Crítica | Literatura


Foto de Rafael Roncato

Espaço #1

            Engenhos, troncos para chicoteamento, moendas, senzalas, vendas, pequenas igrejas de vila. As edificações fazem soar os ecos sinistros da colonização. Em Angola Janga os cenários vivem nos detalhes e na complexidade de composições espaciais que friccionam a rudeza da arquitetura colonial e as linhas de força da natureza circundante. Seja um limite de parede, uma vara de cana-de-açucar, um cano de espingarda, cada traço riscado entre os vãos da mata aberta traz em si as tensões que vibram no núcleo da civilização ocidental: devastação, ambição, guerra. Valendo-se de planos aéreos e profundidade de campo em momentos decisivos (p. 19 e p. 26), a narrativa consegue ultrapassar o meramente descritivo e torna-se dramática em seus cortes. No entanto, o efeito mais impressionante é alcançado quando temos diante de nós um personagem de costas em primeiro plano e ele está a poucos passos de mudar o rumo da trama; nesse breve instante o autor sugere uma perspectiva subjetiva em terceira pessoa que desestabiliza o leitor. Poderíamos citar outros exemplos (p. 355, p.173), mas continuemos na página 19, onde as cicatrizes de tortura nas costas do escravo Soares movimentam paradoxalmente o cenário do quadro anterior, ao mesmo tempo que revestem de tensão a entrada na casa-grande. Madeira ou pedra, em si, não dizem muito, ainda que matematicamente ordenadas. A arquitetura é, na verdade, uma conquista do mundo civilizado. Porém ao acompanhamos os acontecimentos sinistros da narrativa, vislumbramos a barbárie que carrega esse cenário com simbolos negativos do progresso.

            Mergulho

Um espelho diante de outro espelho repete infinitamente a mesma imagem. A mesma coisa ocorre quando um quadro é reproduzido identicamente dentro de si próprio em menor escala. André Gide batizou esse fenômeno pertubardor de mise en abyme. O mergulho no abismo pode ser realizado em diversos níveis e apresenta possibilidades fascinantes: pintura (Diego Velázquez e Norman Rockwell), cinema (Orson Welles e Christopher Nolan), Literatura (Cervantes) e HQ (Richard McGuire) oferecem abstrações váriadas sobre esse motivo. No último capítulo de Angola Janga há uma sequência que se inicia com a terra vista do espaço, continua com enquadramentos da América, do Brasil, até progressivamente chegar a um beco de metrópole contemporânea onde uma menina de rua olha para o chão. O mise en abyme terminaria aí, mas o chão começa a rachar formando uma fenda que suga a menina para um passagem escura. Surgem engrenagens de madeira, um fio de melaço, fôrmas cônicas para o  açucar e, por fim, vemos a mesma menina (de São Paulo?) no interior de uma senzala na capitania geral de Pernambuco, 1702. Via abismo, D’Salete redesenha os mecanismos de exploração que replicam a condição social do negro no Brasil.

            Espaço #2

A literatura tradicional requer grande trabalho de imaginação para que o leitor construa os espaços descritos no livro. O cinema narrativo também apresenta limitações. A despeito dos grandes esforços de diretores de arte e fotógrafos, os cenários só podem ser vistos por um tempo limitado. Além disso, é preciso disputar a atenção do espectador com os outros elementos da narrativa (personagens, enredo, diálogos, trilha e efeitos sonoros). Os quadrinhos também dialogam com todas essas instâncias, mas eles apresentam uma prerrogativa, pois o leitor pode parar por quanto tempo quiser em determinado quadro, e até mesmo ir e vir pelas páginas a seu bel-prazer. Seguindo esse raciocínio até o limite, teríamos nos quadrinhos uma das atividades humanas mais complexas, uma vez que o autor se esforçaria para acentuar todos aspectos possíveis em cada um dos quadros: figura humana, aspectos abstratos, gráficos etc. Isso não é tecnicamente impossível, mas geralmente acontece de um modo diferente: diante de um número muito grande de quadros para desenhar, o artista elege alguns pontos específicos. Em Angola Janga o acento expressivo recai sobre o espaço. É surpreendente que depois de ter se especializado em ilustrar prédios, ruas e carros – o concreto onipresente de Noite Luz e Encruzilhada –, D’Salete tenha se saído tão bem na tarefa de desenhar e imaginar os espaços do século XVII.  Aqui o livro desenvolve uma perspectiva filosófica poderosa. A poética do espaço em Angola Janga aciona um fenômeno de expansão e adensamento da memória. Considerando os silenciamentos no que concerne às histórias protagonizadas pelos negros no país, a espacialidade rebuscada abre clareiras na memória coletiva e possibilita uma vivência diferente da nossa história, não apenas na temática, mas a partir da ocupação abstrata dos vãos e lacunas do passado.

            Autorretrato com alunos

            Estou com uma turma de Literatura Brasileira I na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, onde sou professor substituto. A disciplina traz esse título positivista e trata dos primórdios das letras no Brasil. São os relatos dos primeiros cronistas, a carta de Caminha, a poesia jesuítica, enfim, textos que os alunos costumam achar maçantes. A bibliografia dos séculos XVI e XVII está centrada no índio nativo e na vida dos portugueses que penam longe da metrópole. Na bibliografia recomendada pelo programa, a figura do negro aparece muito pouco e não há nada sobre Palmares. Quando li Angola Janga pensei que o livro serviria como ponto de partida para discussões sobre a presença africana e os primórdios da população afro-brasileira no país. Seria ainda mais pertinente considerando a geografia da universidade onde estamos, pois o recôncavo da Bahia foi uma região de grande concentração de quilombos, como mostra o “mapa dos principais quilombos e regiões quilombolas no território brasileiro, século XVII ao XIX”, reproduzido na página 426 do quadrinho. Infelizmente, fatores de ordem prática me impediram de trabalhar com o livro. Nas livrarias localizadas em Salvador, a 240 km daqui, o livro custa 80 reais – e na Amazon 56 reais –, valores que os alunos não podem pagar. Tampouco cogitei a possibilidade de distribuir ilegalmente fotocópias ou digitalizações. A solução que achei foi emprestar meu exemplar para que um grupo o leia e apresente um trabalho para a turma. O século XVII de Angola Janga ainda ecoa.


Igor de Albuquerque é editor da Barril e crítico

2018 | Revista Barril - ISSN 2526-8872 - Todos os direitos reservados.