Treta | Cênicas


Querido Pretato,

maio de 2017

Edição: 12


Tudo bem com você? Eu sei que não, mas as convenções de gênero me mandam iniciar uma carta saudando o interlocutor, estabelecendo a função fática da comunicação, naquela em que se verifica a eficácia do canal. Seguindo esse protocolo, sigo dando notícias do que se passou entre uma carta e outra, mas como não é o caso, pois se trata da primeira e talvez única carta, vou contar sobre os últimos acontecimentos relacionados à sua existência e que eu pude testemunhar. Nesse gesto, vou cumprir o itinerário do gênero híbrido carta-treta, ao mesmo tempo que situo minimamente os leitores do que se trata o objeto deste texto.

Tenho ouvido falar de vocês e sei que todas as terças, às 19h, no fuso soteropolitano, vocês apresentam uma ação de caráter estético-político, inspirado ou revertendo o Ato de Quatro[1], que é uma ação da Escola de Teatro da UFBA. Há uma série de imbróglios envolvendo vocês e eles, mas faltam muitos dados para abordar isso aqui. Como essa tensão é objeto de um Processo Administrativo e por não se tratar, aqui, de uma reportagem investigativa, vou fazer o recorte a partir do que eu pude ver: não os imbróglios fora da cena, mas os imbróglios em e em torno da cena. E talvez tentar apontar para algumas estratégias e táticas que o Pretato[2] vem usando nos três momentos em que tive a oportunidade de assistir.

Mesmo já tendo ouvido falar muita coisa sobre, o primeiro contato que tive com a encenação que vocês levam à Escola de Teatro foi na vizinha Escola de Belas Artes, na Mostra de Performance da EBA. Vocês apresentaram o “Afroconveniência”, uma ação performativa encenada a partir de um clipe de Saulo, uma situação constrangedora para a querida gente não branca ou “passável” ali presente. Eram corpos negros se sobrepondo a uma imagem em que um cantor branco, loiro, baiano, de classe média-alta, de sorriso feliz, cantava África-Iô-Iô Salvador meu amor minha raiz… ad infinitum.  Os corpos de vocês promoviam uma tensão pela presença, pela diferença não só da pele, mas do uso da tecnologia do Power point, do videoclipe, com a precariedade dos recursos que vocês, seus corpos, figurinos, adereços, nos apresentavam. Tinha entre alguns que assistiam um constrangimento necessário. Ainda que, no momento em que acaba o clipe, a performance perca força. Porque ali, naquela hora de apontar o dedo na ferida, olhando em nossos olhos e segurando o clima de constrangimento, o que vi foram corpos fortes em uma encenação nem tanto. O saque de propor seminário/simpósio GT para discutir o genocídio negro funciona, a onda é como dizer isso e como fazer do constrangimento um passo de dança. Isso foi em abril e me deu vontade de ver vocês.

Fui semana passada e foi muito massa ver o público que vocês mobilizam. Cheguei cedo e ao esperar começar vi uma roda de free stile incrível. Minas e manos se desafiando nas rimas, ao som de uma batida beatbox. Vi lá dentro dos muros da Escola de Teatro minas e manos, negras e negros, em sua maioria em idade secundarista, tendo um contato com a universidade mediada por vocês. Fiquei pensando na potência desse encontro entre esse público, a UFBA, a ETUFBA e vocês.

E é aí   que quando vocês começam, depois da lindeza do free style, o que vejo é uma sequência de ações que apontam todos os clichês da branquitude, que denunciam o racismo, que reagem ao que é indiscutivelmente terrível e que nos massacra, mas que parece se contentar com isso. O clichê é um perigo, porque é sedutor. Até que ponto empretecer o Recital da Novíssima Poesia Baiana é efetivo para discutir o racismo? Até que ponto trazer à cena uma pessoa trans, ou não binária, provocando o riso para depois meter o dedo nas feridas certas, mas sem a inflexão necessária para fazer do riso inicial aquele riso constrangido que vi na EBA é eficaz para a formação dessa plateia e das sensibilidades em torno das afetividades que não as heteronormativas? Até que ponto a empregada doméstica que fala dos direitos trabalhistas não é apenas mais uma mulher negra fazendo o papel de servidão da branquitude, objeto de tantas e tantas objeções de mulheres negras que passaram e ainda passam pela Escola de Teatro da UFBA?

 

Até que ponto trazer à cena uma pessoa trans, ou não binária, provocando o riso para depois meter o dedo nas feridas certas, mas sem a inflexão necessária para fazer do riso inicial aquele riso constrangido que vi na EBA é eficaz para a formação dessa plateia e das sensibilidades em torno das afetividades que não as heteronormativas?

 

Para quem estamos falando? Quais são mesmo as estratégias de formação e de que modo nós podemos incorporar a força dessas vozes, as dissonantes, ritmadas não ao som do Axé malemolente e desconstruído, mas do hip hop no contratempo do Freestyle, não no já mais que usado A Carne mais barata do Mercado é a carne Neeeeeeeegra e o já quase tão desgastado Lemmonade em vez de trazer pro repertório dessa sua plateia o que tá rolando de massa no som LGBTQI de hoje, com as demandas de hoje, com os ruídos de hoje?

Não vou terminar essa carta sem dizer aqui como é bonito de ver o esforço de vocês em levantar a cena, construir um palco, improvisando, usando o cami para a plateia sentar no asfalto. Ver vários motoristas de ônibus cumprimentando vocês. Ouvir uma mulher negra dialogar com o solo da empregada doméstica como se estivesse diante do espelho. Tem um exercício do fazer que é o mais bacana de tudo e tem esse movimento todo das pessoas bonitas que vocês atraem. Falta fazer valer o mote. Falta ser mais esperto que eles. E ter sangue frio.

E desculpe por não me dirigir nem à Organização nem aos professores da Escola. Estou mais interessado mesmo é em ver essa gente bonita que tem ido todas as terças ver o Pretato em outros espaços, inclusive nos palcos, nas dependências da escola e de outros equipamentos culturais. Desconfio que eles tenham muito a nos ensinar sobre arte, cultura e combate ao racismo, ao machismo, à homofobia e à transfobia.

Atenciosamente,

Alex

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