que o Mi Madre (o dito espetáculo do vídeo que travou) estava me provando antes de travar era justamente a ideia de que o teatro pode ser piegas de forma magnífica, ou seja, sem ser piegas. Devo dizer também que a atriz, Jhanaina Gomes, foi ela quem inventou a presença e espero que tomem isso ao pé da letra, por três motivos: 1) porque a famosa presença (essa mina de ouro das pós-graduações) tem que ser inventada a todo momento para que sequer possa existir enquanto conceito; 2) porque, repito, foi Jhanaina Gomes quem a inventou, tanto a coisa quanto o nome, e deixemos esse negócio de história da arte pra lá, ao menos por um instante; 3) porque Janaina Gomes é pernambucana e os pernambucanos inventaram o mundo inteiro antes de deus, dos europeus, dos paulistas e até dos baianos, veja que coisa difícil. Para tirar a prova dos nove, basta assistir ao espetáculo dela (gostaria de deixar essa dica aos acadêmicos que porventura leiam este texto – nunca se sabe – mesmo que isso não seja um artigo, graças a deus).

Enquanto me preparava para encarar algumas seções do dito teatro virtual, pensei “por que será que eu não vi quase nada de teatro (ou dança ou performance) virtual?”, chegando finalmente a três hipóteses que, bem lidas, já adiantariam o trabalho de pesquisa de quem neste momento está se esforçando bravamente em justificar sua bolsa de pós-graduação frente à sociedade brazyleira.

E será esta a minha singela contribuição textual à Arte Brazyleira Durante a Pandemia.

 

I

Se uma peça do dito teatro virtual é na verdade um teatro gravado, ou seja, se ela não foi pensada para ser um produto audiovisual autônomo, então ela é um documento de arquivo de teatro e sua fruição terá esse dispositivo como seu primeiro discurso, ficando estabelecido, logicamente, que todo teatro virtual é, antes de tudo a) um produto audiovisual e b) um documento de arquivo de teatro; assim sendo, o que o Cenas do Nordeste apresenta para o espectador disposto a tal experiência é um mosaico fenomenal de documentos de arquivos da cena nordestina (sic), pois a maioria dos espetáculos são teatro ou dança gravados (alguns são produtos audiovisuais), cabendo ao espectador potencial possuir a curiosidade do historiador, do pesquisador em geral, do detetive (e dos fofoqueiros, por que não) etc., propensão que pode muito bem estar presente em pessoas leigas, mas não numa maioria destas (isso deve sim, ser dito, embora sem fazer uma defesa ou um ataque sobre a predileção desta ou daquela curadoria por maiorias ou minorias, pelo menos não aqui).

Por isso, como ainda estou no terceiro dia de festival, se tudo der certo e se nada mais travar tanto quanto Mi Madre travou (ou melhor, mi red travou), vou adorar ir tecendo uma relação historiográfica, simbólica e cultural entre os distintos documentos de arquivo, vendo o que nesta ou naquela época, nesta ou naquela região, sobressai enquanto discurso, sopesando constantes e pinçando diferenças (na minha cabeça, claro, porque não pretendo escrever sobre isso; passo a tarefa a outrem).

Fecho essa hipótese assim, então: teatro gravado é documento de arquivo de teatro e, nesse quesito, o Cenas do Nordeste faz um troço maravilhoso, que é possibilitar que o Brasil (ou o mundo, ou São Paulo) possa se debruçar sobre tais documentos e perscrutá-los como quem analisa as entranhas de uma rã ou as expressões do ser amado – e olha como tentei ser preciso nessas metáforas porque acho que é isso mesmo e, no fim das contas, se não se tem essa curiosidade ou esse amor, simplesmente não há obra de arte no teatro ou na dança ou na performance gravados e ponto, é isso que acho, a não ser que encaremos, é claro, o documento como obra de arte, e isso estou tranquila e efusivamente disposto a aceitar, se bem que essa não seja uma preferência minha em termos fruitivos, quero dizer, se não posso ir fisicamente a teatros, prefiro livros e filmes e isso me contempla bastante bem ou, melhor dizendo, quase à perfeição, porque uma das coisas que nos faz ir ao teatro é a mesma coisa que sempre fez as pessoas irem ao teatro, sejam elas aristocratas francesas, ralé londrina ou hipsters brazyleiros, e o nome dessa coisa é a vontade de ver e ser visto, uma afirmação dessa não há como negar, mesmo que se tente em prol de motivos edificantes; e não é que tais motivos deixem de estar presentes, mas mais presentes ainda que os motivos edificantes é a vontade de ver e ser visto; se a pessoa é minimamente honesta consigo mesma, isso ela não pode negar.

