Tradução | Literatura


pintura em construçao
imagem de Amine Barbuda

OS SEM-BOCA

março de 2018

Edição: 19


Marcel Schwob (tradução: Paulo Raviere)

Os dois foram recolhidos um ao lado do outro, sobre a grama queimada. Suas roupas haviam voado em farrapos. A conflagração da pólvora havia apagado a cor dos números; as placas de níquel estavam esmigalhadas. Alguém diria que eram duas porções de massa humana. Porque o mesmo fragmento de lâmina de chapa de aço, assobiando oblíquo, lhes arrancou o rosto, de modo que eles jaziam sobre tufos de relva, como dois troncos de cabeça vermelha. O ajudante que os amontoou sobre o coche os pegou sobretudo por curiosidade; o ferimento, de fato, era singular. Não lhes restava nem nariz, nem bochechas, nem lábios; os olhos haviam saltado para fora das órbitas esmagadas, a boca se abria afunilada, um buraco sangrento com a língua cortada que vibrava com um arrepio. É possível imaginar uma vida tão estranha: dois seres de mesmo porte, e sem rosto. Os crânios, cobertos por cabelos ralos, levavam duas placas vermelhas, talhadas de modo simultâneo e semelhante, com cavidades nas órbitas e três buracos para a boca e o nariz.

Eles receberam na ambulância os nomes de Sem-Boca n. 1 e Sem-Boca n. 2. Um cirurgião inglês, que fazia o serviço voluntário, ficou surpreso com o caso, e se interessou. Ele ungiu suas feridas e pôs curativos, fez os pontos de sutura, operou a extração dos estilhaços, deu forma a esse mingau carnoso, e criou assim suas calotas de carne, côncavas e vermelhas, igualmente perfuradas ao fundo, como os fornilhos dos cachimbos exóticos. Colocados sobre duas camas uma ao lado da outra, os dois Sem-Boca manchavam os lençóis com uma dupla cicatriz arredondada, gigantesca e sem significado. A eterna imobilidade daquela carne tinha uma dor muda: os músculos fatiados não reagiam sequer aos pontos; o choque terrível lhes anulara o sentido da audição, de modo que a vida se manifestava neles apenas com o movimento dos membros, e por um grito rouco dobrado que em intervalos jorrava de seus palatos escancarados e tocos de língua a tremer.

Com o tempo, os dois se curavam. Lentamente, claro, eles aprendiam a conduzir seus gestos, a fortalecer os braços, a dobrar as pernas para se sentarem, a mover as gengivas endurecidas que cobriam suas mandíbulas cimentadas; tinham um prazer, reconhecível devido aos sons agudos e modulados, mas sem poder silábico: fumar cachimbos cujos tubos eram revestidos por peças ovais de borracha, para juntar as bordas da ferida em suas bocas. Agachados sobre as cobertas, eles respiravam o tabaco; e os jatos de fumaça eram assoprados pelos orifícios de suas cabeças: pelos dois buracos do nariz, pelos poços gêmeos de suas órbitas, pelas junções de suas mandíbulas, entre os esqueletos de seus dentes. E cada saída de névoa cinzenta que jorrava pelas fendas dessas massas vermelhas eram celebradas com um riso extra-humano, um cacarejo vindo da úvula estremecida, enquanto seus restos de língua estalavam sem força.

Houve uma comoção no hospital, quando uma mulherzinha sem chapéu foi levada pelo residente em serviço até a cabeceira dos Sem-Boca e estudou um e o outro com o semblante aterrorizado, e depois se derreteu em lágrimas. No gabinete do médico-chefe ela explicou, entre soluços, que um daqueles dois deveria ser seu marido. Ele havia sido registrado entre os desaparecidos; mas esses dois feridos não tinham nenhuma marca de identificação, estavam numa categoria particular. E o tamanho, assim como a largura dos ombros e a forma das mãos, certamente lhe lembravam o homem perdido. Mas ela tinha uma dúvida terrível: dos dois Sem-Boca, qual era seu marido?

Essa mulherzinha era realmente graciosa: seu robe barato lhe moldava o seio; ela tinha, devido ao cabelo amarrado à chinesa, um doce rosto de criança. A dor inocente e a incerteza quase risível se misturavam em sua expressão e contraía seus traços como os de uma menina que acabou de quebrar um brinquedo. Assim, o médico-chefe não conseguiu segurar o sorriso; e, como ele falava alto, disse à mulherzinha que olhasse para baixo: “Então! O quê! Leve-os, seus Sem-Boca, você os reconhecerá com a tentativa!”.

Primeiro ela ficou escandalizada e virou a cabeça, com um rubor de criança envergonhada; depois abaixou os olhos, e observou de uma cama à outra. Os dois cortes vermelhos costurados descansando o tempo inteiro sobre os travesseiros com aquela mesma ausência de significado que os transformava num enigma duplo. Ela se inclinou sobre eles; falou na orelha de um, depois na do outro. As cabeças não tiveram qualquer reação – mas as quatro mãos faziam uma espécie de vibração, – sem dúvidas porque esses dois pobres corpos sem alma sentiam vagamente que havia diante deles uma mulherzinha bem gentil com um cheiro muito doce e os modos absurdos e requintados de um bebê.

Ela ainda hesitou por um tempo, e acabou por pedir que lhe confiassem os dois Sem-Boca por um mês. Eles foram transportados num grande coche acolchoado, sempre um ao lado do outro, e a mulherzinha, sentada na frente, chorava lágrimas quentes sem parar.

