Crítica | Cênicas


Foto de Andrea Magnoni

ONDE SE ABREM OS ABISMOS

abril de 2016

Edição: 2


Crítica de Abismo

 Esse começo vai parecer manchete sensacionalista ou narração de filme noir. Fazer o quê? É noite. Numa casa ao fundo do beco, dois homens trocam porradas. Um rasteja pelo chão enquanto outro o golpeia numa série de chutes certeiros. Há muita gritaria, e isso nos chama mais pra perto. Alguns chegam a entrar. É o mecanismo de uma tragédia cotidiana qualquer: o que deveria repelir provoca curiosidade. “As sociedades do espetáculo…” – falou o papagaio acadêmico – “blá blá blá…”

Abismo, espetáculo do Teatro da Queda, começa assim, com um punch inaugural. Lança mão de um naturalismo violento que provoca em nós, humanos, a mesma sensação involuntária que um chinchilidae deve sentir ao ver um caracara plancus em seu encalço (WIKIPEDIA, 2016). Neste momento cria-se uma empatia grave, animalesca. É algo nos corpos que se dá ao mesmo tempo, nos mesmos locais. O coração acelera. Sentimento estranho… Artaud devia ter pensado em algo assim enquanto escrevia seu atletismo afetivo. Dizia o francês abilolado: no que quer que você faça ou fale, ataque o corpo primeiro e aquilo vai dar certo. (Telefone para impropérios provindos do Clube Brasileiro dos Amantes de Artaud: 71 99156-8171)

Então, já na rua, um carro de verdade, pilotado pelo ator maior, arranca forte e de súbito pára, porque o menor se joga no capô. É digno de nota o trabalho do iluminador (da Fiat ou Ford), que desenhou a luz do farol para atingir em cheio, justo naquele momento, a interpretação do ator menor. Por outro lado, nesta cena veríamos uma marcação sublinhada demais, não fosse o tradicional coração de chinchila do público que sempre nos salva, e que ainda late muito alto graças à primeira porrada.

Neste ponto me sinto na obrigação de alertar aos desavisados e viciados em caixa preta e ribalta que toda a ação de Abismo se passa numa casa real e numa rua real. Portanto, não tratamos aqui de carros de papelão e casas pintadas. As pessoas ao redor são reais, mas também são espectadores e figurantes involuntários, o que se normaliza frente ao fato de que aquele casal de homens é real e também são atores e personagens. Então estamos quites, há um pacto! Se algum de nós se achasse só um pouquinho mais real, estaríamos perdidos. Mas o bom é que no fim das contas é tudo ficção e podemos ficar ali tomando nossa heineken enquanto o maior bate no menor.

Enquanto isso o carro vai acelerando sem sair do lugar, fazendo aquele barulhão que faz gozar os aficcionados do automobilismo, e esse ronco é uma fala mais persuasiva que qualquer outra que pudesse surgir de suas bocas na dramaturgia que se seguirá. Ah, o poder das máquinas, tão superior ao das palavras e corpos, sejam eles com ou sem órgãos.

Mas o espetáculo, que começou com um jab-jab-cruzado, não termina com nocaute. Julio Cortázar, el argentino, gostava de comparar o boxe com a escrita, coisa que na minha humilde opinião deveria valer pra qualquer tipo de arte narrativa, que neste caso seria a dramaturgia (e não exatamente a cena). Então é com mestre Julião que vamos analisar o que nos resta do Abismo.

Depois do grande acontecimento da briga, somos todos levados literalmente “pra dentro de casa”. É lá onde se jogam as toalhas, é lá onde finalmente se dá o Teatro (com “t” maiúsculo mesmo, porque seja em Tebas ou Nova Orleans, este sempre se dá sempre “dentro de casa,entre os nossos”). Aqui temos a estrutura conhecida: ao redor os espectadores sentados, dentro desse limite um texto declamado, em cima luzes acendendo e apagando, e nos atores marcações e tempos interiorizados. A casa real se transforma num apartamento fictício, e de repente somos arremessados numa série de D.R’s que se sucedem em espirais ou como em uma matrioska. Nenhuma dessas convenções seriam problema se não contrastassem estruturalmente com todo o panorama descortinado ao nosso redor, tanto pela primeira cena quanto pela própria ocasião do espetáculo.

