Crítica | Literatura


Para Paul Klee
Amine Barbuda 2018

Sendo “Preciso escrever?” a primeira linha de Barley Patch (2009), livro do australiano Gerald Murnane (1939) depois de toda uma década sem escrever ficção. “Preciso escrever?” precisando também ser o primeiro questionamento deste escrito que aqui se encontra.

 

Não tanto na tentativa de emular Murnane (tentativa inútil: não acredito que haja hoje alguém que escreva de maneira minimamente semelhante à de Murnane), mas por motivos mais práticos. Não há agora nenhuma obra de Murnane no Brasil, aliás não há nada da obra de Murnane traduzido para o português. Até a presente data confesso desconhecer qualquer menção a Murnane em minha língua.

Inclusive em sua língua Gerald Murnane está envolto num anonimato que ainda não se dissipou por completo, apesar da competência que sua obra teve em conquistar o apreço do sul-africano nobelizado J.M. Coetzee, que há muito também vive na Austrália, e do americano Teju Cole, cuja comparação entre Murnane e Beckett se difundiu e hoje serve de blurb aos livros do australiano.

 

Parte da culpa por esse dito anonimato é do próprio escritor, que nega a existência de qualquer prazer ou benefício em viajar. Gerald Murnane jamais viajou para fora da Austrália, aliás poucas vezes viajou para fora do estado de Victoria onde mora, e não costuma sair muito de casa na cidadezinha de Goroke.

Casa que na verdade é de um dos filhos, para onde Murnane se mudou após a morte da mulher em 2009. Seu quarto é uma pequena garagem adaptada; sua cama, um colchonete estendido no chão. O que mais dá na vista quando se observa o tal quarto são os diversos arquivos de metal enfileirados ao longo das paredes. Há anos Murnane cataloga tudo que escreve, para publicação ou não. Entre os escritos guardados naquelas gavetas, há a anotação sistemática de cada evento de sua vida por ele considerado milagroso, ou outra sobre cada pessoa pela qual ele se sentiu sexualmente atraído, ou ainda uma seção inteira destinada a textos sobre Tchekhov. O destino para muito do que está ali contido é a publicação póstuma; parte do que será publicado postumamente ainda conta com mais uma condição, a de que os irmãos do escritor também estejam mortos.

Em resumo o escritor Gerald Murnane é um escritor que somente escreve, o que pro mercado literário é um copo meio vazio.

 

Não podendo, portanto, disponibilizar uma “razão” para falar sobre Gerald Murnane (e razões existem, porém impróprias porque todas da ordem do gosto pessoal e do encantamento com a sua prosa, e se condensadas dão no que está escrito no terceiro parágrafo deste texto) procuro então pôr uma “desculpa”: tem pairado sobre sua imagem a expectativa do prêmio Nobel. Sendo Murnane suficientemente desconhecido, talentoso e importante em seu país, bastaria para a Academia Sueca.

 

Para muitos leitores é mais do que possível apontar quão esfarrapada é a desculpa acima. Um número consideravelmente menor de leitores dirá que não há nada mais justo, dado o esfarrapo dos próprios suecos. Espero que dentre esses dois grupos haja um terceiro, realmente interessado nas excentricidades de Murnane.

 

“Preciso escrever?”

Essa sentença é a sentença que abre Barley Patch, e Barley Patch é um romance sobre um narrador-escritor que após mais de trinta anos narrando-escrevendo desiste desse ofício, para então retornar anos depois e narrar-escrever Barley Patch. Faz-se necessária então uma correção: “Preciso escrever?” não é somente a sentença que abre Barley Patch, mas também a que gesta o romance.

“Preciso escrever?” é uma sentença tirada de um dos conselhos de Rainer Maria Rilke (1875-1926) nas cartas ao tal jovem poeta Franz Xaver Kappus: “Isto acima de tudo – pergunte a si próprio na hora mais silenciosa da sua noite: preciso escrever?(tradução minha do inglês, citado por Murnane); o narrador-escritor (daqui em diante denominado narrador por economia de hifens) dava aulas de escrita de ficção e achou importante ler esse conselho para seus alunos uma vez por ano, inclusive adicionando que seria até muito saudável se alguns dos ali presentes entendessem um dia que não, não precisavam escrever.

