Rizoma | Cênicas


Foto de Shirley Stolze

SER E NÃO SER

março de 2016

Edição: 1


Depois do escuro que sempre relembra que o teatro é feito de morte, Darth Vader de Olinda aparece na cadeira giratória envolto em fumaça. Então o primeiro riso da platéia é a senha e a marca. Darth retira o capuz e aparece Ricardo Kannário trazendo na voz séculos e séculos de teatro baiano, com óculos escuros dizendo que é Ramlet (com erre e não agá). Com um sotaque não necessariamente soteropolitano, mas aquele sedimentado sotaque soteropolitano de teatro soteropolitano, Ricardo-incorporação-de-séculos-de-teatro-soteropolitano-Kannário levanta fazendo vibrar energias de teatro essencial. Mas Ricardo Stoklos é muito melhor que a velhota. Seu corpo sequer precisa mover-se demais. Meyerhold trabalhou ali, junto com Déda, dois santos por uma cabeça, dizendo “menos é mais”. Porém que nada, o menino já veio de berço e mostra toda a ginga incorporada em anos de lida. “Menos é mais o caralho, eu levanto um dedo e eles riem”. Com uma externalidade monumental, elegante, sacana, calculada e calma, agora é Ricardo Brecht: tem todos os fios nas mãos e os vai manipulando. Tem um Ricardo vendo o que o outro Ricardo faz – tem um Ricardo que chora por dentro ou por fora, enquanto outro, por fora ou por dentro, sorri vendo Ricardo chorar. Mas nunca o Brecht baiano: o Brecht de Cunha, o Brecht de Marfuz, o Brecht de Dourado, o Brecht de Ceccucci, o Brecht de Vargens, o Brecht do Vila, o Brecht de Júlia. Ricardo Brecht é o Brecht alemão, o alemãozão original, o que me leva pra Alemanha e depois pra Inglaterra, porque as luzes de ribalta me colocam em contato romântico com o maior teatro popular do mundo, o elisabetano, em que coexistia sombra com riso, e onde os artistas realmente ganhavam dinheiro com o suor do trabalho. Shakespeare: o público está na minha mão. É verdade. Teatro mínimo de Ricardo Castro III, que com pouco (fita crepe) faz um milhão. Vive disso, e isso transparece – é pura paixão, vem como signo visível. Mas ele não transpira, não, não, não… porque além de ser Ricardo Castro III, amigo de Shakespeare e Queen Elisabeth e do público Real, é tambémRicardo Stoklos, só que melhor que Stoklos porque com apenas um dedo abala todas as estruturas. Faz um teatro de citação também, como James Joyce gostaria de ter visto: Ricardo Bloom. Frases que eu não entendia mas que o público entendia e apareciam aqui e ali estimulando as glândulas sorridentes muito facilmente. Mas no frigir dos ovos o que ele é mesmo é Ricardo Fo. Ricardo Fo Deu porque esse mero gesto fez a platéia ir ao delírio (aquele que consiste em bater com a palma de uma mão na outra mão fechada) e eu aprendi muito nesse momento, pra mim foi genial; e Ricardo Fo Deroso, porque é um monstro sagrado e vive há muito tempo de teatro. Ricardo Fo é parceiro de Fernanda Mo, Paulo Au e Sarah Ber, assim como de Iami Re, Carlos Be e Marcelo Pra entre tantos outros orixás. Viverão para sempre em nossos corações como o axé music na cabeça do povo. Ricardo ama seu público, e isso é perceptível ao final de tudo, no agradecimento, que aliás lembra os agradecimentos dos teatros classicistas, que com a luz de ribalta fica ainda mais bonito, bonito mesmo; aquele movimento em que o braço se estende pro lado como num balé e o pé fica na ponta discretamente na mesma hora em que a cabeça e tronco caem pro lado oposto. Mas calma, voltemos… Antes da luz de platéia ter acendido ocorreu a grande visão. Naquele lapso do blackout, uma senhora muito parecida com as outras (maquillage-superperfumadas-com-seus-maridos) surgiu na cadeira ao lado, brilhante com um fantasma. Olhou nos meus olhos e com um sorriso disse: “o público também é uma escolha estética”. Escutei como se escuta nos sonhos, onde uma frase de Sócrates pode surgir da boca de uma girafa. Senti um pequeno calafrio e antes de responder qualquer coisa a luz já se havia acendido e Mme. Uzêda desapareceu deixando apenas um sentimento de “fica a dica” no ar. Eis o tipo de coisa que só pode acontecer na nossa Salvador de todas as Dinamarcas.

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