Crítica | Música


Ilustração de Daniel Carvalho

No final de 2020, o algoritmo me confirmou o que eu já sabia: o artista mais escutado por mim naquele ano triste foi Mateus Fazeno Rock, que também é o autor da música mais tocada no meu celular, “As vozes da cabeça”, faixa que abre o disco Rolê nas Ruínas, que é de foder. Desde aquele momento abençoado, em que meu amigo Ceariba, com seu doutorado no estrangeiro sobre o rock brasileiro independente, me mandou o link do disco com a lacônica afirmação “tu vai pirar”, só deu Mateus por aqui. Pirei.

Com arte é assim: a gente gosta, depois gosta de gostar e, por fim, acaba inventando algum argumento que explique aquele gostar lá do começo. Quando o Igor Show me agraciou com o convite para escrever na Barril sobre o Mateus, eu aceitei, honrado, e decidi que usaria este espaço para tentar construir uma história que explicasse, primeiro para mim mesmo, a força desse disco.

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Tommy, o disco do The Who lançado em 1969, conta a saga de Tommy Walker, um garotinho que viu o pai ser assassinado pelo amante da mãe e depois sofreu tanto gaslighting da família, que acabou ficando cego, surdo e mudo. O tempo passa e ele se transforma em um mestre do Pinball, que de tão bom passa a ser cultuado por uma legião como um Messias. No fim, seus seguidores se voltam contra o garoto e nunca saberemos se ele se lasca ou não, por causa do maldito final aberto.

Pete Townshend não sabia, mas, ao compor esse áudio-romance de formação, estava inaugurando um novo gênero: a ópera rock.  Três anos depois, o gênero ganharia outro clássico, The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars, de David Bowie, que conta a história de um rockstar alienígena que só tem mais cinco anos de vida e decide passar uma mensagem de esperança através de sua música. Muito humano, o ET acaba abusando de drogas e safadezas e, assim como tudo indica que aconteceu com Tommy, é destruído por seus fãs.

A santíssima trindade da ópera rock se encerrou seis anos depois das desventuras de Ziggy Stardust, com o The Wall, do Pink Floyd. Nesse disco, acompanhamos a trajetória de Pink, alter ego de Roger Waters, e o metafórico muro que ele vai construindo ao longo da vida, para se isolar. Pink, ainda criança, perde o pai na Segunda Guerra Mundial, é abusado por uma mãe superprotetora e submetido ao sadismo de seus professores. Quando cresce, cheio de traumas, vira um rockstar violento, compulsivo por drogas e sacanagem, perde a mulher nessa roleta de vacilações e, agora, com o muro completamente erguido, isolado de tudo e de todos, vira um ditador fascista. O final é feliz porque Pink consegue ouvir uma voz interior que lhe diz para derrubar o muro e se abrir para a vida.

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Tommy, The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars e The Wall são chamados de óperas rock porque compartilham a mesma estrutura narrativa – contar uma história com começo, meio e fim, em que cada canção equivale a um capítulo.

Rolê nas ruínas é uma ópera rock de favela, contemporânea e realista, sem as cafonices de época dos clássicos do gênero, como alienígenas, seitas religiosas e o sofrimento que é ser um rockstar milionário.  Aqui, a história que acompanhamos é a de um narrador-personagem homem, jovem, negro e periférico de rolê por uma cidade em ruínas, cega, hostil e violenta, à procura de algum prazer.

A narrativa começa com “As vozes da cabeça” que, como o título já anuncia, é um fluxo de consciência. Nesse monólogo interno, somos convidados a acompanhar pensamentos, fragmentos de memórias e recortes da visão de mundo do narrador-protagonista, e assim conhecemos tanto o personagem quanto o universo do disco. Numa mistura de ponto de macumba com funk carioca e um refrão rítmico em coral e palmas, Mateus, Caiô e Nego Célio abrem os trabalhos anunciando seu “rock de favela” – que é uma maneira de vincular-se ao gênero musical, mas afirmando sua diferença.

As opressões cotidianas, vividas na cidade, atacam a subjetividade de todos, inclusive do narrador-personagem. O racismo (“esses pretinho já não tão dormindo bem”), o Estado sempre jogando contra, seja caçando os corpos diversos (“nada de novo / essa é a Era de Aquarius / muito macho nos ovário / muito índio batizado / e a tortura é o Estado / Querendo desentortar meu corpo”), seja se omitindo na prestação dos serviços públicos (“Cabeção tá tremendo / Vai no CAPS, não resolve”).  Temos ainda a presença das polícias e milícias que, assim como capitães do mato, seguem tocando o terror para ter algum benefício pessoal (“Os gado é quem manda na pista / Manda, manda matar / Manda bala / para morar no Gran Senzala / Manda bala / Condomínio Gran Senzala”).

