Gangorra | Cênicas


Gangorra
foto de Lucival Almeida

Por que não teatro?

março de 2018

Edição: 19


Crítica sobre o espetáculo infantil “Os Três Porquinhos”, de Gil Santana

Começar a movimentar esta Gangorra graças ao peso de uma das histórias mais clássicas da literatura infantil revela muito da realidade da produção das artes para infância em nossa cidade. No verão soteropolitano, onde as pessoas estão dispostas a ocupar a cidade, as ruas, os espaços de lazer e entretenimento, o teatro parece não deter um lugar de tanta relevância na programação de nossos conterrâneos. Essa percepção mereceria uma crítica inteira à parte, com uma reflexão capaz de penetrar além da primeira camada, eu sei disso… mas se a levanto é para compartilhar um pouco da minha dificuldade de encontrar nessa época programações para infância em espaços que não sejam os shopping centers. Se a cadeia produtiva da Cultura para a Infância tem se aprimorado e fortalecido nos últimos anos, caminhando continuamente para se estabelecer e se profissionalizar amplamente, ainda assim é com uma ponta de pesar em que eu me vi sem opções de espetáculos que me provocassem a escrever.

Não por acaso encontrei em Gil Santana e sua resistente companhia a saída para o problema que a ausência de um espetáculo infantil na cidade me traria logo na edição de estreia desta nova coluna. Porque Gil estava lá em cena, e ainda está como aparentemente sempre esteve desde 1996, aos sábados, domingos e feriados, com espetáculos diversos para crianças de todas as idades. Após o incêndio que em 2006 atingiu o teatro que levava seu nome e funcionava há cerca de 20 anos como sede da companhia, ele circulou em diferentes espaços e parece ter encontrado na Quattro Gastronomia & Cultura um novo pouso. Bar e restaurante localizado na rua Fonte do Boi, no Rio Vermelho, a casa conta com um pequeno auditório no segundo piso onde espetáculos vêm sendo apresentados desde o ano passado e onde a Cia. de Gil Santana se fixou.

Quando cheguei, cerca de 40 minutos antes, o público de crianças e familiares já aguardava o início da primeira sessão, às 15h, em que seria apresentada a história d’Os Três Porquinhos. Na sessão seguinte era a vez de O Casamento de Dona Baratinha e, encerrando o dia, Chapeuzinho Vermelho. Admito que desde minha casa eu estava curiosa sobre a adaptação proposta pelo diretor, que também atua no espetáculo ao lado de apenas mais uma atriz; sim, Os Três Porquinhos encenada com apenas duas pessoas e um técnico se revezando entre luz e som. O que a princípio pode ser interpretado como tão somente uma resolução simplista de um problema de equipe, tendo em vista que nas temporadas anteriores o mesmo espetáculo era apresentado com elenco mais numeroso, não deixa de ser também uma postura política ao permanecer em cartaz apesar da notável ausência de recursos: falta um espaço adequado para o público, falta uma acústica adequada para a apresentação, faltam recursos técnicos e mesmo humanos para a empreitada. Todos os aspectos práticos apontavam, a priori, para a impossibilidade de se encenar aquela história, mas eles estavam ali para dar vida a esse que é justamente um dos mais representativos contos acerca da eterna disputa humana entre o princípio de prazer e o princípio de realidade.

Nela, através dos três porquinhos irmãos que se veem expulsos de casa pela mãe cansada que decide que já é hora deles cuidarem de si mesmos, a criança pode projetar o seu próprio amadurecimento psíquico por meio da identificação sequenciada com cada um deles. Após serem alertados sobre a presença de um lobo faminto naquela área da floresta, Cícero, o mais novo e preguiçoso dos três, decide construir uma casa de palha com um esforço mínimo para poder voltar logo à brincadeira. Heitor, o irmão do meio, dedica-se um pouco mais à tarefa e usa gravetos para construir sua casa. Já Prático, o mais velho, decide construir uma casa de tijolos, mesmo que isso comprometa a sua tarde de diversão. Quando o Lobo Mau aparece, derruba com um sopro forte o frágil abrigo de Cícero e o devora. Ainda com fome, vai até a casa de Heitor que consegue proteção por um pouco mais de tempo; esforçando-se mais ainda no bufar e soprar, o Lobo derruba também essa casa e devora o segundo irmão. Ao chegar à casa de Prático, repete o expediente sem sucesso, e lança mão de vários recursos para trazer sua presa para fora. Já cansado, cai na armadilha do astuto porquinho ao tentar entrar pela chaminé, caindo no caldeirão escaldante e sendo devorado pelo corajoso e prudente Prático, ao fim e ao cabo.

