Tradução | Literatura


 

Sou alguém

que nasceu numa cidade cheia de pórticos em 1922.

Tenho, portanto, quarenta e quatro anos, e estou bem conservado

(ainda ontem dois ou três soldados, num bosquinho de putas,

me deram vinte e quatro anos – pobres meninos

que tomaram uma criança por um seu coetâneo);

meu pai morreu em ’59,

minha mãe está viva.

Ainda choro, toda vez que penso,

por meu irmão Guido,

um partigiano morto por outros partigianos, comunistas

(era do Partido de Ação, mas por meu conselho;

ele tinha começado a Resistência como comunista);

nos montes, malditos, de uma fronteira

desmatada com pequenas colinas cinzas e desolados pré-Alpes.

Quanto à poesia, comecei com sete anos:

mas eu não era precoce senão na vontade.

Fui um “poeta de sete anos”

como Rimbaud – mas só na vida.

Agora, num povoado entre o mar e a montanha,

onde estouram grandes temporais, no inverno chove muito,

em Fevereiro se veem as montanhas claras como o vidro,

logo além dos ramos nus, e depois nascem as prímulas nos fossos

inodoras, e no verão as glebas, pequenas, de milho

alternadas com aquelas verde-escuro da alfafa

se desenham contra o céu esfumado

como uma paisagem misteriosamente oriental –

agora, naquele povoado,

existe um baú cheio de manuscritos de um dos tantos meninos poetas.

A coisa mais importante da minha vida foi minha mãe

(a ela se juntou, só agora, Ninetto).

Em ’42, numa cidade onde o meu país é tão si mesmo

a ponto de parecer um país de sonho, com a grande poesia da impoeticidade,

fervilhante de gente camponesa e pequenas indústrias,

muito bem-estar,

bom vinho, boa comida,

gente educada e grosseira, um pouco vulgar mas sensível,

naquela cidade publiquei o primeiro livrinho de versos,

com o título, na época, conformista de “Poesias em Casarsa”,

dedicado, por conformismo, a meu pai,

que o recebeu no Quênia.

Estava lá prisioneiro, vítima ignara e sem crítica

da guerra fascista.

Recebê-lo lhe deu um imenso prazer, eu sei:

éramos grandes inimigos,

mas a nossa inimizade fazia parte do destino, estava fora de nós.

E signo daquele nosso ódio, sinal inelutável,

signo para uma pesquisa filológica que não erra

que não pode errar

aquele livro dedicado a ele

estava escrito em dialeto friulano!

O dialeto de minha mãe!

O dialeto de um mundo

pequeno, que ele não podia não desprezar,

– ou de qualquer modo aceitar paternalisticamente.

E isto por uma precedente contradição:

uma daquelas, ainda, que não podem trair os cientistas!

Lá onde se falava aquele dialeto, ele, de fato, tinha se apaixonado.

Apaixonado por minha mãe.

Assim, através dela, o mundo pequeno, inferior,

camponês, quase negro, que ele desprezava

o tinha tornado escravo:

mas também desta vez, ele não sabia disso.

Não sabia que o seu patrão era aquele amor

que através de uma mulher criança (minha mãe!)

bonita, de pescoço bonito, de alma muito inocente,

de anjo inapto a viver fora dos povoados, justamente, dos campos,

tinha tornado vãs todas as suas certezas morais

de mísero homem feito para ser, ele, o patrão.

Assim, agora, aquele dialeto

era uma coisa diabólica.

Era o centro de mil outras contradições.

Delas a mais pungente consistia no fato de que não podia ser admitido

<porque> era consagrada pela impressão

e pelas cândidas páginas de um livro de poesia

do qual o filho de vinte anos era o Autor.

Então, não se podia nem mesmo começar o exame,

dado que não eram admissíveis,

daquelas contradições: que foram como nuvens negras

com trovões assustadores, índice de total derrota e de morte,

ao fundo do horizonte luminoso do orgulho de um pai prisioneiro.

Bem, ao final da guerra

voltou para a Itália, com aquele livrinho de versos friulanos

na mala.

Relíquia sagrada, lembrança de família, atestado de grandeza

ainda que futura.

Devo acrescentar que meu pai aprovava o fascismo.

E aqui a segunda contradição, a contradição pública:

o fascismo não tolerava os dialetos, signos

da unidade irrealizada deste país em que nasci,

inadmissíveis e despudoradas realidades no coração dos nacionalistas.

Por isso aquele meu livro não foi resenhado pelas revistas oficiais.

E Gianfranco Contini teve de inviar a sua resenha

(a maior alegria literária da minha vida)

a um jornal de Lugano.

Com o fim do fascismo, começou o fim de meu pai.

Isto do fascismo é um álibi, com o qual justifico também o meu ódio,

injusto, por aquele pobre homem: e devo dizer, todavia, que é um ódio

horrendamente misturado com compaixão.

Agora que tenho imerecidamente quarenta e quatro anos,

por volta da idade que ele tinha no tempo das minhas primeiras poesias,

o vejo fora da minha história,

num evento que me é totalmente alheio,

em que eu sou um culpado herói objetivo.

Porque devo recordar

que, com o meu amor inicial por minha mãe,

houve um amor também por ele: e dos sentidos.

