Ficção e Poesia | Literatura


Ilustração de Peu Dourado

Penugem, pedra

julho de 2020

Edição: 21


Escutei muitas histórias trágicas sem sofrer por causa delas, já esta, apesar de não ter acontecido nada com meu filho, persiste em me afligir. Morávamos numa rocinha com poucos recursos, mas bem espaçosa para três pessoas. Acordei com um uivo na janela. Já estavam despertos, caminhando pela terra do quintal, Genarinho e o pai. O céu estava cinza e havia um vento agradável, o que era raro. Parecia que ia chover. Nós, da roça, gostamos de chuva. Tem gente até que comemora. O uivo era do menino, que sempre dormia em nossa cama, mas nunca me acordava, nunca fazia barulho. Agora uivando e caminhando! Veja, ele que jamais saía, coitado, finalmente contemplava a vida fora de nosso casebre de madeira e barro. Tínhamos umas galinhas e uma grande amendoeira. Juntei-me a eles. Formamos um único ser. Genarinho em meus braços, eu nos braços do pai. Assim, sem comer nada, sem lavar a cara, começamos o dia. Teimamos, antes de alguém finalmente abrir a boca.

– O dia está lindo, não é?

Fui eu, mas não havia o que dizer. O menino não sabia falar; o pai não gostava. Eu não ia ficar falando sozinha. Era uma casa silenciosa, a nossa. Só havia esse menino calado. Todo mundo comentava. A casa vazia; o silêncio. Todo mundo, eu sei. Já eu… Eu só conversava com Deus.

– Hoje eu não vou trabalhar – disse ele.

As galinhas nos imitavam e também andavam sem rumo. Os bandos, os pintinhos. Uma ou outra amêndoa caía do pé. 

– O menino tem que virar homem – continuou. 

Sua voz era mais grossa naquele tempo. Culpa do silêncio. A minha, por outro lado, era mais fina. Quando será que Deus me abandonou? Hoje eu falo menos. Não conversamos. Havia algo de errado. Começou naquela manhã.

– Ele não fala, não caminha, não faz nada – sentenciou o pai –. Mas tem que virar homem.

Eu ainda não tinha entendido onde ele queria chegar. Por trás, conduzia nossos passos. Janelas púrpuras. Paredes coloridas sem tinta. As portas.

– Ele não vai virar homem da noite pro dia – as palavras saíam com a mesma cadência lenta de nossos passos –. E se eu não fizer nada não vira é nunca.

E pausava. Não estava acostumada com um andando e o outro falando. Meus homens. Era estranho. De repente, como se pressentisse algo, eu não me sentia mais tão feliz.

– Hoje é o dia. Ele vai dar o primeiro passo – disse ele, observando o quintal com atenção.

– Como? – perguntei.

– Menino tem é que aprontar. Pescar, caçar passarinho, correr atrás de bicho. Essas coisas.

– E o que você vai fazer? 

As nuvens se juntaram e ficaram escuras.  

– Eu, nada. 

Hoje, quando lembro, a calma me impressiona. Ele nos soltou perto da porta. Deu uma volta no terreno, pinoteando para lá e para cá, pegou umas madeiras velhas, umas pedras, e improvisou uma miniatura de cercado. O vento assobiava com força. Sentei Genarinho num tamborete e fechei as janelas da casa, antes de me aproximar novamente.

ilustração de Peu Dourado

 

– Pra que é? – perguntei, sem malícia.

Em vez de me responder, o pai apenas me olhou com desdém.

– Pra que é? – insisti, tremendo, talvez, de frio.

– “Pra que é?” – repetiu com sarcasmo. Olhava para mim como se eu fosse culpada pelos ossos moles do menino.

Genarinho de olho arregalado. Talvez fosse mais feliz que nós. Nunca soube de nada nessa vida. Cresceu diferente, desentendido das coisas. O vento e a nuvem dançavam juntos. Um desperdício de dia. Algumas gotas finas começaram a cair. Meu filho deu um sorriso alto, mexendo os braços, e tentou escapar de mim. O pai parecia não se importar. Sem ter me respondido, correu atrás de uns pintinhos e os colocou no cercadinho improvisado.

– Sabe o que é isso, Genarinho?

O menino parou de sorrir, curioso. O pai pegou uma pedra do tamanho da mão dele e lhe entregou.

– Joga neles! 

Genarinho é um menino bom. Eu acredito. Ele permaneceu parado.

– Pega um, menino mofino! – gritou o pai. Meu filho começou a chorar. Eu permaneci parada – Assim!

Tomou a pedra do menino e esmagou um pintinho. Os outros ficaram enlouquecidos no pequeno cercado. Ele gargalhou. Algumas galinhas corriam na terra, que ainda não estava enlameada. Quando uma delas se aproximou do cercado, o animal tentou chutá-la, mas acabou escorregando. A galinha fugiu e eu pulei em cima dele.

– Para, para! Deixa o menino! Para!

O maldito não resistiu. Sem reagir, me deixou prendê-lo no chão. Com os olhos fechados e catarro saindo de meu nariz, eu esmurrava seu peito, puxava seus cabelos. Gritava. 

– Deixa ele, deixa ele, deixa ele!

Porém ele dava apenas um sorriso cínico que esvaziava toda a minha revolta. Então eu vi.

Genarinho estava no cercadinho. Não chorava mais. Na verdade, sorria como nunca mais sorriria. Era Golias, mas com a pedra nas mãos. Chutou o pintinho morto pelo pai. Jogou a pedra em cima de outro, que não morreu na hora e piou desesperado. Então pegou o bichinho pelo pé, girou, girou, girou, e o jogou contra a porta da casa. Pisou em um e começou a pular em cima dele, rindo cada vez mais alto. Arrancou a cabeça de outro com as mãos, se lambuzando todo com o sangue, a lama e a penugem do cercadinho. Tirou a roupa e começou a mijar no meio de tudo. Jogou terra para cima. Chutou as madeiras. Murmurava uma canção profunda e angelical. Quem visse de longe poderia jurar que ele estava simplesmente brincando, e nem era mentira. Jamais vi meu filho tão feliz. Deixei ele lá fora. Com os joelhos sujos, envergonhada, porém sem chorar mais, entrei pela porta dos fundos e comecei a rezar.


Paulo Raviere é editor da Barril. Escreve o blog raviere.wordpress.com.

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