Ensaio | Literatura


O banquete
Amine Barbuda 2018

O EFEITO SALENKO

junho de 2018

Edição: 20


Primeira premissa

Na primeira Copa que vi, a dos EUA, em 1994, quando eu tinha oito anos, só competiam vinte e quatro times. O Brasil estava no grupo B, junto com Rússia, Camarões e Suécia. Os artilheiros foram Stoichkov, da Bulgária, e Oleg Salenko, da Rússia com 6 gols cada. Salenko jogou vinte minutos contra o Brasil, mas não marcou. Na verdade, a Rússia sequer passou da primeira fase. Mas ele fez cinco gols contra o Camarões, na goleada de 6 a 1, e conseguiu um recorde até agora nunca superado. Em um único jogo fez o mesmo número de gols que Romário na copa inteira. O baixinho, que entrou em suas sete partidas como titular, foi o nosso artilheiro – e absolutamente decisivo. E hoje pouquíssima gente se lembra do russo. O que me leva a pensar numa verdade futebolística: o Efeito Salenko. As premissas e teoremas que nos ajudam a defini-lo ainda estão sendo pensadas. A primeira delas é bastante óbvia: mais vale obter várias vitórias magras que uma goleada, um artilheiro recordista, e uma eliminação precoce.

O ídolo e o pária

Até hoje, apesar de serem rivais tradicionais, não há rancor acentuado entre o Brasil e a Itália, ao menos não como temos da Argentina, e recentemente da França e da Alemanha. Cada um dos dois países (Brasil e Itália) teve seus momentos de glória na história do confronto, e o desejo de retaliação não é tão forte como poderia ser, caso houvesse apenas vitórias de um lado. Há ainda certo ressentimento por conta da copa de 1982, ressentimento que eu herdei. Mas ele nunca poderá ser sarado, mesmo que os massacremos em dezenas de finais, pois o time de Telê era uma seleção especial, que nós, das gerações posteriores, apreciamos sem termos visto jogar. A goleada na final de 1970 traz certo alívio, mesmo sabendo que nas copas em que perdemos para eles, 1938 (nas semifinais) e 1982, tínhamos um time melhor.

E em 1994, o Efeito Salenko. A Itália nos enfrentava confiando em Roberto Baggio, que foi seu artilheiro e já tinha desbancado a Bulgária de Stoichkov, o outro artilheiro, sendo que este precisou de muito mais tempo em campo para igualar a marca de Salenko. Baggio enfrenta o Brasil, e tem o mesmo número de gols que Romário. Qualquer um dos dois tinha a possibilidade de ser o artilheiro (isolado, se fizesse mais de um gol) e herói da Copa. Nenhum marca, e nos pênaltis, Baggio manda o dele para o espaço, junto com toda a sua bela campanha. Baggio assim se iguala, em vez disso, a Barbosa, o goleiro brasileiro que recebeu a culpa pelo maracanazo (nosso “Hiroshima psicológico”): de herói a pária com um único lance. Taffarel, que nessa final quase toma o maior frango de todas as copas, se consagra.

O Princípio Schrödinger

Na física, um objeto qualquer é chamado corpo. Um corpo é formado por partículas, que juntas completam uma unidade. Um corpo pode ser qualquer coisa, de qualquer tamanho, e outros corpos podem estar vinculados a um corpo. Uma bola de futebol é um corpo. Uma bolinha de lama que se colou na bola de futebol é outro corpo. Uma formiga sobre a bolinha de lama também é outro corpo. Um corpo pode ser considerado grande ou pequeno, quando há uma comparação. Podemos comparar um corpo a outro corpo de mesma categoria, ou a outro de categoria diferente. O planeta Terra é grande em relação à formiga (que é de uma categoria diferente, pois enquanto o primeiro é um planeta, o segundo é um inseto), porém é minúsculo em relação a Júpiter (que é da mesma categoria, pois também é um planeta). Júpiter, em relação ao Sol, é pequeno, e assim sucessivamente, em relação a corpos de outros sistemas. Quando um corpo é considerado grande, é chamado de corpo extenso; quando é considerado pequeno, de ponto material. Isto está intrinsecamente ligado ao Efeito Salenko.