Sobrevivendo no inferno (“A fome faminta de morte batendo na porta tirando o sossego / A bala perdida que é teleguiada mirando no corpo do nego”), alguns decidem trabalhar na gramática da violência (“quem se cria na selva aprende a caçar”).

Quando não está sendo diretamente atacado, o narrador-personagem é invisível (“Na semana passada / correndo de pressa, a mil / passou por mim / fingiu que não me viu.”). Numa rotina dividida entre apanhar ou não ser visto, como manter a saúde mental? Bom, com humor, Mateus afirma que não será como advogam os profetas da classe média (“O nego não tem grana pra pagar um analista / e nunca ouviu falar em terapia holística / nem reike”), e que a única saída nesse caso é o hip-hop (“só break”), esse movimento que vem salvando vidas no Brasil há 30 anos.

Morando num lugar violento, tendo sua subjetividade atacada pelas opressões e seu corpo caçado nas ruas, sem acesso a políticas de saúde mental, como nosso narrador-protagonista poderia escapar? Como artista que é, antes de tudo. No nível mais profundo da mente, “a consciência me estimula e eu avanço”. Avançando, ele nos conta qual é o seu plano, a sua vingança: “eu vou abrir caminho / sai da frente, sai da frente / eu vou andar na rua sozinho”.

Em “Bem Lentinha / Slowmotion”, o narrador cumpre o prometido e sai de dentro de si. Se, no capítulo anterior, vimos a cidade andando dentro dele, agora o veremos andando pela cidade. E isso, já sabemos, não é simples.  “Andando em slowmotion / pelas ruas vazias / pisando na sujeira / e nas covardias / guardando minhas emoções / pois hoje é sexta e cheira mal”. Nosso herói, versado na malandragem, não está de bobeira: “me preparo pro baque / me preparo pro baca / me preparo pra Baco / mil treta e urucubaca”. E então, mais uma vez, reafirma sua vocação de produzir arte, independentemente de tudo, inclusive da própria vontade: “eu calo a boca e ainda assim a boca fala”. Ouvimos a representação auditiva do medo – e é um barulho de sirene. “A boca fala, fala o que quiser de mim. E um som uníssono vai invadindo a sala, que saia fora quem tiver achando ruim. Eu vou por mim, eu vou dormir”. Sozinho nas ruínas, correndo perigo, o narrador-protagonista é, antes de tudo, um artista e, desse modo, segue em frente, assim como seu antepassado Mano Brown fez em 1997: “eu tenho uma missão / e não vou parar”.

Em “Legal, legal”, um ska, o herói já está flanando pela cidade em um espaço cheio de dubiedades a serem narradas. “Deve de ser a realidade / mas a mentira tá tão igual, vou te contar, mas pela metade, / que é pra tu querer ver o final”. As ruínas são cheias de arapucas: a captura pelo trabalho (em troca do dinheiro para sobreviver) e submissão aos brancos e suas violências, e o apagamento da consciência – aquilo que, vimos na primeira canção, é o principal para a sobrevivência do protagonista-narrador: “por money você vai viver / sem tempo pra compreender, um branco aperta a minha mão, me oferece um não, pede compreensão”. Mais uma vez, mas de uma nova maneira, a ruína que é a cidade oferece perigos para o personagem de rolê: “Eu tava andando pela cidade / mas fui coberto por meu lençol / corpo queimando, intranquilidades / senti o gosto do teu anzol / um rouxinol atingido pela baladeira do filho caçula, alguém aperta o botão de alarde, estou pronto pra levar uma surra”.  Trocar tempo por dinheiro através do trabalho, que é a base do capitalismo, deixa os corpos dóceis: “A gente apanha legal / a gente é bicho que não se move / a gente aprende a apanhar”. E a opção por uma saída marginal, apesar de piorar as coisas, se mostra mais interessante do que a submissão ao moedor de carne: “fui bem ali me armar de revolver / pra resolver meus BO / pra ficar na pior, pra ser bem mais legal”. “Maldição!”.

