Ensaio | Cênicas


Hombre atrapado con la pinga
Amine Barbuda 2018

QUANDO TRINCAM AS JANELAS

junho de 2018

Edição: 20


Há uma incômoda e intermitente maquinação cochichando na consciência daquele que triunfou. Alcançado algum reconhecimento, ainda ecoa aplauso e confete e já corre a presença fantasmática do homúnculo esgueirando em seu ouvido, como fez o demônio enunciador do Eterno Retorno no Gaia Ciência. Aquilo que a personificação miúda da voz interior sugere, assim deitada no gramado do seu pensamento, são as coisas que se sente e se pensa diante da iminência de um fracasso retumbante. Tal qual o demônio descrito por Nietzsche, desconfio que esse grau de maquinação e flagelo mental reapareça massivamente nas consciências – não só nas daqueles que têm um status escapulindo das mãos – a cada vez que certa geração experimenta o sentimento de projeto civilizacional à beira do precipício, a aproximação do fracasso histórico, o colapso sistêmico, político, ético, econômico ou natural se avizinhando perigosamente,    quando há não apenas a sensação da trajetória pessoal no flerte com o fracasso, mas uma fotografia da comunidade humana descendo em redemoinho pelo ralo – algo mais insistentemente notado em momentos nos quais voltamos a certo ponto de inflexão da História, como quando assolados pela Peste ou pelos colonizadores (o que para os  assolados dá na mesma).

Genocídios, golpes e ditaduras. Onde todas as caixinhas do prédio da vida social nos quais se lia “quebre o vidro em caso de emergência” estavam perturbadoramente intactas quando deveriam estar estilhaçadas. Nos momentos que antecederam estes períodos críticos, a voz do homúnculo-demônio viajava de megafone e era ouvida em tudo quanto era canto (muitas pessoas recentemente até me contaram estar também sob suas alucinações). Essa voz soprava o tempo inteiro “quebre o vidro, quebre o vidro, quebre o vidro, quebre”, apontando para aquelas caixinhas. Pensando bem, talvez este cochicho – aparentemente tão pujante para o caso da Arte – não seja o de um pequeno diabo, mas o de uma das criaturas crepusculares tão presentes nos romances de Kafka, cuja aparência inspira confiança e, não raro, apresentam-se como ajudantes embora sejam incapazes de ajuda. Assim sendo, a arte seria como um desses gnomos ambíguos, asnos que fazem dinheiro, gigantes, larvas e fadas caprichosas que, segundo Agamben, são apenas “personagens que o narrador esquece ao final da história quando os protagonistas são felizes e contentes até o fim de seus dias”[1]?

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Se, para o cristianismo, o fracasso terreno continha a esperança da glória eterna “Os exaltados serão humilhados, os humilhados serão exaltados o livro de Jó que o diga , os estóicos procuravam o estado de ataraxia, a completa ausência de sobressalto, inquietude e preocupação, na qual desgraças e graças eram igualmente irrelevantes. Seguir uma dieta moral de apatia mantinha a musculatura do espírito firme diante de quaisquer perturbações. Esse pessoal podia até ter paz, mas certamente lhes faltava senso de humor. Eu pelo menos nunca soube, gregamente falando, de algum comediógrafo estoico, e se assim me contassem, eu riria. Os pequenos enganos e os problemas de comunicação, o derrotado, o superconfiante (incluamos aqui o supostamente imperturbável também) são a semente da trapalhada cômica. Desarmonia em pequenas proporções sem consequências dolorosas é a lei do riso para Aristóteles (que provavelmente desconhecia cócegas, Jackass ou a dubiedade irônica onipresente no ar que se respira em qualquer D.R.). Woody Allen em Melinda em Melinda (2004), não é tão assertivo: narrando uma mesma história sob as perspectivas cômica e trágica, em separado, especula qual seria o temperamento regente da existência e em ambas, o fracasso está lá como matéria prima da vida humana.

O ar blasé do estoicismo grego não lidava com a acepção moderna corrente para sucesso/fracasso e sim, com a noção que prevaleceu até o medievo: a de fracassos como infortúnio ou azar; algo lá na inalcançável jurisdição divina, fora do campo de ação dos sujeitos, portanto algo que se abate sobre, que acomete. Tufões, terremotos, a seca, a morte de entes queridos, doenças repentinas, acidentes. A era moderna, por sua vez, depois da morte de Deus, cobrou altos juros dos indivíduos, como se dependesse inteira e unicamente de cada um de nós as razões para nossos insucessos. No capitalismo, o triunfo e seu oposto passaram a ser encarados como mérito individual das trajetórias pessoais. “E aí o miserê de nossas vidinhas” ganha uma dimensão toda especial.