Devo lembrar os meus passinhos de criancinha de três anos,

numa cidade perdida miseramente entre montes,

de ar já um pouco austríaco,

quase na nascente de um rio com nome de museu e de guerra

e de miséria,

um rio celeste entre grandes cascalhos aos pés das montanhas –

os meus passinhos ao longo da borda de uma rua

atingida por um sol que não era da minha vida,

mas da de meus pais,

rumo à borda onde meu pai, homem jovem,

estava urinando…

Devo acrescentar, ainda, para acabar esta história –

assimétrica no conjunto do meu poema –

que aqueles meus versos friulanos são os meus mais belos

(junto com os escritos até vinte e três, vinte e quatro anos,

publicados mais tarde com o título “A melhor juventude”,

e junto também com os coevos versos italianos,

nascidos daquela profunda elegia friulana

de autolesionista, exibicionista e masturbador,

entre as amoreiras e os vinhedos vistos com o olho mais puro do mundo;

aqueles versos se chamam “O Rouxinol da Igreja Católica”,

e o seu “falsete” é ainda uma música atroz

e sutil que, de lá debaixo, me fascina e me puxa pra trás.

Não posso lhes dizer outras coisas

de minha estadia

naquele povoado de temporais e prímulas,

um pouco de Oriente na fronteira pequeno-burguesa com a Áustria:

hão de se encarregar talvez alguns jornalistas italianos fascistas

ou simplesmente anticomunistas.

Fugi com minha mãe e uma mala e um pouco de joias que se revelaram falsas,

num trem lento como um trem de carga,

pela planície friulana coberta por uma leve e dura camada de neve.

Íamos para Roma.

Tínhamos, então, abandonado meu pai

ao lado de uma estufinha de pobres,

com seu velho capote militar

e suas horríveis fúrias de doente de cirrose e síndromes paranoides.

Eu vivi

aquela página de romance, a única da minha vida:

no mais, o que vocês querem,

vivi dentro de uma lírica, como todo possuído.

Eu tinha entre os meus manuscritos também o meu primeiro romance:

aqueles eram os tempos de “Ladrões de bicicletas”

e os literatos estavam descobrindo a Itália.

(Agora eu não sou mais um literato,

evito os outros, não tenho nada a que ver

com seus prêmios e revistas.)

Chegamos a Roma,

ajudados por um doce tio,

que me deu um pouco de seu sangue:

eu vivia como pode viver um condenado à morte

sempre com aquele pensamento como um peso nas costas,

– desonra, desemprego, miséria.

Minha mãe se reduziu por um tempo a empregada.

E eu nunca mais ficarei curado deste mal.

Porque eu sou um pequeno-burguês, e não sei sorrir…

como Mozart…

Num filme – que chamei “Passarinhos e gaviões” –

tentei, sim, é verdade, a ópera-bufa, suprema ambição de um escritor

– mas consegui só em parte,

porque sou um pequeno-burguês

e tendo a dramatizar tudo.

 

Como me tornei marxista?

Pois bem… eu caminhava entre florzinhas cândidas e azuizinhas de primavera,

as que nascem logo depois das prímulas,

– e pouco antes que as acácias se cubram de flores,

cheirosas como carne humana, que se decompõe ao calor sublime

da mais bela estação –

e escrevia nas margens de pequenos charcos

que lá embaixo, no vilarejo de minha mãe, com um daqueles nomes

intraduzíveis se chamam fonde,

com os meninos filhos dos camponeses

que tomavam seu banho inocente

(porque eram impassíveis diante da sua vida

enquanto eu os julgava conscientes daquilo que eram),

escrevia as poesias do “Rouxinol da Igreja Católica”:

isto acontecia em ’43:

em ’45 foi tudo diferente.

Aqueles filhos de camponeses, tendo crescido um pouco mais,

um dia colocaram um lenço vermelho no pescoço

e marcharam

rumo ao centro jurisdicional, com as suas portas

e os seus palacetes venezianos.

Foi assim que eu soube que eram boias-frias,

e que então havia patrões.

Fiquei do lado dos boias-frias, e li Marx.

[…]

Grande é o teu espiritualismo, América!

Mas será ainda maior quanto for desmascarada sua inocência!

Eu amo Ginsberg:

fazia tempo que eu não lia poesias de um poeta irmão –

acho que desde os tempos, naquele povoado de temporais e de prímulas,

em que li os cantos gregos de Tommaseo, e Machado.

Nenhum artista em nenhum país é livre.

Ele é uma contestação vivente.

Pound vai para prisão como Siniávski e Daniel,

e o Sr. Lennon escandalizou todos, acho que também os russos.

[…]

Quanto a mim,

um inocente não é nunca acreditado,

e ele de resto está muito ocupado a pensar

num rio celeste entre grandes cascalhos aos pés das montanhas,

que escorre no sol dos seus pais,

em outras vidas,

em vidas interpretadas de outro modo,

num significado diferente da vida,

que não é nem mesmo aquele dos sonhos,

se a nossa vida não é senão uma sombra

sobre a nossa verdadeira vida que não conhecemos.

Em Roma, de ’50 a hoje, agosto de 1966,

não fiz nada a não ser sofrer e trabalhar avidamente.

