Ensaio | Cênicas


“Sun Ra, The Shadows Cast by Tomorrow”

Primeiro Estudo – O Espaço

Se, de repente, começarmos a ouvir os artistas[1] que falam e produzem arte contemporânea negra[2] em Salvador, corremos o risco de termos um dos maiores abalos sísmicos no meio artístico da cidade. Não seria injusto se isso acontecesse na cidade mais negra fora da África. Salvador possui essa potência, de ser um dos grandes focos dessa discussão, não só no que tange às políticas raciais, como também nos vórtices da produção artística soteropolitana, principalmente, no debate e produção de performances afro-diaspóricas.  Contudo, estamos falando de uma cidade colonial, e ouvir esses artistas seria romper com o modo monolítico. Num momento em que tudo passa a ser uma questão de representação, muitos ambicionam ser o herói civilizador.

Hoje, quando se fala em arte negra (ou teatro negro, ou dança negra, etc.) possíveis imagens-síntese vêm à cabeça. Há o entendimento torto de que a produção artística negra se associa, somente, à religiosidade de matriz africana ou a males sociais, lançando muitas das produções num folclore (estático e histórico) e criando uma espécie de essencialismo negro, dando arcabouço para um negro religioso ou um negro flagelado – não há, aqui, um pingo de retidão crítica. Imediatamente, o pré-entendimento de que essa produção possui formas e “conceitos estéticos rígidos”, que, uma vez estabelecidos, propagam a falsa acepção do que é e do que não é arte negra.

É de tal circunscrição, estética ou arte negra (e do outro lado toda a pluralidade de empreendimentos artísticos), que se cria a linha de mercado, que enquadra o que é e o que não é, o que deve ser consumido ou não; e é nessa área propícia que o frenesi pela representação vem à luz.

Parafraseando o professor Carlindo Fausto Antônio (UNILAB), não basta um negro ou uma negra possuir um significativo status, ocupando os chamados espaços de poder, para que estejamos salvaguardados, limpos de nosso desprivilégio. É importante, e doloroso, assumirmos que fomos (ou seremos) assimilados por um sistema de exclusão, próprio e inerente à colonialidade[3]. Devemos nos desvincular do que foi assimilado e do que nos ensinam sobre o conceito de “representação”; é a partir daí que deixaremos de ser apáticos, deixando de engrossar o coro de “você me representa!”. Se analisarmos a partir dessas sutilezas, o termo e conceitualização de arte negra – muito cara em um período e tão inspirada pelos pensadores pan-africanos – trata-se, hoje, de uma modus operandi, uma cartilha de produção estéril e ensimesmada, que possui o bucólico desejo de criar/assimilar representantes e acalmar as massas – para não dizer, enfraquecê-las.

Na contramão disso, a arte contemporânea negra é capaz de apresentar um dos elementos primais para o possível abalo sísmico, o desmoronamento da necessidade do “representante”. A ideia de contemporâneo já nos obriga a analisar, produzir e estar disponível para outras possibilidades éticas, subjetivas e estéticas em arte; nos obriga a dialogar com um território de vasta e incessante experimentação artística, já que assumir-se contemporâneo é assumir o processo como obra. É uma área disponível para as variadas subjetividades que, agindo em paralelo, afirmam as passadas e as do porvir.

Se a arte contemporânea nasce de um mundo fragmentado e polarizado entre capitalistas e comunistas, da efervescência das vertentes pós-estruturalistas e desconstrutuvistas, a arte contemporânea negra vem à luz com um programa de construção futurista, criando espaços para novas epistemes, novas narrativas. A arte contemporânea negra é, pois, um ethos decolonial, senão uma iniciativa epistêmica da produção dos desejos, uma espécie de revolução haitiana das artes em constante transmutação que decide acabar com a passividade.

A relação entre arte contemporânea negra e decolonialidade deve ser analisada aqui pelo viés fundamental da segunda proposição, uma atitude transdisciplinar de emancipação econômica, política, cultural e, neste caso, artística. Adentrar a zona da arte contemporânea negra é submergir numa performance que, em exposição de sua autoconsciência, busca mudar padrões coloniais do ser, do saber e do poder em ato estético-performativo. Em todo caso, é necessário corpo, uma dose significativa de exposição física e psíquica. Se para Fanon a decolonização é atitude e processo dentro das ciências humanas, diferindo dos pensamentos pós-coloniais que se atêm ao estudo crítico das reverberações do sistema colonial/territorialista, é nas artes negras contemporâneas que podemos encontrar isso num caráter mais radical – talvez, algo próximo das críticas de Soyinka aos pensamentos políticos, estéticos e culturais de Césaire e Senghor[4].

Essa radicalidade não se origina nas possíveis formas e técnicas não-convencionais, mas na escolha ética, de uma nova ética – analisar somente a partir da fruição, ou seja, a partir de algum método hermenêutico (interpretativo), seria apequenar de modo cruel a experiência. É dessa escolha ética que tudo pode sobejar. Contudo, se a obra do artista contemporâneo negro propõe uma nova ética no que se refere a um determinado corpo negro, ela assume a sua total fragilidade. Essa é a condição da decolonização enquanto atitude (performance) e processo, a total exposição do artista negro.