 

II

Por outro lado, se uma peça do dito teatro virtual foi pensada para ser um produto audiovisual, ou seja, se houve (e aqui os acadêmicos piram) uma tradução intersemiótica, rumamos a outras plagas porque aí a coisa toda se resumirá, talvez, apenas a uma questão de categorias, suscitando por exemplo a renitente pergunta “isso é teatro ou vídeo?”.

Porém, como somos seres contemporâneos e não gostamos (é o que dizemos) de categorizar (é o que dizemos), esta fica sendo uma querela produtiva apenas para certos curadores e certos críticos-fariseus, aqueles porque devem vender teatro ou vídeo (ou “suas hibridações”), estes porque devem revender de segunda mão (baratinho), teatro ou vídeo (ou “suas hibridações”).

Um exemplo revelador é a primeira peça que vi nesse festival, a Medeia Negra, de Marcia Limma, onde obviamente foi feito um trabalho de (preparem-se) tradução intersemiótica, restando a mim, enquanto crítico, fruir a engenhosidade de certos planos e ângulos, do pensamento fotográfico, do ritmo da montagem etc., deixando a dita presença-física (sic) da atriz fora da análise, ao menos provisoriamente, não porque ela não tenha dado conta do recado, isso não, muito pelo contrário, mas porque eu entendi, vendo-a, que, enquanto todas as coisas foram traduzidas intersemioticamente, a performance corporal dela não o foi, quero dizer, não foram traduzidos intersemioticamente o timbre e o volume da voz, a amplitude e a intensidade dos movimentos.

Se você pegar um produto audiovisual, um filme, por ex., vai ver que os corpos na tela agem dentro de certo espectro comportamental (enorme) específico à história desta linguagem e específico ao que a câmera solicita, e se esse argumento parecer uma bobagem ou uma prisão inventada por um crítico-em-isolamento, basta pegar qualquer um dos filmes de Glauber Rocha e ver que até a extrema teatralidade proposta ali (por teatral, leia-se: corpo e voz projetados para funcionar em grandes espaços) é na verdade uma teatralidade-feita-para-a-câmera e, mesmo assim, olha só, hoje em dia a gente só pode assistir a Glauber como Glauber, assim como a gente fala do tio Sérgio como tio Sérgio [tio genérico] até porque, se falássemos do tio Sérgio desde um ângulo que não o do próprio tio-Sérgio-como-categoria (historicamente situado na linhagem dos tios), não poderíamos perdoar qualquer uma das piadas feitas por Sérgio (aqui sem a muleta do tio) em almoços de família. Daí que se hoje podemos nos regalar com a teatralidade dos filmes de Glauber, é apenas na medida em que podemos enquadrá-la numa expectativa glauberiana (i.e., sob uma lente histórica), assim como sou forçado a enquadrar o tio Sérgio na sua própria sergialidade para poder suportá-lo enquanto pessoa.

Logo, para criticar ou fruir bem o Medeia Negra, precisei aceitar que, enquanto o enquadramento era audiovisual, a performance corporal era teatral, ou seja, seu corpo estava projetado para espaços físicos e não para espaços virtuais. Digo isso enquanto crítico, é claro, porque se eu fosse um espectador aprioristicamente-procurando-ser-afetado-no-meu-ser-pela-obra (eis uma definição ok de espectador leigo), a obra em questão me contentaria sublimemente, ainda que, por outro lado, eu não pudesse pensar muito bem sobre a obra, pois penso que pensar criticamente é macular sim, ao menos um pouquinho, as nossas sensações e sentimentos, despindo-as da sua condição de verdade & arrebatamento & paixão etc. Agora estou satisfeito com esta hipótese e fico por aqui.

 

III

Se, na dita teatralidade, há qualquer coisa específica que ultrapasse em importância o corpo-feito-para-funcionar-em-espaços-amplos, esta é a possibilidade de dar tudo errado.

A essa altura, eu poderia defender até mesmo a ideia de que sem esse corpo-feito-para-funcionar-em-espaços-amplos e sem a possibilidade de dar tudo errado não há teatro, se bem que a possibilidade de dar tudo errado parece ser a essência mesma do teatro, prescindindo de qualquer corpo ou espaço amplo, afinal tudo tem a possibilidade de dar errado, com corpo ou sem corpo, com espaço amplo ou sem espaço amplo e, se o teatro é mesmo o espelho da vida na sua estrutura de acontecimento, é porque tanto a vida quanto o teatro têm por base a possibilidade de dar tudo errado, isso Shakespeare sempre nos lembra e o resto é silêncio.

