Crítica | Cênicas


Silêncio

maio de 2017

Edição:


Crítica a partir de Entrelinhas, obra de Jack Elesbão.

Segundo John Cage[1], Kant dizia que há duas coisas no mundo que não reclamavam por significados: a música e o riso – desconfiável seleção. Levando em conta as iniciativas musicais do primeiro, será possível perceber que o enunciado de Kant fomentava as problematizações entre som e silêncio que foram levantadas pelo compositor americano. Cage tinha um certo fascínio pela liberdade sonora, um romantismo coerente para o anarquista que era. Essa liberdade sonora, digna de amor, nada mais é que o próprio silêncio – talvez nisso Cage tenha acertado, o silêncio sempre será uma questão de exterioridade. Mas nunca direi que John poderia ter sido menos intransigente, quando percebeu, se dispondo de uma possível ingenuidade, que estar envolvido pelo silêncio é uma das questões mais hediondas. Não sei se o próprio gostaria de ter ouvido aquele silêncio no Cabaré dos Novos, quando Jack Elesbão simbolizava as violências a partir de uma performance de adestramento da mulher.

Entrelinhas, nome demasiado lacônico para uma obra, um pequeno disparate para com a lógica bárbara do mercado. Porém, há no nome um convite severo, uma necessária austeridade que reclama minha atenção. Um convite feito por Jack Elesbão para algo, talvez, anômalo na dança contemporânea: uma relação inventariada nos símbolos. A carga simbólica que constitui a coreografia parece ansiar por uma ideia antissoporífica. Inegavelmente, é uma obra criada, em primeira estância, para a visão. Os elementos levantados, contudo, tentam instigar os olhos para que a imagem force uma abertura em nossos auvidos. É assim, a partir desses dados imagéticos e simbólicos, que Elesbão parece buscar uma aliança entre visão e audição em sua performance. Visão como disparo ou ferramenta, e audição como sensação, coisa desejada, ou melhor, o discurso nas entrelinhas da obra.

Não era necessário esperarmos nosso contato com a máscara de flandres, usada pela dançarina, para identificarmos que a obra também tem como motivação a própria experiência de Jack, uma mulher negra, que, com efeito, sabe das opressões e agressões que potencializam essa condição. A máscara surge como um gatilho para começarmos o processo de desautomatização dos ouvidos, estabelecermos um contato com as violências existentes no silenciamento[2]. A imagem dessa mulher negra, ao centro do tablado – enquanto oscila entre estar de perfil, de frente e de costas -, com a máscara de flandres e com um canhão de luz sobre o seu corpo, é a primeira que vemos quando entramos no Cabaré dos Novos.

É nesse momento que temos contato com todos os elementos que compõem a obra: um código de barras sobre o sexo, a considerável quantidade de sutiãs sobrepostos por Jack, o salto alto, uma ave-maria e o samba – a performer samba, fluidamente, quase em slow motion, tendo a versão de Schubert como ambiência sonora. Mas antes disso, os sinais. Aqueles, presentes e característicos de uma edifício teatral de respeito, como é o caso do Teatro Vila Velha. As velhas e autoritárias pancadas de Molière, ainda pedem por “silêncio” –  uma das carências que edifica a tradição teatral. Depois do 2º sinal, uma voz anuncia os apoiadores do Teatro, algumas marcas. A voz amplia o discurso de Jack. O código de barra sobre o sexo, o flandres e as marcas anunciadas se tornam prelúdio. A voz do mercado e a mulher com o código de barras. Uma cruel significação.

Mas lidar com simbologias atualmente, se torna muito perigoso; no fundo, desde sempre. A armadilha está no duro processo de tradução. Por essa via, a obra artística pode cair na atraente possibilidade de propor uma linguagem comum ao ensemble. Ou seja, não há colapsos ou crises e, por consequência, não há crise no contato com a obra.  Contudo, o símbolo pode funcionar como uma espécie de corpo, pronto para exumação. Ele próprio só resta em simples matéria, pronto para reprogramações; em arte, uma relação em “entrelinhas”. Foi assim que Susan Sontag[3] se relacionou com a obra de Bergman, “interpretando” além do convite para a interpretação.

Entrelinhas lida com essa zona de risco: o sutiã, o cristianismo, a máscara de flandres, o código de barras, o crucifixo que também está sobre o sexo em momento pontual. Instituição religiosa, poder econômico e mercado, leio como os disparadores de tal agressão ao corpo dessa mulher negra; e sim, eles são.  Mas como a performance possui uma espécie de processo anticatártico, numa sequência de mais ou menos três quadros, cair nessa armadilha da tradução, uma vez ou outra, se torna real. Mas é no segundo quadro que encontramos aquele silêncio.

 

Mas lidar com simbologias atualmente, se torna muito perigoso; no fundo, desde sempre. A armadilha está no duro processo de tradução. Por essa via, a obra artística pode cair na atraente possibilidade de propor uma linguagem comum ao ensemble

 

Jack fica de quatro sobre o tablado do Cabaré dos Novos, anda por ele nessa posição. Faz movimentos que lembram o processo de adestramento de animais como um cachorro ou cavalo. Não sabemos se a dançarina está chorando ou rindo atrás da máscara. Há uma angústia, e uma fissura é aberta em Entrelinhas – um dia ouvi de alguém que Fernando Guerreiro, durante a temporada de suas peças, somente assiste o seu “público”. Me peguei fazendo o mesmo: homens constrangidos, uma mulher chorando, outra com a mão no rosto como se não quisesse “ouvir” aquilo ou, quem sabe, ouvindo notas similares, progressões íntimas… uma outra atonalidade. Quase 10min de tensão que pareceram 60. Nas entrelinhas o contrassenso. Uma harmônica áspera.

As palmas finais, tão juntinhas, tão em coro, tão absurdamente altas… Disfônicas perante a voz de Jack Elesbão.

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[1] Foi um compositor e teórico musical norte-americano. Um dos ícones da música aleatória que também integrou o movimento Fluxus.

[2] A performance de Jack tem ressonância em obras como Há Violência no Silêncio?, peça coreográfica com direção de Nirlyn Seijas e Obsessiva Dantesca, performance cênico-musical de Laís Machado. Na Revista BARRIL tem crítica e Rizoma sobre essas obras. Respectivamente nas edições 5 e 8 da Revista.

[3]Foi uma ensaísta, romancista, crítica de arte e ativista norte-americana. Esreveu ensaios como A Vontade Radical, Sob o Signo de Saturno e Contra a Interpretação.

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