O lugar escolhido para a apresentação do solo SerEstando Mulheres, de Ana Cristina Colla, atriz e pesquisadora do LUME, foi a pequena sala de um casarão no Rio Vermelho, ocupado por alguns refletores e poucos objetos de cena separados em um canto do espaço cênico. A estreiteza do lugar se intensificou com a chegada do numeroso público, apesar da chuvosa noite em véspera de feriado. O trajeto, descrito na fala inicial da atriz, soa tão simples como ela própria: o encontro com outras mulheres desde sua infância e a reverberação disso em si mesma.
Não é necessário muito tempo para que estejamos todos atentos ao que Ana nos convoca. As diferentes mulheres apresentadas pela atriz preenchem o familiar cômodo com imagens que nos impelem à produção de sentidos. Essa dança entre o que é realizado pela atriz em cena e o que, no público, ressoa como elaboração de um mundo é provocada tanto pelo texto como pelo corpo da performer. Um texto preciso que não se esquiva de improvisações e um corpo desembaraçado que não deixa escapar as bagagens que lhe tecem. Um texto-corpo afinado com o tempo necessário para transição de uma mulher à outra.
Medos, tristeza, loucura… são os estados frequentemente acessados para adentrar o universo feminino e isso, em um primeiro momento, pode causar incômodo àqueles que aspiram ao retrato de uma mulher dona de si. Ao mesmo tempo, se queremos recusar tais sentimentos por sermos submetidas a eles de modo tão corriqueiro em diferentes lugares e de diferentes maneiras, como não associá-los à consolidação de um destemor apto a nos relocar na paisagem em que ainda nos desenham?
A primeira mulher trazida por Ana é D. Maria. Não saberia dizer ao certo se a atriz a descreveu verbalmente como uma mulher negra, gorda. Independente da resposta, sempre que lembro dessa personagem é essa a imagem que se estabelece em minha lembrança, apesar de ser Ana uma mulher branca e magra. Uma matéria pesada pela voz, pelo olhar, pelas nuances de uma presença e toda uma paisagem densa que a envolve como primeira demonstração do que Ana faria em todo o espetáculo: SerEstar outras apesar de si mesma.
A cena em que a atriz parece se referir a ela mesma mais diretamente é justamente na qual surge uma personagem que destoa da simplicidade oferecida pela mulher Ana no início do solo. Batom, salto alto, dourado, loiro… são os elementos que vão compondo o tipo ao longo da situação. E essa figura, à medida que menciona Ana em suas falas, acaba por funcionar como uma autoanálise da atriz sobre possíveis desejos e desconstruções. Esse é o momento em que o público mais se refastela, mostrando que o padrão, trazido nas ambições fúteis da personagem, ainda pode soar engraçado, mesmo sendo tão opressor.
Quero me servir da palavra acúmulo para me referir ao SerEstando Mulheres. E, quando penso em acúmulos, vem-me a imagem de muitas coisas sobrepondo muitas outras coisas e nesse sobrepor excessivo um estouro, uma arrebentação de algo que invariavelmente emergirá. E essa emersão é desenvolvida no espetáculo nem sempre pelo viés da agressividade, mas sobretudo na sagacidade elaborada num corpo-história que de algum modo sabe onde se encontra e zomba disso, como bem ilustra Caetano Veloso em Dom de Iludir quando nos recomenda a não falar da malícia de toda mulher.
A própria pesquisa da atriz para este solo – um reencontro com as personagens femininas a quem deu vida nos 20 anos de Lume Teatro – ocasiona a sensação de acumulação a qual me refiro. O solo vai descortinando horizontes heterogêneos: o rural, o quarto, o urbano, a rua, a janela, o chão, lembrando-nos sempre da contradição que somos nós mesmos na complexidade de nossas experiências, o que nos propicia um confronto de dentro para fora, de fora para dentro, bem como de dentro consigo.
Um texto preciso que não se esquiva de improvisações e um corpo desembaraçado que não deixa escapar as bagagens que lhe tecem. Um texto-corpo afinado com o tempo necessário para transição de uma mulher à outra.
SerEstando Mulheres se desvela para seu público num jogo entre simplicidade e vigor. Simplicidade nos figurinos, nos elementos cênicos, no tom da atriz, na história das personagens, nas músicas e nas danças. Vigor no mesmo tom, nas mesmas histórias, nas mesmas músicas e danças. A justaposição das duas coisas se impõe como a grande potência do espetáculo. Ou melhor: a justaposição de tantas coisas – o texto-corpo, o padecimento-destemor, o rural-urbano, o quarto-rua, o magro-maciço – produz a dinâmica do espetáculo, bem como nos reporta ao movimento de nos tornar. Todo essa defrontação acentuada pela proximidade de tantos corpos em um ambiente tão reduzido.
E pensando que seresta, adaptação brasileira para serenata, é o ato de cantar à noite pelas ruas para declarar amores, até que o termo SerEstando não soa tão mau assim, ainda mais se o tomarmos como a materialização, em palavra, da justaposição e do confronto que o espetáculo tanto evidencia.