Ensinei, depois daquele ano de desemprego e fim da vida,

numa escolinha privada, por vinte e sete mil liras ao mês:

enquanto isso meu pai

tinha se juntado a nós

e não falamos nunca da nossa fuga, minha e de minha mãe.

Foi um fato normal, uma mudança em dois tempos.

Moramos numa casa sem teto e sem reboco,

uma casa de pobres, na extrema periferia, perto de um cárcere.

Havia um palmo de poeira no verão, e o pântano no inverno.

Mas era a Itália, a Itália descoberta,

com seus meninos, suas mulheres,

seus “cheiros de jasmins e sopas pobres”,

os fins de tarde sobre os campos do Aniene, os montes de lixos:

e, quanto a mim,

os meus sonhos íntegros de poesia.

Tudo podia, na poesia, ter uma solução.

Me parecia que a Itália, sua descrição e seu destino,

dependesse do que eu escrevia sobre isso,

naqueles versos impregnados de realidade imediata,

não mais nostálgica, como se eu a tivesse ganhado com meu suor.

<Claro, quanto conta, também no sentido mais miserável,

uma condição econômica:>

não tinha peso o fato de que eu fosse rico em cultura e amor,

tinha muito mais peso o fato de que eu, certos dias,

não gastasse nem cem liras para ir ao barbeiro:

meu perfil econômico, embora instável e louco,

era naquele momento, por muitos aspectos,

parecido com o da gente em meio a quem eu morava:

nisto éramos realmente irmãos, ou pelo menos pares.

Por isso, acho, pude entendê-los muito.

E para entender os meus romances intraduzíveis,

leiam o prefácio de Oscar Lewis ao seu romance gravado:

se trata daquilo.

[…]

Também a burguesia italiana pode ser, então, racista.

Não teve ainda ocasião, até agora,

a primeira ocasião mínima,

os meus romances

a provocaram.

Experimentei aquilo que pode experimentar um negro em Chicago,

o terror.

Mas eu esqueço logo,

e todos os terrores

se tornaram apenas uma coisa

sobre e em cima de mim, uma coisa especial, aquela coisa,

e assim a pus de lado e sofri nas vísceras:

se abriu em mim uma úlcera,

de que certamente cedo ou tarde morrerei.

Golpe baixo para o sonho ininterrupto da minha juventude!

A burguesia italiana ao meu redor é um bando de assassinos.

Claro que não espero melhor acolhida por parte da burguesia americana.

No mundo do capital a vida é uma aposta

a vencer ou a perder:

é a condição humana do laicismo burguês.

Quem se descobre, ou se confessa, ou não teme o ridículo,

acaba mal: é a lei.

Caros americanos, não pacifistas e não espiritualistas,

ou seja, enorme maioria conformista,

vosso Deus é um idiota

como todo cidadão médio

que deseja com todas as suas forças e com todo o seu espírito

ser como todos os outros:

e é por este amor louco pela igualdade que a odeia.

Quem de vocês chorou

pelo menino grego condenado à morte

por objeção de consciência?

Façam um breve exame de consciência:

quem não derramou essas lágrimas é um porco.

Mas eu não estou fazendo senão um poema

bio-bibliográfico, voltemos ao assunto:

“Meninos da vida” e “Uma vida violenta”

são os títulos daqueles meus dois romances

que espreitaram o ódio racista italiano.

Escritos no coração dos anos cinquenta.

Enquanto os títulos dos meus livros de versos,

escritos em gestão contemporânea, são:

“As cinzas de Gramsci”,

“A religião do meu tempo”,

“Poesia em forma de rosa”.

É neste último que algo foi rompido:

talvez era a presença, ainda não conhecida por mim diretamente,

da nova esquerda americana, <e o labor distante de Ginsberg.

Ali eu abjurei falsamente o engajamento,

mas porque sei que o engajamento é inderrogável,

e hoje mais que nunca.>

E hoje digo a vocês que é preciso não apenas se engajar na escrita,

mas também na vida:

é preciso resistir no escândalo

e na raiva, mais que nunca,

ingênuos como cabritinhos no abate,

sórdidos como vítimas justamente:

é preciso falar mais alto que nunca o desprezo

em relação à burguesia, gritar contra a sua vulgaridade,

cuspir na sua irrealidade que ela elegeu como realidade,

não ceder num ato e numa palavra

no ódio total contra elas, as suas polícias,

as suas magistraturas, as suas televisões, os seus jornais:

e aqui,

eu, pequeno-burguês que dramatiza tudo,

tão bem educado por uma mãe de doce e tímida alma

da moral componesa,

gostaria de tecer um elogio

da sujeira, da miséria, da droga e do suicídio:

eu privilegiado poeta marxista

que tem instrumentos e armas ideológicas para combater,

e bastante moralismo para condenar o puro ato de escândalo,

eu, profundamente honesto,

faço este elogio, porque, a droga, o nojo, a raiva,

o suicídio

são, com a religião, a única esperança que ficou:

contestação pura e ação

sobre a qual se mede o enorme erro do mundo.

Não é necessário que uma vítima saiba e fale.

Nos anos ’60, depois, rodei o meu primeiro filme, que,

como eu disse, tem o título de “Desajuste social”.

Por que passei da literatura ao cinema?

Esta é, nas perguntas previsíveis numa entrevista,

uma pergunta inevitável, e de fato foi.