O grande jogador de futebol segue uma hierarquia e uma cadeia que geralmente vai da partícula ao astro. Ele melhora aos poucos entre seus amigos, na escolinha, no colégio, no time juvenil, no time principal, até que ganha seu primeiro título. É um corpo extenso, em relação aos times que enfrentou. Um título estadual permite que no ano seguinte o time jogue contra os grandes – na Copa do Brasil, especialmente –, ainda que como ponto material. Se tal jogador seguir o ritmo de ascensão que teve até então, poderá chamar a atenção do time grande e ser contratado por ele, se destacar lá, ir para outro maior ainda, etc. O céu é o limite. Há outras maneiras de ascensão futebolística, e este é apenas um exemplo educativo.

Mas recuemos. O ponto a que quero chegar ainda está na Copa do Brasil: mesmo havendo uma diferença quilométrica entre o corpo extenso e o ponto material, o time pequeno pode surpreender. Na linguagem popular, isso é chamado de “zebra”. Não é uma possibilidade tão remota. Brian Clough e Peter Taylor foram campeões da Europa comandando times pequenos. O Juventude, o Paulista e o Santo André foram campeões da Copa do Brasil contra times grandes. O São Caetano quase ganhou o Brasileirão duas vezes, mesmo tendo uma camisa de tradição menor que a de seus adversários, e depois teve tudo para levar uma Libertadores. Aconteceu também em várias Copas do Mundo: o maracanazo, o milagre de Berna, a derrota da Laranja Mecânica, o fracasso de 1982, e consideraremos, nas últimas edições, o avanço inesperado de Bulgária, Croácia, Coreia do Sul e Turquia. É diferente da mera zebra, pois uma coisa é ganhar uma partida de um time grande, outra é um campeonato, que requer sequências de vitórias. Isso dá origem ao Princípio Schrödinger do Efeito Salenko: qualquer time de futebol, ao entrar no campo, é ao mesmo tempo grande e pequeno, corpo extenso e ponto material. É o que o Efeito Salenko tem a acrescentar aos princípios da massa e da estatura.

A função primordial do gol

Sabemos que a palavra “gol” deriva da inglesa goal, que significa “objetivo” ou “meta”. Mas qual o objetivo do gol? Primordialmente, o gol serve para alterar o placar, aproximar sua equipe da vitória, dos pontos, às vezes do título. Historicamente, gols são apenas números, e a história é marcada por estimativas frias: dois mil figurantes numa filmagem, 25 mil franceses numa batalha, seis milhões de judeus numa guerra. Arredondam-se as quantidades para facilitar a narração do mundo. Em longo prazo, nos recordamos apenas dos gols especiais. Quatro gols na final da copa, o golaço de voleio, o gol da virada, o aquele no último minuto. O gol, enquanto momento único, é um número específico. Entusiasma os jogadores e inflama a torcida. A modorra de um jogo morno é destruída com um primeiro gol.

Alguns gols são tão especiais que recebem nomes próprios. Gol Olímpico, Gol de Placa, o Gol do Título; o desumano Gol de Ouro, que pode ser horroroso, até contra, mas tem esse nome devido a seu caráter definitivo; o Gol do Século, aquele em que Maradona atravessa o campo humilhando ingleses; o Gol Cem de Rogério Ceni; o Gol Mil de Pelé. E, no entanto, são apenas variações do momento em que a bola cruza por inteira a linha de chegada. Por belos e importantes que sejam, adicionam apenas um número no placar, sempre. Nunca mais de um.

Ainda que essencialmente todos sejam a mesma coisa, há gols que no contexto geral valem mais. O Gol Mil de Pelé é consequência natural da eficiência de seu futebol; o gol mil de Túlio é um produto forçosamente extraído de uma experiência patética. A paráfrase do Gol do Século realizada por Messi contra o Getafe não deixa de ser igualmente belo, é bem verdade, porém só tem uma fração da importância do gol de Maradona. E não podemos nunca nos esquecer da função primordial do gol. Neymar ganhou o Prêmio Puskas por seu lindo gol contra o Flamengo, mas o Santos, no final das contas, perdeu a partida.

