Crítica da Crítica | Cênicas


foto de amine barbuda

Presunções críticas

março de 2018

Edição: 19


Li, certa vez, que criticar é por em crise.  Na época isso fez bastante sentido pra mim. Na verdade, o sentido não me pareceu algo a ser questionado, afinal eu era apenas uma estudante de letras, e o que pode uma estudante de letras contra as máximas dos teóricos europeus? Ainda mais quando esse teórico é Barthes, e ainda mais quando a estudante de letras se encontra na UFBA. Mas a partir de algumas reflexões mais atentas e de leituras críticas que escapam a essa idéia – algumas dessas aqui mesmo, na Barril – esse sentido foi se dissipando aos poucos.

Comecei a pensar sobre a banalidade na qual o estado de crise se encontra hoje. Todos os campos artísticos já reivindicaram seus colapsos, patentes nos discursos apocalípticos do “não existe mais arte”, que colocam o dedo em riste para bradar a decadência artística. Não se faz mais teatro, acabou-se a literatura, é o fim da música, só restam podridão e ruínas. Há os que discordam dessa visão, mas eles também não negam a crise: falam em mudanças de paradigmas e expansão do campo enquanto carregam a sua metralhadora de “pós” e saem disparando pra tudo o que é lado.

Claro que, logo em seguida, eu já estava contra-argumentando com o meu próprio pensamento (quem nunca?) acusando-o de generalidade excessiva. Afinal de contas, há os casos específicos, nos quais determinada obra de arte é colocada em crise por uma determinada crítica. Mas isso não demorou a desembocar em outro problema, que é o tom imperativo da frase. A afirmação “criticar é por em crise” conjura uma relação hierárquica entre a crítica e a obra, na qual a crítica tem o dever de abalar aquilo que é alvo de sua análise. Assim, a crítica se encontra numa posição dominante, prepotente, já que supõe deter um poder desestruturante. Um passo mais adiante e já nos encontramos num modelo de crítica magistral e dogmática.

Nesse modelo o próprio crítico é o centro da análise, pois é ele quem domina a obra e prenuncia a sua essência. No papel do intelectual estereotipado, o crítico é um erudito que explica a arte, iluminando, deste modo, a nossa pequenez mental com sua análise sagaz. Ele é quem detém os protocolos interpretativos, quem tem a capacidade para dizer o que é bom, o que é “imperdível!” e o que não vale o seu tempo. Esse crítico olha o acontecimento artístico para “descarná-lo, aprofundá-lo até encontrar-lhe a alma, indagar constantemente as leis do belo, tudo isso com a mão na consciência e a convicção nos lábios”, disse certa vez Machado de Assis.

A citação data de mais de cem anos atrás, mas resquícios desse modelo crítico persistem.  As críticas que ainda circulam no meio jornalístico têm uma obsessão por escalar figurativamente a avaliação das obras: estrelas, carinhas que vão de triste a feliz, bonequinhos cochilando ou aplaudindo de pé. A obra continua sendo julgada quantitativamente; apenas variam no espectro entre o péssimo e o ótimo. Tudo que você precisa saber sobre a obra está ali, como se nada pudesse influenciar os julgamentos críticos, como se o público fosse uma massa uniforme. O formato da crítica magistral também volta naqueles olhares que encaram a obra de arte como um mistério a ser solucionado, que está repleta de códigos e enigmas, e que por isso merecem resoluções fabulosas, impactantes, como nos finais dos livros de Agatha Christie.

Críticos como os detetives das histórias policiais, que deixam todos admirados com a sua perspicácia. Essa analogia eu peguei emprestada do escritor argentino Ricardo Piglia, em uma de suas entrevistas. Ela me faz perceber até que ponto a crítica pode chegar. Enquanto a crítica olhar pra a obra desde  uma posição privilegiada, seja para valorá-la, desvendá-la, ou para colocá-la me crise, ela sempre se manterá a parte. A crítica, seguindo o modelo magistral, não entra no jogo com a obra. Mesmo que lhe renda louvores, ela não desce do seu pedestal, não se aproxima da obra e diz “ei, bora ali tomar um café?”, como se fosse impossível a convivência da crítica e da arte num espaço comum. A arte se encerra na crítica ao invés de se desdobrar a partir dela.

Mas, como os tempos são de crise, a crítica já começa a se movimentar para além dos padrões já puídos e a provocar o seu devir errático. É uma outra crítica, ainda sem adjetivações. Prefiro dizer que ela se irrompe contra as caretices. Essa crítica aparece como autobiografia, como fragmentação, como tentativa frustrada, como enfrentamento. Ela se permite assumir os acasos, fica mais à vontade entre a poesia e a ficção, e se converte em gêneros que não são facilmente identificados. Tudo isso também incide sobre a forma pela qual a crítica se apresenta. Ela pode vir como um diário, como uma lista de observações, como uma foto, como um vídeo. Porque a crítica repensada no contemporâneo também é uma forma artística.

Crítica e obra não se encontram mais em lugares incompatíveis, ou mediadas pela subordinação de uma à outra. Cria-se assim um espaço de intercessão aberto para o diálogo e o debate. O que acontece, então, é uma troca. Tanto a crítica pode colocar a obra em crise quanto os críticos podem ser postos em crise pela obra. Ou pode não haver crise nenhuma, mas uma boa conversa, e até mesmo um silêncio que se converte em imagem e outras tantas possibilidades para além da palavra escrita. O encontro com a obra não supõe retirar um sentido, nem deslindar um segredo, um código, mas expô-la para além da descrição. Contar, do acontecimento artístico, a história de suas arestas, do que lhe ressoa e do que lhe transborda. Contar, por vezes, a si mesmo através da obra. E até mesmo combatê-la. Sabendo, entretanto, que esse combate não guarda relações com as críticas bélicas que tem gosto pelo mero desprezo.

Ao invés de buscar uma profundidade, uma verdade, a crítica se volta para as multiplicidades, pois sabe que nada termina ali. Não se trata mais de fazer estancar os sentidos de uma obra, mas de deixá-los fluir, porque o tecido ferido pelo gesto cortante da interpretação sempre irá se regenerar para ser rasgado novamente depois[i]. É por isso que noções definitivas como “genialidade” ou “intencionalidade do artista” não são mais convocadas. Nada disso é profícuo. Como também não cabe mais escavar até chegar à essência da obra, para trazer à tona os fins do criador. Por outro lado a crítica não ignora as questões em torno da autoria ou da estética, que são consideradas enquanto discurso. Daí a importância de se afirmar a obra como feminista, negra, dissidente, gay, indígena e tantas outras marcações minoritárias, dentro da própria crítica.

Nessa outra crítica, que navega o mar ressaqueado de caos e crises, o critico se aproxima para se afastar e continua nesse movimento de se deixar transbordar para se recolher depois. Ainda que não se abandone a postura investigativa — pois frente à obra o crítico não deixará de pensar nos sentidos que podem ser arrancados dali — o crítico se move em direção a um segredo que ele sabe ser inexistente, ou que às vezes ele mesmo inventa. E se a crítica é um ato de criação, podemos passar do “criticar é por em crise” para  os versos de Waly Salomão: “criar é ser arbritário”. Para além da aleatoriedade e da levianidade do ato, a escrita crítica  pode, e deve, deixar espaços para as imprecisões, deixar emergir o instável, a pessoalidade, e assumir os riscos de ir desenhando o mapa enquanto se faz a viagem.


[i] Derrida, em  Kolaphos/Kolapto.


Ana Carolina Oliveira é graduada em psicologia e pesquisa sobre crítica literária

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