Diferentemente das companhias goianas que há alguns anos invadiram os teatros baianos com versões teatrais de fenômenos como Frozen, Galinha Pintadinha ou Pepa Pig, Gil não oferece aos espectadores efeitos especiais, vestidos reluzentes ou microfones de lapela; estão em cena apenas dois atores com máscaras e figurinos que poderiam ter sido adquiridos prontos em lojas de fantasias. Se isso pode soar como um demérito eu afirmo que aí reside seu maior trunfo: o diretor compreende quem é a plateia que vai lhe assistir, e sabe que ela não está interessada nesses detalhes e sim na sua forma de (re)contar uma história já conhecida. E, a despeito de qualquer esquecimento de falas, vozes de personagens que mudam ao longo dos diálogos, furos no encadeamento lógico das ações ou perda da verossimilhança interna que possam ocorrer (e ali ocorreram), aquele público em particular permanece fiel à sua forma de fazer teatro porque em certa medida aquilo talvez corresponda ao que eles compreendem como o teatro possível de ser feito em nossa cidade.

Devo admitir que fiquei tão impactada pela experiência que precisei de muitos dias para elaborá-la de forma minimamente satisfatória. Se como um irmão mais velho eu estava mais interessada em observar como eles iriam solucionar cenicamente o fato de terem apenas dois atores, as crianças, por sua vez, se comportavam como um Cícero alegre e ruidoso, despreocupado com qualquer aspecto de realidade externa que pudesse estragar a brincadeira. Se o Lobo em um momento usava uma máscara preta e na cena seguinte uma marrom, isso não importava; se a casa não caía mas era visivelmente puxada pelo porquinho, isso parecia detalhe insignificante; quando eles inseriam o vocativo ‘mano’ ao final de casa frase, isso passava despercebido… nada importava mais do que desfrutar daqueles personagens e suas intempéries. Afinal, como respondeu uma menina de cerca de três anos ao pequeno Heitor, “Sim”, tínhamos acabado de ver passar por ali “um lobo de verdade”.

Superado o incômodo com os aspectos técnicos e de interpretação pouco elaborados, orientados sobretudo pelo desejo de satisfazer as crianças em seu fluxo de brincadeiras, eu não soube como elaborar internamente como foi feita a adaptação. As diferentes estratégias de proteção e estágios de amadurecimento de cada um dos três irmãos dão à criança a chance de reconhecer nela própria naquelas atitudes; afinal, que criança não preferiria brincar a tarde inteira em vez de carregar e empilhar tijolos? No conto original, o fato de os dois irmão menores serem devorados liberta esses pequenos ouvintes para se descolarem dos estágios menos amadurecidos de suas psiques, assumindo a racionalidade do irmão mais velho como um elemento positivo e não mais chato e entediante, para finalmente se identificar com sua inteligência e atitude.

Quando o Lobo não devora mas apenas derruba as casas pondo-os em fuga, extirpa-se do texto o aspecto mais desafiador para a criança que acompanha a história. Afinal, é na superação simbólica daqueles comportamentos prejudiciais que o conto alcança seu ponto alto de conexão e sensibilização infantil. Sem entender imediatamente o porquê, atribuo essa escolha do diretor ao mais genuíno princípio de realidade. Talvez ele tenha compreendido, ao longo de seus tantos anos frente às plateias soteropolitanas, que os desafios psíquicos e emoções desconfortáveis não estão entre as preferências dessas audiências.

Com um público tão disponível e cativado pelo carisma daqueles dois atores, é difícil compreender por que a companhia parece estar pouco preocupada com detalhes que poderiam tornar a experiência mais próxima do teatro que da contação animada de uma história. Dentro daquele universo ficcional, as regras estabelecidas por eles mesmos são desconsideradas a todo o tempo, com aspectos de ordem técnica ou narrativa sendo atropelados numa sequência sem fim. Certamente o resultado final iria se beneficiar muito de mais ensaios, ajustes nos diálogos e vozes, movimentação cênica menos rudimentar e reparos no cenário, permitindo que adultos com vivências estéticas mais vastas do que a infantil pudessem igualmente fruir do espetáculo com interesse e atenção. A lacuna local que ainda existe na oferta de programação para infância, me surge como primeira razão para compreender a importância de que Gil permaneça ali, a despeito dos aspectos negativos que eu tenha apontado.

Ao fim e ao cabo, Os três porquinhos da Companhia Gil Santana desempenha o corajoso papel de ser uma ode à imaginação. O público imagina que está em um teatro, as crianças imaginam que o conto pode ser daquele jeito mesmo, os espectadores imaginam que os personagens estão todos ali, o elenco imagina que aquilo tudo é passível de ser compartilhado, e assim seguem unidos pelo desejo de se divertir. Diferentemente da história, quem venceu naquela tarde foi o princípio de prazer, afirmando que a satisfação de se estar no teatro supera qualquer dado concreto que pudesse vir a diminuir o valor ou importância daquela experiência coletiva.

Resta aos agentes da Cultura para a Infância refletirem sobre para que lado pender nessa disputa: à atual realidade que nos fragiliza e pouco valoriza, ou ao prazer de ofertar aos espectadores produtos orientados por nossos desejos e inquietações. Enquanto isso o Lobo Mau nos ameaça com sopros, bufos, Frozens genéricas, espaços que fecham as portas e orçamentos que se reduzem. Torço apenas para que a gente permaneça de pé por muitos e muitos verões. Mas somente o tempo vai nos revelar com que material foi construída nossa cadeia produtiva, afinal…


Isabela Silveira é atriz, performer, produtora e gestora cultural

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