Então eu respondia que era pra mudar de técnica,

que precisava de uma nova técnica pra falar uma coisa nova,

ou, o contrário, que eu falava a mesma coisa, sempre, e por isso

tinha que mudar de técnica: segundo as variantes da obsessão.

Mas só em parte eu era sincero ao dar essa resposta:

a verdade estava naquilo que eu havia feito até então.

Depois percebi

que não se tratava de uma técnica literária, como que

fazendo parte da mesma língua com que se escreve:

mas, ela mesma, era uma língua…

E então falei as razões obscuras

que presidiram a minha escolha:

quantas vezes raivosa e impulsivamente

eu falei que queria renunciar a minha cidadania italiana!

Pois bem, abandonando a língua italiana, e com ela,

um pouco por vez, a literatura,

eu renunciava a minha nacionalidade.

Falava não às minhas origens pequeno-burguesas,

virava as costas a tudo aquilo que faz do italiano italiano,

protestava, ingenuamente, encenando uma abjuração

que, no momento de me humilhar e me castrar,

me exaltava. Mas não era totalmente

sincero, ainda.

Pois que o cinema não é apenas uma experiência linguística,

mas, justamente em quanto pesquisa linguística, é uma experiência filosófica.

Um dia eu andava, como um peixe fora da rede,

no ar seco

nas redondezas de um promontório vazio de almas, doente

no azul,

e agora vou dizer pra vocês o que me aconteceu e como se passaram as coisas [realmente.

Estava andando, naquele dia, por uma estrada seca,

com as mãos igualmente secas e assim o cérebro – vou dizer

que só o ventre estava vivo, como aquele promontório no inútil azul.

Todos os mitos haviam ruído e decomposto, mas pelo menos no promontório

alguém vivia.

Enfim, impelido pelo ventre vivente e pela minha miopia,

me pilotei no sol seco,

sobre um pouco de asfalto,

entre sujos arbustos de outono ainda estivais,

de encontro a um rancho sozinho ao sol,

com desenhos vivazes de velhas paredes e velhas estacas e velhas

redes e velhas paliçadas, azul e branco,

– estamos na Itália – onde o sol misturado à chuva fedia docemente.

Lá dentro havia um menino sinistro, com avental (acho que me lembro), os cabelos

densos de mulher,

a pele pálida e esticada, uma certa louca inocência nos olhos,

de santo obstinado, de filho que se quer igual à boa mãe.

<Na prática – logo notei – um pobre possuído:

a quem a ignorância dava certezas tradicionais,

transformando a sua cadavérica neurose em rigor

de obediente filho identificado com os pais.>

Como você se chama, que tá fazendo, vai dançar, tem namorada,

ganha bastante,

foram os assuntos com que retrocedi do primeiro ímpeto

da velha libido do começo da tarde como um peixe enfadado,

tomando coca cola.

Vocês viram o meu Evangelho.

Viram os rostos do meu Evangelho.

Eu não podia errar, porque às vezes, quando se filma, as decisões devem ser [tomadas em poucos minutos:

eu não errei nunca, nos rostos,

nos rostos <…>

porque a minha libido e a minha timidez

me obrigaram a conhecer bem os meus semelhantes.

Logo também o reconheci em poucos minutos,

o miserável endemoniado do rancho assediado pelo sol.

O inverno chegava,

para opor o sol sobrevivente <…> às aventuras,

e o inverno chegava

e estava ali em seu rosto,

com as suas trevas e as suas casas silenciosas, a sua <…> castidade.

Me retirei.

Mas não a tempo para que ele não sentisse, como uma mulher,

o terror pelo pai não parecido com os pais

que haviam constituído, para a sua obediência, o mundo.

Pois bem, primeiro não sei que pequena autoridade

daquele promontório abandonado pelos homens e assaltado

pelos burgueses <que desciam> de Roma, idiotas e consagrados à norma,

acreditou nele.

Acreditou nele depois não sei que coronel,

de rosto pisado por um destino pobremente mundano.

Acreditou nele um juiz instrutor

que tinha nos olhos a mesma expressão

de branco bode dos palacetes novecento daquele burgo absurdo,

onde trabalhava.

Acreditou nele enfim o presidente do tribunal

que me condenou,

ainda que a vinte ou trinta dias, formais.

O menino da palidez de santo tinha contado

que havia entrado na sua loja, naquele dia de sol,

um bandido, com um chapéu preto,

o qual havia vestido um par de luvas pretas,

tinha carregado uma pistola com uma bala de ouro,

lhe tinha intimado a se render

e tinha tirado do seu caixa cerca de três dólares.

Indo embora, depois, o tinha ameaçado,

pois ele, o agredido, tinha agarrado, para se defender, uma faca.

 

Contei essas coisas pra vocês

num estilo não poético

pra que você não me lesse como se lê um poeta.

Existia também na Itália um certo Salvatore Pagliuca,

senador de não sei que partido,

existia lá embaixo, no sul de Levi, em vilarejos

secos ao sol das enchentes,

onde crescem esplêndidas oliveiras

e esplêndidas giestas.

Em jejum de oliveiras e de giestas,

como eu estava em jejum da sua existência,

esse senhor Salvatore Pagliuca

viu a minha história sobre “Desajuste social”, e sentiu

que um mouro de dentes cintilantes, como um lobo feroz

de coice precioso,

se chamava Salvatore Pagliuco.