Essa escolha expositiva se encontra em um entendimento precioso do artista, o protagonismo de sua própria obra. Não há interesse mítico em tais obras que coloque o artista no lugar de alegoria ou representação de uma comunidade negra – isso não significa que ele, em performance, não lance mão de expor essas questões; elas surgem de sua intangibilidade, o motor primeiro. Esse artista não está coberto e/ou protegido pela periferia negra, ele não ocupa o lugar dela, ele não é a periferia, mas um corpo negro vindo dela, com suas questões e éticas, com sua subjetividade em caráter performativo, trazendo à luz outros posicionamentos e atitudes. Novíssimas epistemes, novíssimas narrativas, outras vozes. Isso muda tudo.

Isso posto, a relação com a obra de um artista negro contemporâneo demanda também um novo posicionamento crítico. Se essas obras correspondem a uma atitude decolonial, logo, epistêmica, consequentemente se organiza uma outra forma de relação que não a clássica. Temos então uma dupla responsabilidade agindo no momento de fruição dos acontecimentos artísticos; uma delas, de modo óbvio, está com o artista.

A responsabilidade do receptor não se encontra, somente, na aceitação de um novo contato com “um objeto” para sua análise, mas na aceitação ou não aceitação de um convite, o encontro com um posicionamento ou uma lógica performativa decolonial a partir da experiência de um corpo negro. Por essa via, aceitando ou não o convite, não há distanciamento possível do receptor para com a obra, ele é visto como um dos elementos poéticos, também em caráter expositivo, passível de sua própria crítica. Analisar a obra do artista negro contemporâneo pelo grosso viés hermenêutico é recorrer aos métodos já pré-estabelecidos, logo coloniais. Isso seria uma sabotagem estética.

Por último, lanço algumas poucas palavras sobre o tema do próximo texto desta série de estudos, o tempo.

Acima de tudo, há também um turvamento de tempo nessas obras, em seus temas, em sua forma, em sua supressão, dilatação ou mescla. Isso não deve ser visto como algo estranho, se levarmos em conta a amnésia histórica que temos quanto à condição negra no Brasil e, paradoxalmente, em Salvador. Dentro da área da arte contemporânea negra, existe a criação nas lacunas, nas vagas, nos vazios. É um terreno perigoso e, quase certeza, para iniciados. Para o artista negro contemporâneo, criar seria lembrar. Um retorno ao futuro[5].

_________________________________________________________________

[1] Esses artistas são oriundos de diferentes áreas. Entretanto, suas obras se configuram enquanto plataformas multiartísticas e/ou transdisciplinares, criando e propondo novas epistemologias. Muitas delas borram as fronteiras entre as vertentes artísticas e a relação espaço-tempo, apresentando-se como poéticas contemporâneas decoloniais, seja pelo caráter poético-metodológico ou poético-temático; a exemplo das produções das artistas baianas Sanara Rocha, Diego Alcantara, Laís Machado, Alex Simões, Diego Pinheiro, Aline Brune, Tina Melo, Michelle Mattiuzzi (SP/BA) e Malayka SN. Pretendo analisar caso a caso nos próximos textos deste estudo.

[2] Não pretendo setorizar, como: teatro negro contemporâneo ou dança negra contemporânea.  Para mim quando se fala em arte contemporânea negra, se fala numa mescla contundente entre as disciplinas artísticas. Essa é a condição transdisciplinar do processo decolonial em arte.

[3] O termo é amplamente discutido pelo grupo latino-americano Modernidade/Colonialidade. Entende-se por colonialidade a continuação dos métodos de exploração, na modernidade, nos países que que sofreram com o colonialismo, assim definida por Walter Mignolo (em citação no artigo América Latina e Giro Decolonial de Luciana Ballestrin) como sistema que “reproduz em uma tripla dimensão: a do poder, do saber e do ser. E mais do que isso: a colonialidade é o lado obscuro e necessário da modernidade; e a sua parte indissociavelmente constitutiva.” (Mignolo, 2003, p. 30).

[4]  Aimé Césaire (poeta, dramaturgo e político ) e Léopold Sédar Senghor (político e ex-presidente do Senegal) são considerados os criadores do termo e conceitualização da ideia de négritude, movimento estético, cultural e político afro-franco-caribenho. O conceito foi crucial para alavancar os processos decoloniais na África. Apesar desse motor, alguns intelectuais e artistas da diáspora africana e da África, como o dramaturgo Wole Soyinka, criticavam o pensamento, achando-o ingênuo e simplista, tornando-se famosa a citação de Soyinka “O tigre não declara sua ‘tigritude’ na selva. Salta sobre sua presa e a devora.”.

[5] Referência ao livro de Walter Smetak, Retorno ao Futuro (ao espírito).

2018 | Revista Barril - ISSN 2526-8872 - Todos os direitos reservados.