É que Abismo é apenas uma das apresentações do repertório do grupo, dentro de uma grandiosa ocupação e reativação produzida pelos mesmos, no famigerado e outrora renegado Beco dos Artistas. Aqui ocorrem centenas de eventos. Aqui novos corpos vem dar pinta. Sempre que venho neste lugar sinto a respiração de uma transformação: pós-sentimental, pós-moral, pós-católica, pós-apostólica, pós-romana, pós-identidade, pós-política, pós-tudo. Mas então, a quê esse Abismo nos constrange, mesmo cercado de todas essas circunstâncias, de todas essas potências, de todas essas pós-políticas vivas, ativas e incorporadas? Principalmente um tempo fechado.

O tempo é o de uma sala de estar. Sabemos estar inseridos naquele turbilhão que se tornou o Beco Ocupado, mas de alguma forma estranha me pressionam ainda para dentro de uma sala, de um quarto, de um apartamento. Mas que coisa, tudo isso soa um tanto familiar. O Teatro da Queda sustenta ou já sustentou o discurso e a busca de um teatro documental. A ação ficcional por vezes era interrompida e o ator vinha “à frente” falar de si. Mas esse falar de si trazia alguns problemas: na procura de um tom mais próximo ao interlocutor, terminava acentuando uma intimidade artificial que contaminava toda a presença. Essa proximidade teatral se revela muito similar a uma intimidade novelesca.

Talvez realmente se trate de uma contaminação inconsciente, já que não chega a ser irônica. Não à toa reconheci isso nos dois atores de Abismo. Tal qualidade faz com que o tom geral seja de uma eterna discussão de relacionamento, e não revelação de visões diferenciais, desnaturalizações e deslocamentos. Vale dizer que essa herança comportamental parece vir muito menos de um cotidiano imediato que de trejeitos emitidos pelas narrativas televisivas.

Mas calma, não sou apenas eu quem projeta sobre a cena. Ela mesma nos dá pistas. Em algum momento, durante uma das brigas ou encontros amorosos dos dois personagens, um dos atores vem em direção a um microfone colocado estrategicamente de frente ao público e irrompe com um discurso politizado — expõe a temática subjacente; mas por esta irrupção ser estrangeira à estrutura proposta como base, acaba por implodir dentro de sua própria bolha semiótica, espetacular, inescapável e distante.

Saí antes do fim. Isso também devo admitir. Acredito que as decisões dos espectadores são elementos estruturais da cena, e devem ser levadas em conta tanto no momento de criação quanto  no de análise. Saí, certamente não porque tenha achado Abismo um teatro destituído de interesse, mas porque eu mesmo não poderia escutar por muito mais tempo as discussões nos termos ali colocados. Espero que tal sensação não seja só pessoal. Esta se confirma um tanto menos solipsista quando saio pra rua e lá encontro corpos que estavam desde antes vibrando e esperando pelo desfile de drags que se daria logo depois. No desfile das drags minha subjetividade — e com certeza a da maioria — estava voando por outras paragens, já sem nenhuma louça a ser lavada.

Abismo deve gerar identificações potentes com quem assim deseje se identificar, ou com quem coincidentemente esteja vivendo um momento sentimental; mas intuo que o buracão impessoal e selvagem que o título promete — ao menos nessa apresentação — se deu menos dentro do espetáculo que fora de seus próprios limites cênico-estruturais; mais exatamente, o vão se abre justo ali onde o Teatro da Queda produz um dos furacões do novo porvir: as ocupações, que são os abismos da história. Que a história tal como a conhecemos seja abismada e tragada. Seria um gran finale.

O tempo é o de uma sala de estar. Sabemos estar inseridos naquele turbilhão que se tornou o Beco Ocupado, mas de alguma forma estranha me pressionam ainda para dentro de uma sala, de um quarto, de um apartamento.​

Rebate à crítica “ONDE SE ABREM OS ABISMOS” de Daniel Guerra

Por Thiago Romero

Foto de Andrea Magnoni

Abismo nasceu em 2008 e foi montado no Rio de Janeiro através de um prêmio dado pelo Sesc Tijuca para novas dramaturgias. Em 2011, surgiu o desejo de montar novamente este trabalho. Em Alagoinhas, junto aos atores Antonio Marcelo (que a crítica chama carinhosamente de ator maior) e Daniel Arcades (que recebe um outro afeto, ator menor), uma nova pesquisa, uma nova descoberta e outras preocupações partem a partir do trabalho. A concepção da caixa cênica do Sesc Tijuca sai, entram as ideias de apresentações dentro de casas pela cidade do interior da Bahia, e o texto, teatral, fica.