Quando chegaram na casa, uma vida estranha começou para eles três. Ela ia eternamente de um a outro, espiando em busca de uma indicação, esperando por algum sinal. Observava suas superfícies vermelhas que jamais se moviam. Olhava com ansiedade suas enormes cicatrizes em que gradualmente distinguia as costuras como conhecemos os traços dos rostos amados. Ela os examinava alternadamente, assim como estudamos as provas duma fotografia, sem conseguir escolher.

E aos poucos a forte provação que no começo lhe comprimia o coração, quando ela pensava em seu marido perdido, acabou por se fundir com uma calma irresoluta. Ela vivia como quem renunciou a tudo, mas vive por hábito. As duas metades rompidas que representavam o ente querido jamais se reuniam em sua afeição; mas os seus pensamentos iam regularmente de um ao outro, como se sua alma oscilasse de modo a se equilibrar. Ela via os dois como seus “manequins vermelhos”, e esses eram os divertidos bonecos que povoavam a sua existência. Fumando seus cachimbos, sentados sobre suas camas, da mesma maneira, exalando os mesmos turbilhões de vapor, e possuindo simultaneamente os mesmos gritos desarticulados, eles pareciam mais com os fantoches gigantescos trazidos do Oriente, com as máscaras sangrentas vindas do exterior, que com seres animados de vida consciente que haviam sido homens.

Eles eram “esses dois macacos”, esses dois camaradas vermelhos, esses dois pequenos marinheiros, esses homens queimados, esses corpos sem alma, esses polichinelos de carne, essas cabeças esburacadas, essas cucas sem cérebro, essas figuras de sangue; ela os arrumava um por vez, fazia suas cobertas, bordava seus lençóis, misturava seus vinhos, acabava com suas dores; os conduzia ao meio do quarto, um de cada lado, e os fazia saltar sobre o piso; brincava com eles, e caso se aborrecessem, ela lhes passava a palma da mão. Com uma carícia eles iam para perto dela, como dois cães contentes; com um gesto bruto, eles se demoravam divididos em dois, parecidos com animais arrependidos. Eles se esfregavam contra ela e imploravam por guloseimas; cada um possuía uma tina de madeira onde mergulhavam periodicamente, com uivos de alegria, suas máscaras vermelhas.

Essas duas cabeças não irritavam mais a mulherzinha como antes, não a intrigavam mais, como duas máscaras venezianas vermelhas postas sobre rostos conhecidos. Ela os amava igualmente, com caretas infantis. Ela dizia sobre eles: “Meus fantoches estão deitados, meus homens passeiam”. Não entendeu que viessem do hospital lhe perguntar com qual deles ficaria. Pareceu-lhe uma pergunta absurda: era como se exigissem que ela dividisse seu marido em dois. Geralmente os punia como crianças com seus bonecos desagradáveis. Ela dizia a um: “Vê, meu docinho, seu irmão é um patife, ele é malvado como um macaco – deixei ele virado de cara para o muro; não volta até me pedir desculpas”. Depois, com um sorrisinho, ela voltava ao pobre corpo, docemente submisso à penitência, e beijava suas mãos. Ela também os beijava em suas costuras pavorosas, e imediatamente esfregava a boca, cerrando os lábios, escondida. E logo ria, por causa da perda da visão.

Porém sem perceber ela se acostumou mais com um que com o outro, porque ele era mais gentil. Isso foi inconsciente, na verdade, pois ela havia perdido qualquer esperança de reconhecê-los. Ela o preferia como um animal favorito, que sentia mais prazer em acariciar. Ela o afagava mais e o beijava com mais ternura. E o outro Sem-Boca aos poucos ficou triste, também, sentindo menos a presença feminina em volta dele. Ficava curvado sobre si mesmo, muitas vezes agachado em sua cama, a cabeça aninhada em seus braços, semelhante a um pássaro doente. Ele se recusava a fumar, enquanto o outro, ignorando sua dor, sempre respirava a fumaça cinzenta que exalava com gritos agudos por todas as fendas de sua máscara púrpura.

Por isso a mulherzinha cuidava de seu triste marido, mas sem compreender muito. Ele agitava a cabeça sobre seu seio com o peito soluçando; uma espécie de grunhido rouco percorria seu tronco. Foi uma luta de ciúmes num coração obscurecido pela sombra; um ciúme animal, nascido de sensações com as lembranças confusas talvez de uma vida de outra época. Ela lhe cantava cantigas de ninar como a uma criança, e o acalmava com suas mãos frescas repousadas sobre a cabeça ardente. Quando ela viu que ele estava muito doente, grandes lágrimas caíram de seus olhos risonhos sobre o pobre rosto mudo.

Mas logo ela ficou numa angústia pungente; porque tinha a vaga sensação de já ter visto os gestos numa doença antiga. Acreditou reconhecer movimentos antes familiares; e a posição das mãos magricelas lhe lembraram confusamente de mãos parecidas, outrora queridas, e que haviam escovado seus lençóis antes do grande abismo cavado em sua vida.

E os lamentos do pobre abandonado lhe laceravam o coração; assim, numa incerteza sufocante, ela olhou mais uma vez para essas duas cabeças sem rosto. Não eram mais dois bonecos púrpura – mas um ser estranho – talvez a outra metade dela mesma. Quando o doente morreu, toda a sua dor despertou. Ela realmente acreditou haver perdido seu marido; ela correu, raivosa, contra o outro Sem-Boca, mas parou, tomada por sua piedade infantil, diante do miserável manequim vermelho que fumava com alegria, modulando seus gritos.


Paulo Raviere é editor da Barril, tradutor, ficcionista e crítico

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