E no parágrafo seguinte ao desse relato está o momento em que o narrador larga a escrita:

No início do outono de 1991, porém, quatro anos antes de eu ter deixado de ser um professor de escrita de ficção, e numa tarde atribulada em vez de durante uma noite silenciosa, e sem sequer recordar do questionamento recomendado por Rilke, eu próprio desisti de escrever ficção.

Para logo depois emergir um novo questionamento, que por sua vez regerá a narrativa por uma boa extensão do romance, entretanto sem nunca esquecer por completo aquela questão geratriz anterior:

“Por que escrevi?”

 

Desse questionamento irrompe então o Murnane a que os leitores de Murnane estão mais familiarizados, aquele que cascateia o branco da página com um número desnorteante de memórias, todas fragmentadas, entre elas imagens ou resquícios de sensações passadas. Em sua obra, por exemplo, quase nunca fica exposto o conteúdo de um livro lido pelos narradores, as estórias dão preferência ao esmiuçamento daquilo do passado que ainda se deixa ser vislumbrado no suposto presente da escrita.

A obra A history of books (2012) é normalmente apresentada como sendo uma autobiografia através dos livros lidos por Gerald Murnane, o que logo desanda sob os olhos do leitor que abre A history of books e se depara com fragmentos curtíssimos nos quais os nomes dos autores e mesmo os títulos dos livros muitas vezes não constam, simplesmente porque o narrador “não se lembra” deles, e também por não terem a “importância” que se atribuiria normalmente a eles.

 

É como no caso da autobiografia de Manoel de Barros: ali está um livro de Manoel de Barros como qualquer outro, sem o menor esforço de se desvencilhar do seu verso sempre operando no limite entre poesia e prosa. A atribuição de gêneros literários aos escritos de Murnane também desanda numa enorme falta de propriedade quando confrontada com os textos em si. É uma característica que Murnane mesmo já mencionou mais de uma vez, mas aqui trarei as considerações iniciais de seu livro Invisible yet enduring lilacs (2005):

Uma das tarefas menos úteis que uma pessoa da minha idade pode encarar é a de se perguntar quão diferentemente ele ou ela deveria ter feito isso ou aquilo no passado.

Ainda assim, o autor do penúltimo texto deste livro, quando era pouco mais novo do que sou agora, escolheu se perguntar logo essa pergunta. Ele a respondeu declarando que não deveria nunca ter tentado escrever romances ou novelas ou contos mas deveria ter permitido que cada texto de sua ficção achasse seu próprio caminho para seu fim natural.

A conjetura do autor é fútil, é claro, mas me inspirou a fazer uma declarão ainda mais ousada. Eu nunca deveria ter tentado escrever ficção ou não-ficção ou mesmo qualquer coisa entre os dois. Eu deveria ter deixado que os editores publicassem todas minhas obras escritas como ensaios.

 

A primeira das duas partes que compõem Barley Patch é a mais extensa e trata em geral da infância e juventude do narrador, a prosa tateando por uma resposta à pergunta “Por que escrevi?” O passado vai sendo contado a partir de estilhaços de episódios dessa vida, um aparecendo somente para pouco depois ser trocado por outro. São comuns em Murnane momentos em que o texto se debruça sobre si próprio a partir de expressões como “quatro parágrafos antes deste, ou na segunda sentença do antepenúltimo parágrafo”, assim se abandonando o que se contava pouco antes, reaproveitando o já contado para contar algo novo.

Testemunhamos o narrador, ainda menino, aguardando que todos em casa durmissem para ter a oportunidade de abrir a casa de bonecas da qual suas primas não lhe permitiam sequer se aproximar durante o dia; também o narrador escondido com mais primas (raramente há nomes em Murnane) seja entre pedras numa praia ou no breu dum casebre, se despindo ou imaginando se despir; ainda esse menino não somente mentalizando o conteúdo escondido atrás das cortinas de um altar, mas o que o sacristão devia sentir metendo a mão através do tecido.

Passagens assim aparecem em rápida sucessão, os novos rumos do romance sendo decididos na maioria das vezes por causa de uma simples palavra contida em uma estória anterior, como se o livro se apercebesse de repente de mais uma coisa que poderia estar em suas páginas. O narrador tenta acessar inclusive acontecimentos de antes dele nascer, especificamente os detalhes pessoais de seus pais antes de iniciarem o relacionamento que o geraria. É mais uma tarefa da qual desiste, para mais adiante dar início à segunda parte do livro.

