Selfie | Audiovisual


Foto do filme Café com Canela

Recordações do Não-Vivido

junho de 2018

Edição: 20


Sobre Café com Canela (2017), de Glenda Nicácio e Ary Rosa

A minha avó negra estava lá, na figura de uma senhora sendo alimentada pela neta. Toda a minha ancestralidade também, mesclada naquela estética, nos rostos, na toalha de renda sobre a mesa, nas falas, no samba de roda, nas crianças brincando nas ruas com calçada de pedra, no Rio Paraguaçu que corta a cidade. Todos os elementos do filme fazendo sentido, quase um álbum de família.

Desde muito pequena, ouvia a história de um casal que namorava entre as duas cidades: ela vivia em São Félix; ele, em Cachoeira. Todas as semanas, ele atravessava uma ponte que ligava os dois povoados, construída na época do Império, para visitar sua namorada. Sempre imaginei aquela ponte, sem nunca conhecê-la. Sempre imaginei aquele casal, mas, também, sem conhecê-los, os via parecidos comigo – já que neles havia minha semente. O rio separava as cidades, mas unia e supria de romance a vida daquele casal. Depois o casamento, os filhos e a mudança da nova família para o subúrbio do Rio de Janeiro, para tentar a vida. Uma daquelas crianças, trazida no colo pela mãe, viria a ser meu avô, já falecido, o qual nunca cheguei a conhecer. Toda essa recordação, contudo, cresceu comigo com cor, cheiro, música e sotaque.

É curioso demais reviver o não-vivido. Ter aquele tipo de memória do que foi vivido por outros, mas não experienciado pessoalmente. Mais curioso ainda, é imaginar que essa memória existe, de alguma maneira, porque um pedaço de si já esteve no passado, no corpo e mente de pessoas que sequer sabemos o rosto. E permanecerá no futuro, incorporada na cultura e nos espaços em que a sua trajetória e a desses rostos anônimos existiram. Esse espaço da memória, essa ponte entre dois mundos, essa ligação entre o passado ancestral e o imaginário presente, para mim, sempre teve endereço e lugar no recôncavo da Bahia.

Não por acaso, para escrever sobre sentimentos a partir de uma experiência fílmica, para falar do ser, do self, eu tivesse que revisitar esse lugar através de Café com Canela, longa metragem de ficção, cuja história se passa nas memórias do não-vivido, exatamente entre as duas cidades de meus antepassados.

O filme, que evidencia o olhar e a fala a partir do feminino – por incrível que pareça, coisa bastante rara ainda nos dias de hoje -, reconstruiu em mim memórias afetivas que eu tinha deixado lá no fundo do baú das recordações, daquelas que fazem lembrar dos encontros na casa da minha bisavó, uma casa de mulheres, em que as filhas percorriam a casa servido bebida e comida para a família, rindo alto, fazendo galhofa das situações e das intimidades dos outros. Sem pudores, sem muita etiqueta, mas com verdade, sempre com muita verdade.

O que mais envolve, no entanto, não é a aventura do cotidiano, os risos em família, ou a vontade de cantarolar “peguei o trem do amor” junto com Edson Gomes. Se bem que isto também conta, claro. A faca amolada deste enredo é, sem dúvida, a frustração do insubstituível. Ou como diria um velho amigo, não é o pratrásmente e sim o prafrentemente.

Pensem em como é difícil re-cordar – segundo a etimologia da palavra, trazer de novo ao coração – o que não se poderá viver com quem se ama ou deseja. Essa memória nem irá existir, mas, ao mesmo tempo, já existe, já faz falta. Por isso, ouso dizer que a memória do não-vivido afeta, mas a recordação do que não poderá ser vivido é contundente e, por vezes, parece retirar um pedaço; é metade exilada, metade amputada.

Café com Canela é um filme sobre perda, esse nó na garganta pelo qual passeia a narrativa, e que faz com que nossas memórias transbordem no conflito. Mas também é sobre força, dosando cenas de intensidade e delicadeza – já que na força feminina, sabemos, também reside esse mistério que conjuga ambas facetas.

Enfim, essa experiência me rendeu duas novas receitinhas para lidar com o mundo: numa chaleira, ferva a água já com dois ou três paus de canela, e depois passe o café. E, sempre, mesmo quando parecer impossível ou improvável, um levante.


Renata Magioli é fotógrafa, roteirista e pesquisadora do audiovisual.

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