Ao que parece, no fracasso histórico, o zeitgeist em forma de cochicho é mais prolífico para as penas, corpos, telas, palcos e ruas que períodos mais tranquilos. Não por acaso, nestes períodos históricos de maior transformação, a identidade de quase todos os criadores ficou permanentemente sublinhada pela tragédia que vivenciaram: “um autor do pós guerra”, “artista do entre guerras”, “a escultora nascida durante o massacre de Kosovo” etc. Em alguns casos, alguns artistas parecem capturar o espírito de seu tempo de tal modo que ultrapassaram a tradução do presente, chegando à antecipação da mentalidade da época vindoura, quase de modo premonitório. Em Kafka, por exemplo, o fracasso apareceu como chave e como fechadura do mundo moderno: em seu bestiário de presos, confusos e ignorantes, cheios de culpa e frustração, tentando existir mesmo à revelia do funcionamento do mundo, o fracasso oferecia a liberação como seu outro lado. Uma porta para aceitar o irracional das forças que nos subjugam.

Suas histórias não descreviam uma jornada de peripécias do herói rumo à concretização de uma tarefa. Nelas, o fracasso empurra o protagonista, que corre sem saber para onde, esmagado pelo autoritarismo do pai, do chefe, do Estado, da tradição ou da religião, até se encurralar mais e mais no beco que o levará a algum tipo de derrota ou saída. Essa confissão, em Carta ao Pai, material pessoal endereçado ao seu pai e postumamente publicado, é um grande alívio embora muito pese. Dentro da arquitetura labiríntica supostamente racional que era o mundo moderno, em O Processo acompanhamos Josef K no desvelo da irracionalidade, patente tanto nas frestas quanto na moldura da burocracia, e do outro lado, a figuração de um fracasso modelado, não acidental, aquele resultante do poder do entendimento. O curioso é que em suas tarefas romanescas não há autocomiseração alguma – já que ele tinha a si mesmo como um fracassado, almejando fugir dos planos do pai para seu futuro e, talvez por isso mesmo, estar confuso ou estar perdido aparecem como impulsos da compreensão da vida em resposta à obsessão moderna pelo triunfo.

Quando escreveu seu conto sobre um jejuador profissional, O artista da fome, Kafka estava em tratamento para uma tuberculose diagnosticada cinco anos antes. Em 1924, ano de seu falecimento, por força de complicações laríngeas da tuberculose que o impedia de se alimentar, a deglutição tornou-se martirizante. No leito de morte, ainda editava o tal conto até que a garganta fechasse completamente e a inanição concretizasse seu óbito. As forças irracionais farejadas por Kafka estavam presentes no subsolo de toda sua obra, e finalmente eclodiriam poucos anos depois, matando em campos de concentração suas irmãs e quase todasua família.

Todo o desejo por ordem e eficiência, como bem estetizada nos espetáculos fascistas, tinha um substrato irracional mantendo-lhe a vida. A arte de propaganda ultranacionalista do Terceiro Reich de Leni Riefenstahl, cujo sonho maior era ser dançarina, e seus corpos apolineamente perfeitos no Olympia (1936) não obliteraram os sussurros do demoninho nos ouvidos do enigmático Kafka ainda na década de 20. Simetria e vontade de perfeição e harmonia, uniformidade e pureza seriam um sintoma de destruição. O terceiro Reich queimou toda a produção artística que escapasse ao ideal nazi, qualificada pelo partido como “arte degenerada”. Parelho a isso assistimos às imagens da arte contemporânea brasileira serem igualmente classificadas como “degenerada”. Por aqui, o La Bête de Wagner Schwartz foi reduzido a “um homem nu num museu”; reificando a  imagem do fracasso da arte, materializada pela opinião massiva como a mais intolerável e abjeta, digna de ser queimada pela sanha da multidão em êxtase místico de Nuremberg, não só ela, mas tudo o que ela toca. A imagem intolerável muda, mas o contexto de instabilidade política que ajuíza o que seja uma “arte fracassada” é sintomática dos fracassos dos rumos do mundo e proximidade de holocaustos, não da arte em si, mais uma vez.

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Em Amadeus (1984), Milos Forman arma um tipo de narrativa do fracasso na acepção romântica do gênio, a partir da inveja do atormentado aspirante à genialidade, por não ser capaz de nada além do plano medíocre: o músico mediano tão dedicado e devoto à sua arte que lhe consagra toda a vida em sacrifício. Salieri deu o azar de ter sua obra e existência obliteradas pela figura mítica de um contemporâneo, o libertino de personalidade abobalhada e displicente, contudo, um dos maiores expoentes da história da música, Wolfgang Amadeus Mozart. O golpe tão profundo plantou-lhe uma inveja capaz de abalar até sua crença em Deus: “Porque dar tanto talento a um cretino e não a mim, o seu mais casto e maior servo, Senhor?”. Salieri é pouco a pouco consumido pela inveja e pela loucura ao assistir o gênio de Mozart brilhar e ser apagado pela própria personalidade destemperada e mundana. Nesse caso, o fracasso reside na máxima romântica “Cada tempo com o seu gênio”, só havendo espaço para um.