Se considerou ofendido, prestou queixa contra mim, venceu o processo

e obteve muitos milhões de danos.

Te contei isso

num estilo não poético

pra que você não me lesse como se lê um poeta.

Um dia no começo dos anos sessenta

(o período em que tudo isto aconteceu)

entreguei a um pequeno rei do cinema de nome Amato e a seu compadre Amoroso

um script que traz o título agreste de:

“Ricota”.

Talvez vocês viram este meu filme

no festival de Nova Iorque de alguns anos atrás.

Naquele roteiro,

escrito como escreve um escritor,

havia algumas palavras não leves,

e pouca indulgência com a religião da burguesia católica

do meu país.

Por uma das tantas razões que você, crítico de cinema, conhece bem,

o filme foi por água abaixo, Amato morreu,

e Amoroso

intentou um processo contra mim

acusando o meu texto

escabroso para o público médio

de tê-lo impedido de fazer o seu filme.

Seria como se o Sr. Crawther

entregasse a Levin, a pedido do próprio Levin,

um manuscrito muito rosa, bom só para meninas de internato,

e o Sr. Levin, não o achando bom,

por razões pessoais,

entrasse com um processo porque a excessiva cor rosa

do texto de Crawther, do doce Crawther,

lhe havia impedido de realizar o filme que ele queria.

Perdi também este processo e não sei quantas dezenas de milhões

terei de desembolsar para aquela pérola do senhor Loving

arruinado por aquela minha primeira versão

de um texto inadequado aos italianos médios.

Também isso te contei

num estilo não poético

pra que você não me lesse como se lê um poeta.

Assim decaiu a estima pela poesia, típica

das infâncias que acreditam no eterno; ilusão

que não exclui os nacionalismos, inconscientemente, acreditando

(com paixão infantil) no absoluto

da língua de uma nação; no seu uso de canto ou música

(que é absolutamente absurda

logo além das fronteiras); ilusão

que não sepulta nem a lógica e o classicismo

(um mísero filólogo pode reconstruir entre uma palavra e outra

– isolada e cravada no silêncio – o discurso cortado,

um pobre discurso

sem ideias, sem religião senão o culto

muito pouco religioso, enfim, da poesia com literatura).

Mas não só decaiu

a estima por essa poesia

que é da pequena história do meu tempo

(em que me encontro embutido,

sem poder sacar daí um só rosto, mesmo o mais estranho,

um só livro, mesmo o mais esquecido);

mas pela própria poesia. Não é ela, então, que conta, nunca.

Pelo menos se concebida como poesia.

A língua da ação, da vida que se representa

é infinitamente mais fascinante!

É ela que se reconstitui – assim que se fecha –

a partir de um livro de versos: ela é antes e depois:

no meio há um veículo expressivo

que a evoca, eis tudo. Obra de bruxos.

Só o amor por aquela língua do não-eu que se exprime

com igual direito, igual força do eu,

dá ao poeta

a habilidade.

Mas a profissão de poeta enquanto poeta

é cada vez mais insignificante. É realmente necessário

introduzir aquela língua vivente em uma língua de convenção,

para que então se liberte, voltando ao que ela é, vivente, junto ao leitor?

Ele não sabe dialogar com a realidade?

O humilde valor do poeta

é reevocá-la tal como ele a vê? Mas isto é sério?

Por que não a contempla em silêncio,

santo, e não literato?

Entretanto os jovens, o que fazem,

nas noites das suas cidades de província,

ou ainda nas grandes metrópoles,

senão falar de literatura?

Com seus passos facciosos, ao longo das ruas recém-descobertas

carregadas de sentidos secretos e de história?

Descobrindo os literatos, como as putas ou os mistérios

de um bairro, ou os hábitos de uma vida social

que agora é a deles, enquanto ainda é dos pais

(que por isso preparam uma guerra para mandá-los à morte)?

 

Interrogando-me

à luz do sol de agosto em Manhattan deserta (como eu dizia),

venho a saber que

eu (que apenas através da literatura pude ser poeta)

não sou mais um literato.

Tenho a sorte

de recordar baixas colinas, sobre um rio também

com águas azuis muito transparentes sobre pequenas pedras,

entre cascalhos como ossários primeiro entre os magredi,

tristemente verdes, depois entre os vinhedos

(loucos, no verão, de úmido, matizado silêncio quase oriental)

das colinas,

e por fim entre os saneamentos cujo odor

basta a desencadear, para dois olhos selvagens

e um ventre selvagemente puro, o esgotamento que atazana

e dá vontade de morrer.

Sobre aquelas míseras colinas – verdadeiros cimitérios, sem flores –

lutou-se contra os fascistas e os alemães, e meu irmão,

como lhes disse, deixou aí os seus dezenove anos,

como um falcão que mal sabia voar, e voava tão bem.

Aquilo que vocês, com uma ruga de sorriso irônico mas antipático

(que deforma seus rostos falsamente seguros, de doentes)

chamam, enfatizando-o ostensivamente, o “engajamento”,

viveu, por uns quinze anos,

como parasita sobre a glória e a dor daqueles cimitérios.

Isto é, não houve.

É agora que ele começa a existir.