Distribuição de rendimento

A Copa da França, em 1998, foi a primeira com 32 equipes. As consequências do Efeito Salenko nos foram devastadoras. Para começar, o Brasil fez 14 gols, três a mais que em 1994, porém tomou dez, sete a mais. Além disso, o time perdeu duas partidas, sendo que a final foi uma derrota humilhante. O que leva à segunda premissa: é melhor manter um saldo humilde, que marcar mais e tomar muito mais.

A França manteve um impressionante saldo positivo de treze gols. Mas essa é uma renda bem distribuída naquela seleção. Dos 14 gols do Brasil, um foi contra, da Escócia, e todos os outros treze foram marcados por apenas quatro jogadores. A França marcou 15 vezes, e todos bem divididos entre seus nove goleadores naquele ano.

O inesquecível Zinedine Zidane só marcou dois na copa inteirinha, e os brasileiros, mesmo os que não viram aquela copa, já estão abusados de revê-los pela TV. O craque francês vai ser lembrado pelo resto de sua vida por causa daqueles dois golzinhos de cabeça (além de outra cabeçada, na final de 2006). Não duvido que se Ronaldo pudesse transferir gols como faz com seus dólares, tiraria os três que marcou contra o Chile e o Marrocos, onde vencemos com gols de sobra, e os depositaria na conta dos franceses. Creio que ele daria até sua Bola de Ouro em troca da medalha de campeão.

Alguns anos depois da lavada que tomamos para os donos da casa, com o luto passado, mas com a ferida ainda não cicatrizada, um jornalista brasileiro faz a pergunta definitiva a Zidane: “você não sente remorsos por fazer chorar tantos milhões de brasileiros inocentes?”. Blasé, ele responde: “mas vocês já pensaram em quantas pessoas sofreram, em quantas vocês fizeram chorar?”. O torcedor brasileiro, acostumado a tantas vitórias, ainda não tinha maturidade para notar que, sempre que comemoramos, o outro lado sai perdedor. Vi o Brasil perder várias copas; a primeira, em 1998, foi a única em que eu ainda não bebia.

Das vinte copas disputadas até agora, o campeão teve um dos artilheiros apenas quatro vezes. Em 1978, o argentino Mario Kempes (que não seria nem artilheiro nem campeão sem os dois gols na polêmica goleada contra o Peru); em 1982, o carrasco italiano Paolo Rossi; em 2002, Ronaldo Fenômeno; em 2010, o espanhol Villa. Apenas quatro, dentre vinte, é um número significativo. Não que não seja importante ter o artilheiro, pois a essência do esporte é buscar fazer gols, sempre. Significa na verdade que um time com vários goleadores medianos em geral vai mais longe que uma equipe com um único grande artilheiro. E mesmo assim, para ser campeão os gols precisam ficar espalhados em várias vitórias, como diz a primeira premissa do Efeito Salenko.

O exemplo do francês Just Fontaine é tão contundente que poderia batizar a teoria, não fosse o fato de sua seleção ter ficado em terceiro lugar, bem melhor que o desclassificado Salenko. Fontaine é o artilheiro de copas com maior número de gols em uma só edição, treze no total, e por muito tempo recordista em número de gols somados. Na copa de 1958, a França, sua seleção, desferiu goleadas ruidosas. Um 7 a 3 no Paraguai, em sua estreia, e um 4 a 0, contra Irlanda do Norte, nas quartas; e então tomou uma lavada de 5 a 2 contra o Brasil de Pelé e Garrincha. Ainda deu mais uma goleada, de 6 a 3, contra a Alemanha, na disputa pelo terceiro lugar, mas quem se lembra? Alguém sabia disso? O que fica de 1958 são os golaços dos brasileiros.