Por Ana Cristina Colla
Salve Bárbara e a Revista Barril por terem serestado comigo em SerEstando Mulheres. Agradeço ao olhar sensível para esse espetáculo que me é tão caro. Aproveito também para deixar registrado um agradecimento especial a afetuosa Casa Guió que abriu as portas para me receber e a Felícia de Castro e a Naia Pratta que não pouparam esforços para que o espetáculo pudesse acontecer da melhor forma possível. E claro, um agradecimento a todas as pessoas que escolheram partilhar comigo essa noite chuvosa, super aquecendo a pequena sala que nos recebeu. Foi encantador.
Começo pelo fim. A escolha por nomear esse trabalho de SerEstando – apesar de remeter propositalmente à seresta como ressalta Bárbara e que me agrada quando penso no encontro que ela proporciona – surge do jogo com os verbos Ser e Estar. É possível ser e estar ao mesmo tempo? Ou para estar é possível deixar de ser? E sendo conseguirei estar? Nossa língua permite essa separação, como se fosse possível ser e não estar ao mesmo tempo. Quando penso em qual seria o verbo do ator, são esses os que despontam. Quantas vezes em cena me senti estando, corpo físico e não sendo, corpo presente. Macaqueando ações sem conseguir estabelecer o elo que me liga ao outro e que dá sentido ao encontro tão valioso no fazer teatral. Daí a busca constante por SerEstar, em cena e fora dela, ancorando essa busca num corpo multifacetado. E quando digo CORPO, digo multiplicidades, atravessamentos, contaminações, linhas de forças múltiplas, ressonâncias, devires, afetações, emergências, experiência, encontro, memória, criação, carne,língua. Tudo junto e misturado. De boca cheia.
“O que aconteceria
se descêssemos no corpo,
colocando uma escada
até suas profundezas?”
Tatsumi Hijikata
Quando completei 20 anos de pesquisa no Lume Teatro e o desejo brotou forte, de mapear um caminho percorrido, percebi que as corporeidades que mantiveram sua intensidade, mesmo com o passar dos anos, foram as femininas. Talvez contaminada pelo desenvolvimento de um olhar focado no feminino, após ter participado em 2008 e 2010, do Encontro e Festival de Teatro Feito por Mulheres Vértice Brasil, onde a questão do fazer teatral feito por mulheres é amplamente discutida. Talvez por ter me tornado mãe e assim me ressignificado enquanto filha e esse cruzamento com a atriz ter potencializado os diferentes territórios por onde nós, mulheres, circulamos e as diferentes sensibilidades que cada um deles nos exige. Talvez por me ver espelhada em cada uma delas, mulheres observadas e recriadas por mim, em viagens pelos interiores do Brasil ou construídas no fervor da sala de trabalho, entre quatro paredes. Talvez pelo colorido, tão singular de cada uma; da penumbra da velha acamada, da cor rosa da menina velha com rugas, do ocre crú e intenso das ruas, do pink fútil da loira Nataly.
Quantas mulheres somos! E que prazer me vestir de todas elas, sendo outras sem deixar de ser eu mesma.
Nos primeiros passos rumo à criação do espetáculo, em parceria com o querido Fernando Villar, caminhamos em direção ao formato de uma demonstração de trabalho, já que um dos pontos que me instigava era desvelar os infinitos fios que compõem um processo de criação. O enfoque estava voltado para as metodologias de trabalho e a construção técnica das figuras. Após algumas aberturas de processo, fomos radicalizando e extraindo as informações objetivas sobre as técnicas envolvidas – mesmo elas estando subjacentes ao fazer – e o que foi para o primeiro plano foi justamente o que mais pulsava em mim como desejo: a diluição de fronteiras. Entre a técnica e a vida, entre a atriz e a mulher, entre o pessoal e o privado, entre o real e o ficcional, entre a atriz e o espectador. E sem essas fronteiras, o encontro, a relação (seja ela a relação entre as matrizes corpóreas, seja ela com o público), ganhou o centro da cena.
A busca pela simplicidade foi um dos principais norteadores. “Fernando, quero que caiba tudo em uma mala!”, assim comecei. “E se possível de rodinhas, para que eu possa carregar para todos os cantos”. E assim, eu e minhas mulheres, ancoradas na potência do corpo, viajamos juntas para onde estejam dispostos a nos receber. Já serestamos em presídios femininos, jardins, praças, salas, teatros e casas. É só chamar que eu chego lá.
O pequeno, o simples, não como falta, mas como escolha. Assim creio, e a cada dia mais.
Salve Dona Maria, de Jaraguá – Tocantins. Salve Dona Maroquinha, De Novo Airão, Rio Negro- Amazonas. Salve Dona Laranjeira, Rosana, Madame Pacaembú e tantas outras das ruas de São Paulo e Rio de Janeiro. Salve Vó Maria e Mãe Ana que me gestaram e deram vida. A benção.