Agora que aqueles cemitérios sem flores

têm, eles também, o seu florecimento.

<Por uma ânsia de impopularidade, talvez,

também o meu amigo Moravia tem medo,

quando não quer compreender isso. E com ele,

e muito pior que ele (que arcanamente fica tenso

num imperturbável desejo de entender) todos os outros

que na Itália

têm o nome e a função de “literatos”.>

Todos renegam aquele engajamento com a tácita,

neurótica vontade de adular vocês: uns o fazem com contrição,

outros estufando o peito como uma puta.

Eu não quero voltar àquelas colinas,

nem como turista, nem como visitante de tumbas, que fique claro.

Eu também, eu também os esqueci.

E com razão! Na ação deles e na ideologia

que a ditava, como um sublime catecismo,

tive a minha rebelião de jovem.

Talvez eu tenha pegado daí

também hábitos indeléveis

de moralismo e dignidade.

Mas não volto para aqueles lugares que existem mas <não se veem>.

A esse ponto, <halt!> Não quero me comover com as minhas razões,

quer dizer, com o fato

que o “engajamento” não só

não acabou, mas, ao contrário, começa.

Nunca a Itália foi tão odiosa.

Sobretudo com a traição dos intelectuais,

com esse revisionismo do Partido Comunista, lobo

que dessa vez é realmente cordeiro, – o <companheiro>

Longo, na Spiegel, tinha uma cara aduladora de literato

que se finge desesperadamente em dia com os acontecimentos,

sepultando assim toda violência palingenética do comunismo:

sim, também o comunista é um burguês.

Esta é agora a forma racial da humanidade.

Talvez, engajar-se contra tudo isto,

não quer dizer escrever como engajados,

eu diria, mas viver.

Quanto às minhas obras futuras,…

você vai ver um jovem chegar um dia

numa bela casa

onde um pai, uma mãe, um filho e uma filha

vivem como ricos, num estado que não critica a si mesmo,

como se fosse um todo, a vida pura e simples;

tem também uma empregada (de vilarejos subproletários); vem,

o jovem,

bonito como um americano,

e logo, por primeiro, a empregada se apaixona por ele

e levanta a saia. Ele lhe dá a doce,

pesada raiva de seu membro. Depois, se apaixona

por ele, o filho; dormem os dois, no mesmo quarto

do menino, com os restos da infância; e também ao filho

ele dá o seu membro de seda, mais adulto e potente;

e o mesmo presente, condescendente e generoso,

porque é ele o que dá, ele dará à mãe,

adoradora das suas roupas, as calças, a camiseta,

as sungas, deixadas num chalé

num dia quente de verão, no Tirreno;

e ainda o mesmo presente ele dará ao pai, tornando-se

pai do pai – uma vez que ele com ambígua doçura materna

é, por nome, pai –

ao pai que acordou de madrugada

por causa de uma dor que o dilacera,

na barriga, e descobre, ao se levantar pra ir ao banheiro,

a beleza muda das quatro da manhã

com o sol já radiante… e descobrirá o seu amor

com a mesma admiração,

com que descobriu aquele sol:

um amor como o de Ivan Ilitch por seu empregado

camponês e menino; mas consciente, e dramático,

porque ele, o velho industrial com o rosto

de Orson Welles, é um pequeno-burguês, e dramatiza tudo.

O mesmo presente do membro, durante as horas

da doença do pai – e antes que ao pai –

ele dará à filha de quatorze anos, apaixonada

por seu pai, e que o descobre, o jovem todo amor,

através dos olhos apaixonados, justamente, do pai. Depois

o jovem vai embora:

o caminho em cujo fundo desaparece

fica deserto para sempre.

E cada um, na espera, na lembrança,

como apóstolo de um Cristo não crucificado mas perdido,

tem o seu destino.

É um teorema:

e cada destino é uma consequência.

Os destinos são aqueles que você conhece,

aqueles do mundo onde você com teu antipático

sorriso anticomunista, e eu com o meu infantil ódio

antiburguês, somos irmãos:

nós o conhecemos todo!

Como se forme uma neurose de angústia

e como uma pequena vítima feminina de quatorze anos

acabe num leito de uma clínica,

com os punhos tão cerrados que nem mesmo um formão

poderia descolá-los,

como um menino fale sozinho como um louco

pintando e inventando novas técnicas

até se tornar

um Giacometti, um Bacon,

com o espetáculo dos seus espectros figurativos,

símbolos da tragédia do mundo numa alma doente,

malcheiroso do rancor mesquinho do mal; como

uma mulher de meia idade, bonita ainda, e cuidada,

não saiba esquecer o Cristo da Igreja

e ao mesmo tempo, uma vez perdida,

não saiba resistir ao desejo de se perder ainda,

e assim viva entre meninos dados e angústias cristãs;

e como, enfim, um pai,

que havia confundido a vida com a posse,

uma vez possuído,

perca a vida e a jogue fora: ou seja, doe sua posse

– uma fábrica na periferia da cidade grande –

aos seus operários; e se perca no deserto,

como os hebreus.

Todos esses, casos de consciência.

Mas a empregada se torna, ao contrário, uma santa louca,

vai no quintal da sua velha casa subproletária,

cala-se, reza e faz milagres,

cura gente,

come só urtigas, até que seus cabelos se tornem verdes,

e, por fim, pra morrer,

se faz sepultar chorando por uma escavadeira,

e as suas lágrimas jorrando da lama

se tornam uma fonte milagrosa.