Certo, a música ao vivo também pode dar errado, mas veja: se uma música ao vivo dá muito errado e a todo o momento ela dá errado, escutar essa mesma música gravada em boa qualidade pode ser muito melhor do que ir a um show, o que, para alguns, pode ser, ainda por cima, uma grande vantagem, e me boto entre estes.

Mas a performance art também pode dar errado. Ah sim, disso ninguém duvida, mas se hoje a performance art pode dar errado com maestria (sendo talvez a arte-do-infortúnio por excelência) é porque um dia os artistas plásticos cansaram de fazer obras que davam certo e descobriram como fazer as suas obras não só darem errado mas também darem errado na frente dos outros e não apenas no ateliê, e tenho a certeza de que, se os inventores da performance art puderam fazer as suas obras darem errado ao vivo, foi porque eles copiaram a capacidade que o teatro tem de dar errado na sua totalidade, a todo momento e de formas assombrosas e vexatórias; defendo, por tabela, a ideia de que a performance art deve muito ao teatro e o teatro não deve nada à performance art, ah, um dia cobraremos essa conta.

Certo, certo, mas a dança (a “dãããça”) dá errado o tempo todo também, tá, mêo?; ah sim, isso é verdade, basta ver uma dança escolhida ao acaso; mas suspeito que, se você botar palavras nas bocas dos dançarinos, a dança vira teatro e se você calar a boca dos atores o teatro vira dança, ou seja, se a dança dá errado é porque ela já é teatro, até porque, historicamente falando, o teatro, enquanto linguagem profissional, veio antes da dança enquanto linguagem profissional, contanto que por linguagem profissional do teatro leiamos a linguagem profissional de fazer tudo poder dar errado, não em detalhes, mas no todo, então o teatro fica sendo a arte de produzir catástrofes e se a dança e a performance art e a música ao vivo também produzem catástrofes, é porque aprenderam bastante bem com o teatro e isso Beckett sempre nos lembra. Vamos? Vamos.

Daí que, se o dito teatro virtual pode fazer jus à teatralidade contida no seu próprio nome, é apenas na medida em que esse teatro virtual possa dar errado, mas calma lá, não dar errado porque ele, enquanto documento de arquivo, travou no meio da reprodução (como Mi Madre travou para mim), nem porque deu errado enquanto tradução intersemiótica na hora de virar vídeo, mas sim no momento em que esse teatro virtual acolheu em sua própria estrutura a capacidade de dar errado, i.e., no momento em que o erro virou uma potencialidade inerente à sua estrutura e não um acidente.

Seguindo esse argumento, defendo que os únicos teatros virtuais que podem fazer jus ao seu próprio nome são os teatros virtuais apresentados ao vivo em plataformas de reunião virtual, porque é aí que reina a confusão e a possibilidade da baixaria é elevada à máxima potência.

Me vem agora a pergunta: “que é o teatro senão a possibilidade do desencontro no encontro, do caos na ordem, do ridículo no belo, da confusão na harmonia e da baixaria erigida enquanto poética?”. Nada.

Inclusive, sempre encarei todas as tentativas de limpeza no teatro (o minimalismo do preto sobre preto contemporâneo, p. ex.) como uma terrível traição a essa linguagem milenar que, como já disse, tem a desgraça e a miséria e o ridículo e a catástrofe enraizados na alma, isso se estas qualidades não constituírem precisamente a própria alma do teatro.

Adendo de foro íntimo: se eu não vi muitos teatros ou danças ou performances virtuais em plataformas ao vivo foi porque eu odeio encontros remotos (desde o telefone às recentes aulas à distância) e os odeio até com maior intensidade do que odeio desde sempre os ditos encontros físicos (tomados enquanto generalidade), i.e., odeio os encontros remotos porque, frente aos encontros físicos, eles têm menos possibilidades catastróficas e, como já devo ter deixado claro, é da beleza da catástrofe que se vive.

Então, se o teatro virtual pode ser encontro, é só porque antes disso ele tem que ser desencontro, e disso não abro mão.

 

Em suma

O teatro (ou a dança ou a performance) virtual tem que poder dar errado para poder dar certo.

 


Daniel Guerra Daniel Guerra é crítico de arte, editor da Barril, artista e doutorando pelo programa de pós-graduação em Artes Cênicas da UFBA, tendo como eixo de pesquisa o conceito de Acontecimento Cênico.

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