Como já dissemos antes, o nosso herói está de rolê nas ruínas, atento para sobreviver e à procura de algum prazer possível. Em “Aquela ultraviolência”, o que era para ser uma noite divertida com música e alguns aditivos vira uma bad trip, e aquele que parecia ser um amigo se mostra um sádico espectador do martírio alucinógeno do narrador: “Estar na Junkie House da cidade acidado / dopamina já me controlava / medo me consumia / cada molécula afundada no nada que eu permanecia / A euforia me alucinando / furacão instantâneo / substanciado com a premonição da cilada / já estranhando aquela pessoa estranha / me olhando e dizendo que gostava do semblante de medo que eu tinha / e que entendia a consciência alterada e se satisfazia / explicando o porquê que ela me perseguia”.

A bad trip vai virando um pesadelo e a vida vai passando em flashes pelos olhos doidões do narrador: “agora estava diante o meu assassinato / e não havia nada, nada, nada que eu pudesse fazer / sair correndo pra bem longe / eu não podia fugir / arquitetar um plano pra acabar com a vida / bastante eficiente mas não quis me permitir / daquela noite eu não passava”. Num ritual macabro, os convivas – entre eles o amigo traidor – se organizam para acabar com o protagonista: “eles me levaram prum lugar escuro / estavam todos, se asseavam para executar o meu fim / não foi tão ruim, senti prazer no breu / meu mundo ficou mais feliz / por não existir”.

Nessa, que me parece a mais simbólica das histórias, vejo uma metáfora para um momento em que esse jovem negro, de periferia, atravessa a cidade pensando em se divertir com amigos, mas percebe lá que, para eles, é um objeto, não um sujeito. E, para o nosso personagem, é melhor a morte que a desumanização.

Em “Névoa”, o protagonista também está em um lugar da cidade que lhe é hostil, uma “festa” com “toda essa gente indigesta”. Mas aqui, no outro extremo do que acontece em “Aquela Ultraviolência”, ele encontra uma “salamandra amarela” e a “cidade maldita ficou tão bonita”. Ou seja, apesar de a cidade ser um inferno, de o protagonista do rolê estar sendo sempre caçado ou invisibilizado, a metrópole pode oferecer alguma esperança, ainda, como o lugar dos encontros.

Em “Melô do Djavan”, um grunge da pesada, Mateus está de volta em casa, acordando: “vou fazer café / reclamar do ar”. E reitera a ideia do lugar dos encontros, do afeto: “a cidade como um rio é / uma estrada procurando a outra / beija a minha boca / grita em minha boca”. Em seu monólogo interno, cria uma imagem da divindade como um utensílio que pode ajudar com pequenos reparos ou ferir: “Trouxe a euforia dos meus aforismos / de dizer que Deus é um objeto cortante / como meu unhex / como minha gilete / tua bisturi”. E arremata, trazendo um pouco de sacanagem para sua busca por prazer nas ruínas, com um pedido: “mete fundo em mim”.

Depois, ele fala sobre as suas estratégias de sobrevivência no inferno, os problemas emocionais e materiais se acumulando e se retroalimentando, e dá uma aula de bom uso das palavras, ao usar a palavra ralo, primeiro como substantivo e depois como verbo ( no sentido de correr atrás, trabalhar) e, ainda, por último, como “hello” do Nirvana, citando “Smells Like a Teen Spirit”: “jogo meus problemas todos pelo ralo / ralo de manhã, de manhã / ralo, ralo, ralo mas não tem dinheiro pra gravar meu som / Djavan, Djavan”. São muitos os problemas, de muitas ordens, mas a função do artista é fazer sua arte, e a criatividade e coragem na produção são as únicas maneiras de compensar a falta de dinheiro. O rock de favela junta a atitude punk do “faça você mesmo” e a tecnologia rap, que se afirma esteticamente e também reduz os custos de produção (um DJ equivale a uma banda): “faço como posso / quase que não posso / faço mesmo assim”.

Na sequência, o narrador-protagonista combate a cultura coaching. Para ele, fazer música é um compromisso doloroso, que acarreta uma série de sacrifícios, e não só uma questão de desejo: “não adianta / não é assim acordar, levantar, mudar tudo / não é indolor / sai sangue e pus / é um absurdo / eu pus pra fora uns bife e uns riff / tive que sacrificar um pouco do meu sono / do meu estômago / e do meu espelho”.