Antes do Pai e da Mãe,

no paraíso terrestre, havia um Primeiro Pai,

é na sua intimidade que, primeiramente, vivemos.

Mas depois, o importante foi o amor da mãe

com o qual nos identificamos

porque não podemos viver

senão nos identificando com alguém. Não podemos, então,

conceber amor que não tenha a doçura materna.

Aquele primeiro Pai tem, assim, doçura de Mãe.

Mas numa família burguesa,

a única coisa que lhe resta

é desencadear dramas morais.

A religião, a religião da relação direta com Deus

está ainda no mundo anterior ao mundo burguês.

Os operários estão observando.

Não te direi, amigo, aquilo que, em estásimos e episódios,

e coros no lugar de fusões,

escreverei sobre o silêncio de Pílades,

que se tornará revolta,

e traição,

contra o amigo de adolescência de membro ereto,

Orestes, o príncipe socialista,

e a degeneração de algumas das Fúrias purificadas

e segregadas sobre os montes festivos no céu e no céu perdidos:

o retorno destas fúrias que regrediram ao estado primitivo

na cidade libertada, com elas, da monarquia;

o regresso de Electra,

ela, filha que amou o pai Rei, e agora é fascista como

se é fascista na fosca nostalgia de origens erradas;

a fuga de Pílades nos montes das Fúrias tornadas Eumênides,

as deusas dos partigianos

e do amor repentino que liga um partigiano a um outro partigiano;

a preparação da luta,

e o retorno à frente de um exército irregular

– o misterioso exército dos montes;

a aliança entre Electra fascista e Orestes liberal

e fautor de reformas,

na cidade tornada opulenta;

a intervenção de Atenas

que protege Electra e Orestes filhos da razão

e os une, pondo a calar o ulular

das Fúrias antigas que vagam pela nova cidade;

a incerteza de Pílades

diante da cidade enriquecida

que não precisa mais dele;

o seu encontro

na noite da vigília que precede a batalha

com o velho amigo da adolescência,

ainda jovem,

bonito como nos tempos dos seus primeiros amores

quando as mulheres eram desconhecidas;

e a entrega deles a discursos sobre o amor e sobre a alma

que não têm nada a que ver com a realidade presente,

e que lhes une;

e, por fim, a solidão de Pílades,

no fim da noite,

que, antes da aurora, deverá mesmo assim tomar uma decisão.

E depois, você crê

que se possa ter um sonho, não lembrar dele,

e ter, por este sonho, a vida mudada?

Você crê que um pai pode ter um sonho, em que

se veja amando seu filho,

não sei sob que aparência,

se do pai mesmo menino, ou de um estranho

que é o pai do pai (menino)

ou a identificação por si da própria mãe… Ninguém,

nem mesmo eu, conhecerá jamais aquele sonho.

Mas o pai terá mudado toda sua vida.

Lembra de Héracles

que pede ao filho pra chamar todos os seus companheiros

mais fortes, e pra levá-lo sobre os ombros,

sobre o cimo do monte perto da cidade,

o monte da cidade

aquele que é meta de peregrinos e de aventuras de meninos

como acontece nos mundos pré-industriais?

E uma vez chegados lá em cima, o filho e os outros meninos,

deveriam ter-lhe preparado a pira,

e dá-lo à morte?

Entre naquele sonho, se você é pai.

Você, pai, que talvez inocentemente, é cúmplice

dos pais

que querem se libertar dos filhos

mandando-os a morrer em guerras que se combatem

nos lugares do Alibi, o extremo Oriente da história.

Aqui, por uma vez,

o pai não quer a morte do filho, mas o seu amor.

Ele se torna o filho, e, no filho, menino, talvez veja o pai,

e o ama, não quer matá-lo, mas ser morto por ele,

não possuí-lo, mas ser possuído por ele.

Sim, mas aquele pai é um homem burguês do nosso mundo,

tem uma indústria aos pés dos montes da Brianza (festosos no céu

e no céu perdidos):

como poderá aceitar as consequências daquele sonho, de resto, não lembrado?

 

Ele as aceitará desfigurando-as. Sabendo e não sabendo.

Será surpreendido pelo filho nu sobre a mãe.

Procurará pretextos para atingir o filho,

e, portanto, ser atingido.

Agredirá o filho

para seduzi-lo a ele,

para ser o centro da sua vida.

Até que o filho, o leve filho mozartiano,

pacifista e objetor de consciência, irá embora

da casa rica,

tendo escutado do pai delirante uma declaração de amor.

O menino – te digo – não o odiará

(um daqueles meninos novos, tão melhores que nós),

e, se pudesse ter feito,

teria dado ao pai mendicante todo seu ouro,

o teria possuído como o menino do povo

possui, por poucos dólares, quem não tem força de ser homem

e o invoca por isso como um salvador…

Vai embora, pelos caminhos do mundo,

com uma menina,

nada mais que uma puta, e um amigo:

nem se saberá nunca a quem vai seu amor,

embora ele, certamente, afunde seu ouro

no regaço da menina.

