Crítica da Crítica | Cênicas


O Ritmo do Nada

maio de 2017

Edição: 12


Dar forma a um tablado editorial é uma das atividades mais desafiadoras no que se refere à prática social da intelectualidade, pois os caminhos já trilhados desde Gutemberg são muitos e não faz sentido se repetir copiando Pierre Menard. Uma coisa é derrubar o mito da originalidade, outra é assumir o “mais do mesmo”. Para complicar a situação, as individualidades reunidas em grupo – sem as quais nada de novo sob o sol seria possível – muitas vezes se mostram resistentes quando precisam abdicar de suas convicções em nome da viabilidade de um projeto. Outro grande problema: como conceber e diagramar as matérias verbal e não-verbal desenvolvendo, com personalidade, uma dicção potente sem se transformar em um mero criado das demandas e caprichos dos leitores contemporâneos? Uma coisa é compreender o presente, outra é curvar-se a ele.

Vamos ao assunto.

Se você não conhece o Bocas Malditas, não se sinta por fora, não se espante. Em matéria de crítica de artes cênicas online o site é uma novidade de apenas três meses. Diretores, dramaturgos, críticos e artistas visuais formados em diversas Universidades do Paraná compõem a equipe que inaugura e sustenta essa recente empreitada. Seus textos ganham as telas dos computadores e celulares a partir de um layout seco, elegante e muito funcional. Quase tudo preto no branco.

Na página inicial há cinco retângulos grandes que dão acesso ao material do site (quem somos, escritos, caderno de artista, entrevistas, contato). Até aí uma escolha editorial conservadora de simples decodificação. Mas o conservadorismo acaba por aí. Logo na descrição pregada abaixo do título está riscado o seguinte: “Bocas Malditas é um site de escritos e outros materiais críticos e reflexivos de/em artes cênicas. De/em/para Curitiba, e para além dos pinheirais”. Eis uma primeira marca de distinção: o estilo hiper-preposicional.

Clicando no “quem somos”, o leitor é levado para o campo de batalha mais turbulento dos tempos que correm: a zona dos jogos de identidades. É preciso responder a uma das três questões fundamentais da filosofia. Nessa seção, as estratégias desenvolvidas são muitas e as discussões quanto ao conteúdo estão latentes, mas para o propósito deste texto, focaremos a forma do texto a partir de quatro eixos. As operações destacadas são: 1) alheamento do mundo via conjunção reticente; 2) repetição de frase taquigráfica visando a integração de segmentos estético-sociais; 3) articulação de olhares inclusivos em direção a diversas linguagens artísticas e não artísticas; 4) emprego do artigo X;

(grifos deles)

número 1: “Bocas Malditas. Bocas Malditas porque aqui. Bocas Malditas porque plural. Bocas porque falantes. Malditas porque insistentes (…) Bocas porque dentes língua. Malditas porque mordida lambida. Bocas porque beijo. Malditas porque Gilda”.

número 2: “Uma crítica.  Uma crítica amiga. Uma crítica bicha. Uma crítica que conversa no fim (…) Uma crítica metalinguística. Uma crítica preta.  Uma crítica americanizada. Uma crítica europeizada. Uma crítica latino-americana. Uma crítica universitária. Uma crítica novelística. Uma crítica que dorme cedo. Uma crítica que fica até fechar o bar”.

número 3: “Artes Cênicas. Várias perguntas, algumas crises, e nenhuma certeza. Artes cênicas?Teatro-Dança-Performance-Musical-Circo-Mágica-etc.Visualidades-Sonoridades-Corporalidades-Espacialidades-Temporalidades-Sociabilidades-Politicidades-etc”.

número 4: “Pensar sobre. Pensar sobre é estar permanentemente em trânsito.Convidar. Convidar é dizer “vamos juntxs”.

Além de funcionar como demarcação de território, essas citações também apresentam valores que o grupo cultiva de modo recorrente em outros textos. E nesses valores nada de mal há, pelo contrário. Nas linhas escritas acima e nas críticas propriamente ditas percebe-se a verve democrática, a preocupação com a igualdade social nas artes e a generosidade de olhares atentos que pouco ou nada querem deixar escapar. Como é o caso da crítica de “Bimobaba”   – performance de Bia Figueiredo – escrita por Francisco Mallmann. Aqui se podem observar todos os cinco elementos estilísticos citados anteriormente: o hiper-preposicional “Bimobaba é um trabalho de/em dança”; a reticência via conjunção unida à repetição de frase taquigráfica “Se ela usa a boca, se usa os pés, se usa a bunda. Se ela usa os braços. As mãos, se ela usa. Se ela atrita contra a parede. Se ela move a cintura. Se move as pernas.”; articulação de olhares para diversos segmentos estético-sociais via travessão “Mu-dança de lugares, corpos, territórios e paisagens. Híbrido-performance-dança.”; artigo X “Bia Figueiredo vem pesquisando já há alguns anos, junto de várixs outrxs”. Note-se que os recursos muitas vezes pegam características emprestadas uns dos outros.

 

Há um tipo de escrita que se pretende inclusiva e abrangente, mas se esquiva das questões mais complexas quando recorre justamente a estruturas pré-moldadas. Não são as justaposições de preposições, nem as metralhadoras de travessões, muito menos o artigo X, que fazem um texto justo, honesto, responsável e relevante.

No afã de responder as questões do presente, na mesma medida em que busca firmar seu lugar na crítica, o Bocas Malditas vai sedimentando seus discursos utilizando-se de técnicas caras tanto aos artistas contemporâneos entusiastas de correntes filosóficas recentes, quanto aos publicitários mais arrojados do mercado. Não é difícil encontrar semelhanças entre os textos citados, as propagandas da Rede Globo (Agro é tech. Agro é pop. Agro é tudo), Skol  (Skolors), os catálogos de exposição, as hashtags do instagram (#sobre  ontem), e até mesmo o que fizeram vinte anos atrás no clipe “We are the world” transpondo a sintaxe do texto para a linguagem audiovisual.

Há um tipo de escrita que se pretende inclusiva e abrangente, mas se esquiva das questões mais complexas quando recorre justamente a estruturas pré-moldadas. Não são as justaposições de preposições, nem as metralhadoras de travessões, muito menos o artigo X, que fazem um texto justo, honesto, responsável e relevante. A automatização desses recursos funciona para simplificar a complexidade do outro e para domesticar olhares. Reduz-se o caos a um abraço coletivo.

No entanto, engana-se quem acha que o estilo tradicional seria uma opção viável. É importante pontuar que a escrita antiga, em toda sua violência excludente, está repleta de formas pré-estabelecidas que durante muito tempo domesticaram gerações de letrados e iletrados. Esses grilhões sofreram duros golpes das vanguardas, da linguística, da psicanálise, da filosofia, do feminismo e dos estudos culturais no último século. Mas a iconoclastia conceitual das revisões formais operadas por esses grupos pode virar enfeite de sala comprado na Tok&Stok. Eis o anúncio de Perigo! (que também pode ser comprado na Tok&Stok).

Se, por um lado, a escrita envolve alegria e satisfação, por outro é quase impossível concebê-la sem uma boa dose de desespero. No desespero não há formas prontas, não há caminho fácil a ser seguido. As instâncias da criação estão repletas de desassossego e tensão; a crítica – criação a partir de outra criação – não deve se esquecer disso:

dentro das traves de medida o ângulo da folha em branco abriga uma barra vertical que existe e desaparece. o ritmo do nada. a angústia assoma ante o vazio e a esperança do preenchimento. as ambições de novo nada. o resto antes e depois disso é som e fúria.

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