Inclusive, este era o novo desejo da equipe: Não deixar de assumir que se trata de teatro, mesmo dentro de um espaço tão realista como a própria casa das pessoas. O texto se manteve com sua linguagem literária, poética e inspirada no vocabulário de Caio Fernando Abreu e algumas ações mudaram. Entrou o punch inaugural, entraram depoimentos colhidos em casas ao qual ensaiamos e, principalmente, entraram atores baianos, interioranos com outra história teatral e outro modelo de formação. O teatro encontrado em Alagoinhas naquela época em nada tinha a ver com nossos academicismos – nada contra os acadêmicos – e não se fala aqui de pureza nem de inocência no fazer artístico. Falamos de um ofício da feitura que não tem medo de parecer, aos olhos artísticos, piegas, clichê ou teatral demais (do que estamos falando mesmo?). Naquele encontro, ratificamos uma vontade de se preocupar com uma identificação direta com o público, e, principalmente, com o público que nos consome (jovens, LGBTS, e, acreditem, terceira idade são quem mais nos assiste). É óbvio que a necessidade de provocar esta plateia existe e fazemos isso, digamos, que em doses homeopáticas. Acompanhamos o processo de sensibilidade artística de quem nos acompanha e sim, pensamos nisso a todo momento.

Nossa ‘intimidade novelesca’ (outra nomeação que agradecemos) é consciente. Sabemos de todos os furos e de todas as necessidades de artificialidade nas ações feitas. Em momento nenhum o Teatro da Queda entende o teatro documental como um jogo de ilusão, como uma necessidade de se mostrar real, pelo o contrário, acreditamos na ação da autoficção, na construção da mentira a partir do que, comumente, achamos que é verdade. A presença de elementos novelescos nos leva para este lugar no teatro (e não, não queremos aqui um efeito de distanciamento brechtiniano, estamos mais para o momento em que sentamos no colo da avó e ouvimos aquelas histórias inventadas na hora).

Estamos em um momento que queremos deixar claro, muito claro o que entendemos como o discurso daquele trabalho. Isto coloca em detrimento o valor artístico? Depende do tamanho do olhar, depende de como estamos. Abismo foi apresentado, quase sempre, para público de dez a quinze pessoas dentro das casas, enquanto Revelo (outra obra nossa) teve um público em uma temporada demais de mil pessoas. Toda essa ação e essa quantificação é calculada pelo grupo. Mas insistimos em fazer trabalhos tão díspares justamente por acreditarmos no ouvido de um grupo de dez pessoas e nos ouvidos de mil pessoas, mas ambos não querem ouvir a mesma coisa.

Uma pena que a proposta de fazer uma crítica a um espetáculo não tenha feito o crítico assisti-lo até o fim. O crítico, com certeza, não deve ser um espectador tão doado já que se permitirá a analisar mais do que sentir. A ação de sair da peça para se divertir com o público que chega a nossa ocupação após o horário dos espetáculos, com certeza, é uma atitude, inclusive, prevista por nós quando escolhemos colocar essa peça conflituosa numa ocupação como a do beco dos artistas. Mas calculamos isso de um espectador pronto para se divertir numa noite de sábado, e não de uma proposta crítica. Esperamos muito que possa ver onde aquelas infindáveis DR’s e todo aquele teatrão (adoramos o T maiúsculo e vamos sempre usá-lo junto as mais diversas possibilidades) podem dar. Esperamos que tenha acesso à ficha técnica do trabalho (encontra-se facilmente na internet) com os nomes de todos os envolvidos (não, nem a Fiat nem a Ford pensaram no efeito do farol do carro no rosto do ator, mas um iluminador). De preferência, em outra ocasião, onde o pós não interfira no presente.

Parabenizar toda a equipe do Barril pela ação de fomentar mais um espaço de debate e produção do fazer artístico e torcer para que cada vez mais, conscientemente, percebamos a importância da seriedade que é registrar sobre o que fazemos de arte em tempos tão dolorosos como o que vivemos atualmente. Sucesso às nossas ações e persistência nelas!

Teatro da Queda

2018 | Revista Barril - ISSN 2526-8872 - Todos os direitos reservados.