Em O homem célebre (1986), Machado de Assis passeia pelos dilemas de fazer uma arte em que não se acredita e tornar-se envergonhadamente famoso. O curioso caso em que fazer sucesso é ser coroado com o fracasso público, ao menos aos próprios olhos do fracassado. Pestana, protagonista do conto, um compositor oitocentista desejoso de nada menos que um lugar no cânone, de preferência ao lado de Schumann, Mozart, Bach e cia., tornado famoso por compor polcas de sucesso – um gênero popular, tido como inferior – acaba humilhado pelo próprio tino para a vulgaridade, pela capacidade de agradar as massas com peças de gosto duvidoso e não aos ouvidos definitivos e altamente criteriosos que o consagrariam à qualidade de imortal. O mesmo acontece com o homem pássaro protagonizado por Michael Keaton em Birdman (2015). Os personagens de Philip Roth, por sua vez, estão sob a égide americana do self-made-man, crença cujo abecedário meritocrático prega que podemos ser quem quisermos, bastando querer. Querendo e também tomando umas doses cavalares de tenacidade, eficiência, coragem, e sobretudo trabalho, ao fim e ao cabo tudo seria possível. Essa crença tão inabalavelmente americana quebra as pernas logo ali na frente ao desprezar não só a desigualdade dos lugares na largada da corrida pelo triunfo e o altíssimo custo pessoal de quem leva a sério o sonho americano do sucesso a qualquer preço, mas num plano mais profundo, a rachadura reside no quanto não podemos controlar todas as circunstâncias que envolvem uma decisão. Imponderável, contingente, acaso, infortúnio, sorte, azar, acidente. “O diabo, meu amor, mora nos detalhes”. Em A Marca Humana o gatilho do equívoco foi uma palavra errada na hora errada, despretensiosamente proferida em classe sobre um par de alunos filões. A palavra flagrante de Coleman Silk, como em outros momentos da obra de Roth, é um exemplo desses pequenos detalhes do acaso que avalancham infortúnios capazes de destruir carreiras, reputação e vida pessoal de uma só vez, fazendo fracassar todo um projeto de existência rigorosamente calculado e controlado. Mas eis que diante do fracasso, a epifania: a derrota como possibilidade de redenção e único reduto de liberdade. É o que acontece tanto com Coleman quanto com Sabbath – de O teatro de Sabbath (1997) – cujos fracassos retumbantes de domínio público os liberou de toda e qualquer expectativa social para se dedicarem a uma vida guiada pelo seu próprio, portanto vitorioso, desvario. O fracasso aparece novamente como oportunidade, nesse caso, a de escancarar os limites do moralismo, de gozar intensamente aquilo que sobrou para ser, quando o projeto do self de sucesso se arruína. Ao artista fracassado cabe a liberdade do ostracismo, ele pode falar o que quiser do que quiser, pois não mantém com o establishment uma relação de servidão.

Quando alguém reconhecido e amparado pelo sucesso e pelo status quo silencia sobre algum tema relevante tudo permanece igual no tribunal. Mas, se um fracassado se acovarda e se abstém, as paredes da realidade chacoalham. Olhando em retrospecto a obra do Kafka enigmático, assustadiço e por fim, famélico e incapaz de engolir, aparece no conjunto de seus escritos a relação entre a falta de esperança e a falta de coragem. Sem a primeira não há coragem que subsista para mudar o que quer que seja. E fica claro que ele não quebrou os vidros das saídas de emergência – a História o fez. Ao judeuzinho amedrontado coube evidenciar apenas que os vidros já estavam trincados. Que a arte prolifera quando a vida social fracassa, é mais que uma obviedade, uma lei natural. Já quando a humanidade fracassa, à arte resta quebrar as saídas de emergência ou recolher os estilhaços. Que a arte que chamam agora “degenerada” é quem tem a maior liberdade para dizer o que queira, também não é novo. Ou isso, ou nos resta uma certa cadela no cio, sempre à espreita, nos querendo para levá-la a um passeio em Nuremberg, com a coleira entre os dentes.

 

[1] AGAMBEN, Giorgio. Profanações. Pag 28. São Paulo: Boitempo editorial, 2007.


Alana Falcão é dançarina, professora e dramaturgista.

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