Em “Missa Negra”, o narrador vai à praia, um dos poucos respiros na cidade em ruínas. Ainda de madrugada, ele se prepara para aproveitar o domingo: “Numa madrugada / de cabeça erguida / gastando entorpecente / e se esquivando da polícia / Numa madrugada / sanidade ao menos / a dor e a delícia / de ser privado dos venenos”. A praia é um oásis em meio ao deserto: “É dia de missa pro trabalhador / Não, não há justiça mas tem sol e calor / então vamos pra praia / to levando a kaya / JBL, Stevie Wonder, Jammin, reggae, fya”. Sentado na areia, à procura de encontros, e nada garante que ele não será caçado também naquele lugar de celebração, por isso ele se protege na companhia de seus iguais e com o axé da mãe: “to com os amigos / não tem perigo / a multidão é que é o inimigo / Inimigo, amigo, comigo / Bença mãe!”

Do Harlem a Cajazeiras” é a única história contada em terceira pessoa. É, também, a mais literal, e a menor, das letras. “No Harlem, homens brancos / chegavam com seus carros metálicos / tiros e pânico / Na Cajazeiras / encapuzados / entraram num forró de favela / e foi tiro para todos os lados / Não enganam ninguém”. A força dessa história está também em seu minimalismo. Ao optar por narrar, com poucas palavras, duas cenas tão parecidas em lugares tão distintos, Mateus Fazeno Rock chama a nossa atenção para a universalidade da chacina como uma estratégia do racismo. Ouvimos ainda, ao fundo, sem conseguir compreender, uma entrevista em andamento. O sampler dura quase toda a canção e a única frase que conseguimos distinguir, ao final, é: “é isso que eu queria falar”. Esse contraste entre não ouvirmos o que a pessoa sampleada está dizendo enquanto ouvimos uma letra curta, direta e literal, dá ainda mais força à gravidade do relato.

Trilha sonora para o fim do mundo” é a música que encerra a ópera rock e fecha a trinca dos três fluxos de consciência, com “As vozes da cabeça” e “Melô do Djavan”. Aqui, o narrador reitera os pontos mais importantes de sua obra: a presença da violência que permite confundir Fortaleza e os filmes de Western: “Velho oeste não é aqui / o velho oeste é do outro lado”, o racismo a que está submetido quando anda pela cidade: “Old, cidade velha / velha em silêncio com seu dente de ouro na boca / andando ali do outro lado da rua / ela me evita pois tem medo que eu leve sua bolsa / enquanto isso eu vou levitar, levitar, levitar / levitar, lhe evitar, levitar, lhe evitar, levitar / o extermínio da juventude negra destruindo a subjetividade dos sobreviventes”. “Se meus amigos tão morrendo / eu vou morrendo junto / quando eu fizer nova amizade / eu já virei defunto / e meu cadáver tem vivacidade e violência / só não to morto porque tudo vira experiência”, uma autodefinição certeira que mistura ancestralidade e perrengues: “Fi de Nanã sem curso de inglês / não traduziu o mapa”, mais uma afirmação contra a cultura coaching: “a sujeira que deixaram os português / não se limpa com água” e, por fim, encerrando a história, a profecia de que o mundo vai acabar antes da desigualdade: “ Humanidade ingrata / chupa, engole e mata / morre os bicho, as planta, os pobre, os burguês / só vai sobrar barata / e no final da conta é uns dois ou três / que entra numa nave e vaza”

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Em sua ópera rock de favela, Mateus Fazeno Rock leva o público tanto a passear por uma cidade em ruínas na pele de um jovem que é caçado por ser quem é, quanto a flanar  pela brilhante mente desse mesmo jovem artista.

É essa dupla jornada simultânea, junto com a opção estética pelo figurativo e não pelo literal e também, principalmente, pelo dom absurdo que tem com as palavras, que, concluo agora, fazem esse disco ser tão apropriado para esses dias de debates esquisitos em que vivemos.

Mateus não se resume à sua vivência, mas parte dela para criar a sua arte. Mais do que representar, ele emociona, porque é profundamente cioso com a sua própria visão de mundo, que é, sim, influenciada pelas condições materiais do coletivo, mas sem nunca correr o risco de submeter o seu discurso a um discurso esperado e perder, assim, a própria voz.

Com suas diversas influências (macumba, funk carioca, Nirvana, Secos & Molhados, Syster Nancy, reggae, ska, rap etc.), sua potência vocal alinhada a uma carismática língua presa e, principalmente, sua poesia genial, Mateus nos faz lembrar de uma premissa simples, mas infelizmente esquecida: o importante é ter coragem, algo pra dizer, guitarra distorcida e beats bem suingados.


Danilo de Oliveira é escritor, professor de escrita criativa e comentarista amador de BBB. Editor da Revista Seca.

 

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