Vem o pai, espia, o encontra, corrompe a menina,

fica olhando por trás da porta o amor deles,

descobre o que o filho

tem sem mistério, como todo mundo tem,

no entanto nele é horrendamente, insuportavelmente misterioso.

O pai não pode viver depois de ter visto aquele amor,

entra e fere de morte o filho,

que sai chorando e saudando a vida

do quarto de um dos mil coitos da sua vida.

Morre. E sobre ele, morto, o pai se inclina para abotoar

as calças abertas sobre o esplendor imaculado da regata.

O pai, depois de tantos anos, como nos folhetins,

conclui o longo sonho da sua vida

sonhando na plataforma de uma estação

como num verso de Ginsberg.

Taí.

Taí, essas são as obras que eu gostaria de fazer,

que são a minha vida futura – mas também passada

– e presente.

Você sabe, eu te disse, velho amigo, pai

um pouco intimidado pelo filho, hóspede

aloglota potente de humildes origens,

que nada vale a vida.

Por isso eu queria apenas viver

mesmo sendo poeta

porque a vida se exprime também só com ela mesma.

Queria me exprimir com exemplos.

Jogar meu corpo na luta.

Mas se as ações da vida são expressivas,

a expressão também é ação.

Não esta minha expressão de poeta renunciativo,

que diz só coisas,

e usa a língua como você, pobre, direto instrumento;

mas a expressão destacada das coisas,

os signos feitos música,

a poesia cantada e obscura,

que não exprime nada senão a si mesma,

segundo a bárbara e refinada ideia que ela seja misterioso som

nos pobres signos orais de uma língua.

Eu deixei aos meus coetâneos e também aos mais jovens

essa bárbara e refinada ilusão: e te digo brutalmente.

E, uma vez que não posso voltar atrás,

a me fingir um menino bárbaro,

que crê que sua língua é a única língua do mundo,

e nas suas sílabas sente mistérios de música

que apenas os seus compatriotas, parecidos com ele por caráter

e loucura literária, podem sentir

– enquanto poeta serei poeta de coisas.

As ações da vida serão apenas comunicadas,

e serão elas a poesia,

uma vez que, repito, não há outra poesia senão a ação real

(você treme só quando a encontra

nos versos, ou nas páginas em prosa,

quando a sua evocação é perfeita).

Não farei isso com alegria.

Sempre terei nostalgia daquela poesia

que é ela mesma ação, no seu destaque das coisas,

na sua música que não exprime nada

senão a própria ária e sublime paixão por si mesma.

Pois bem, vou te confessar, antes de te deixar,

que eu queria ser escritor de música,

viver com instrumentos

dentro da torre de Viterbo que não consigo comprar,

na paisagem mais bonita do mundo, onde Ariosto

ficaria louco de alegria por se ver recriado com tanta

inocência de carvalhos, colinas, águas e ravinas,

e ali compor música

a única ação expressiva,

talvez, alta, e indefinível como as ações da realidade.

 

 


 

Iniciado em 1966, durante sua primeira estadia em Nova York para a apresentação do filme Uccellacci uccellini (“Gaviões e passarinhos”, no Brasil), o poema “Poeta delle ceneri” nunca foi publicado por Pasolini, que fez inúmeras alterações no texto, tanto correções quanto rasuras. O manuscrito foi encontrado em suas gavetas com o título “Who is me” e publicado postumamente, em 1980, por Enzo Siciliano, amigo e biógrafo do poeta, na revista Nuovi Argomenti, dessa vez sob o título “Poeta delle ceneri”, com explícita referência a uma das mais primorosas poesias de Pasolini, “Le ceneri di Gramsci”.

Em dado momento do poema, Pasolini fala como se estivesse numa entrevista, o que marca o tom coloquial desta composição. O ano de 66 é também marcado por um ataque de úlcera em seu estômago, que levou o poeta, no hospital, a escrever cerca de 6 peças de teatro de uma só vez, algumas das quais são mencionadas aqui. Transparece no texto ainda uma espécie de balanço de sua produção, poética até então, agora sobretudo cinematográfica, refletindo, portanto, acerca de seu passado, presente e futuro, com o desejo de se isolar numa torre medieval nas cercanias da cidade de Viterbo, a 100 quilômetros ao norte de Roma.

Apesar de inacabado, o poema reúne vários estilos da escrita pasoliniana, desde uma autobiografia versificada, uma descrição minuciosa da natureza, até a reflexão sobre suas formas de expressão e, como não poderia deixar de ser, as veementes críticas contra alguns de seus detratores, tanto do meio artístico quando do político.

Traduzir Pasolini é um desafio, seja pelas inúmeras referências eruditas e detalhistas, seja por seu estilo particular que mistura prosa e poesia. Mesmo assim, quero oferecer ao público de língua portuguesa esse texto tão rico como forma de celebração pelo centenário de nascimento do poeta (1922-1975), bem como para estimular o espírito anti-fascista entre nós, o espírito de raiva de Pasolini diante das injustiças da vida, artística e política, o espírito de luta contra a hegemonia do capital.

A tradução aqui apresentada segue o texto da edição de Walter Siti, na edição Meridiani da editora Mondadori, 2009, pp. 1261-1288. Seguimos igualmente a pontuação e os sinais encontrados no texto desta edição.


Pedro Falleiros Heise é tradutor e professor.

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