Existe de fato uma divisão temática entre as duas partes de Barley Patch, mas na verdade a quebra do romance em dois se dá menos por isso e mais para que Murnane interrompa a narração, apontando então para a maneira muito pouco ortodoxa como encarou as duas questões fundamentais apresentadas nas primeiras páginas. Para isso são conjurados dois leitores hipotéticos:

Um leitor apressado das páginas anteriores pode ainda estar esperando pra saber por que desisti de escrever ficção há mais de quinze anos atrás. Um leitor mais cuidadoso pode já estar a caminho de saber por que desisti. O leitor apressado e o leitor cuidadoso estão talvez igualmente curiosos de saber o que eu calhava de estar escrevendo na tarde atribulada em que parei de escrever ficção sem sequer me questionar como o poeta Rilke recomendara

Assim, ao mesmo tempo que desilude o leitor que aguarda por uma resposta simples, está decidida a nova direção que a obra irá tomar.

 

Murnane sempre faz uso de muitas repetições ao longo do que escreve, inclusive reciclando trechos inteiros – como por exemplo “campos de grama em geral planos com uma linha de árvores à distância” (“mostly level grassy countryside with a line of trees in the distance”, tradução minha), imagem que ressurge diversas vezes, sem uma alteração sequer, não somente neste mas na maioria dos demais escritos do australiano.

A imagem do convento a que uma das tias do protagonista se retirou acompanha toda a extensão da primeira parte, para na segunda crescer drasticamente em importância: parece ser o centro da ficção abandonada pelo narrador.

Em todas as suas aparições, a vista das janelas do convento é sempre a mesma, “campos de grama em geral planos com uma linha de árvores à distância.”

 

O convento ressurge na segunda parte através da proposta de um personagem não nomeado, amigo do protagonista desse romance-dentro-do-romance: a de processar a Igreja Católica pelo atraso do seu desenvolvimento mental que ela lhe causara lotando sua mente de mentiras. Com o dinheiro, o personagem não nomeado adquiriria um antigo convento e o transformaria em uma espécie de prostíbulo.

Todos os demais amigos (não nomeados) do protagonista passam então a incrementar esse prostíbulo imaginário, que de simples prostíbulo passa rapidamente a incluir os interesses pessoais de cada um dos participantes da elaboração mental do edifício, entre eles os interesses do protagonista.

Por ser aspirante a escritor, ele adiciona inicialmente um escritório no andar mais alto. Aos poucos interpõe mais e mais andares e galerias entre as suas dependências imaginárias e as do restante dos moradores do edifício imaginário. Distante de todos, apenas o deleite que sente pelos demais moradores “pensarem que ele está escrevendo” já é suficiente, portanto cessa de escrever.

 

Se então outro morador imaginário abrisse o aposento do protagonista, se depararia não com um escritório, mas com uma enorme réplica de uma pista de corrida de cavalos, cuja construção era a sua ocupação verdadeira. O livro-dentro-do-livro tendo portanto a incompetência e a procrastinação como temas centrais.

Eventualmente esse personagem principal passa a ser o único residente do que começara sendo somente um velho convento abandonado, agora dono de uma infinidade de aposentos, todos contendo miniaturas ultradetalhadas de pistas de corrida de cavalos (sendo essas corridas um interesse verdadeiro de Gerald Murnane, presentes em muitos dos seus escritos) e para além de todas as janelas “campos de grama em geral planos com uma linha de árvores à distância”.

 

Uma imagem que não se repete, aparecendo em somente um momento no romance, é a que dá nome à obra, a de um patch of barley – algo como “pequena plantação de cevada”.

Murnane pouco antes comenta o passatempo das irmãs Brontë de elaborar detalhadamente mundos fictícios, especialmente um denominado Gondal. Menciona uma anotação num dos diários de uma das irmãs (não se importa em dizer qual delas), entre o conteúdo corrente e banal do dia-a-dia, que diz que “os habitantes de Gondal estavam então começando a descobrir o interior de Gaaldine”.

Se tivesse eu mesmo escrito uma anotação comparável à anotação mencionada acima, eu talvez escrevesse que o povo dos tamariscos almejavam descobrir o interior da pequena plantação de cevada.

 

Espero, portanto, que através deste escrito pelo menos um leitor, importando muito pouco se apressado ou cuidadoso, almeje descobrir o interior de Gerald Murnane.


João Antonio Guerra vive em Vaz Lobo, no Rio de Janeiro, lê e escreve.

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