Enquanto isso, Zinedine Zidane não precisaria fazer mais nada para ter seu nome gravado no esporte, com apenas dois gols. Então me pergunto: quem fez história, os recordistas Fontaine e Salenko, ou mesmo Stoichkov, que já foi considerado o melhor do mundo, ou Zinedine Zidane, com suas duas cabeçadas? Eis a questão: quantos gols de cabeça iguaizinhos não são feitos às pencas por aí? Eu mesmo já vi centenas, milhares de gols até mais bonitos que aqueles, transmitidos rapidamente na chuva de gols televisiva, sendo esquecidos para sempre, para dar lugar a alguns gols feios, porém decisivos, de campeonatos mais interessantes. Gols repetidos todos os anos. O lugar e a situação às vezes são mais importantes que os gols em si. Operações frias de matemática e de estatística não funcionam bem no contexto caliente do futebol.

Dois centímetros para o lado

Depois de concluída a tragédia, pensamos sempre em como ela poderia ter sido evitada. Um centímetro a menos de trave ou a mais na espessura da linha do gol, a posição do pé contra a bola num chute decisivo, o impedimento mal marcado. “Se aquela bola…” O futebol é um exercício metafísico em que um gol marcado anula um erro precedente, mas não o contrário. O zagueiro desesperado toma um cartão vermelho após dar um carrinho por trás no atacante que levava a bola sozinho para dentro da área. Até aí, a torcida comemora, algo aliviada: trocou-se o gol claro por um jogador. Mas eis que a cobrança de falta resulta em gol. A torcida chora, pois o prejuízo é completo: tomou-se o gol, perdeu-se um jogador, e o atacante certamente chutaria para fora.

A ordem dos fatores altera o produto; eis um princípio do Efeito Salenko. A Inglaterra não ganharia a copa de 1966 se o juiz não tivesse dado para eles um gol que não entrou. “Mas ganhamos de 4 a 2”, dirá Nick Hornby. Claro, o gol dado a Hurst na prorrogação obrigou a Alemanha Ocidental a atacar e, consequentemente, liberar espaço para o quarto gol inglês. Variação do princípio: se seu time toma uma goleada, posso pirraçá-lo à vontade. Se o meu toma uma logo em seguida, você não pode dizer nada, pois o seu também tomou. O tempo e o espaço, como em Newton, são absolutos.

Considerando-se o 7 a 1 nossa grande comédia bufa – jorraram os memes, mais que as lágrimas – as duas grandes tragédias futebolísticas brasileiras, 1950 e 1982, sugerem movimentos opostos entre si. No maracanazo, o movimento da bola para fora do gol (uma defesa de Barbosa), e na Tragédia do Sarriá, o da bola para dentro (na cabeçada de Oscar, aos 44 do segundo tempo). Precisávamos do empate nas duas ocasiões (segurá-lo em 1950, e alcançá-lo em 1982). De acordo com o livro Veneno Remédio, de José Miguel Wisnik, alguns jogadores tinham tanta certeza de que o resultado estava divinamente escrito, que afirmaram que se a cabeçada de Oscar tivesse entrado, certamente tomariam outro gol em seguida. Certamente de Paolo Rossi, penso.

A ruminação é a arte dos vencidos. O óbvio ululante, que não passa pela cabeça de ninguém por aqui, é que tais minúcias poderiam ocorrer em detrimento do vencedor. Ninguém sequer cogita a possibilidade da bola entrando, no pênalti de Baggio… Mas penso especialmente num lance nunca repetido da final de 2002. Estava cochilando, quando acordei com os gritos assustados de todo o Brasil, desperto, ansioso. Numa cobrança de falta no começo do segundo tempo, o sete, Neuville, estourou um tijolo na trave de Marcos. O jogo ainda estava empatado. E se o curso da bola tivesse se desviado uns dois centímetros em direção ao gol?

Outros esportes

O Efeito Salenko também exerce influência em outros esportes e jogos, especialmente aqueles que podem ser decididos com um único movimento. Nunca no atletismo, no levantamento de peso ou na natação, que, do início ao fim da disputa (alguns segundos), dependem duma explosão constante; e quase nunca no basquete ou do vôlei, em que o resultado é a soma de minúsculas frações: os pontos disputados numa partida podem chegar às centenas, e de fato ganha quem joga melhor. No tênis, talvez, pois o resultado depende do giro da bola em conjunção com o estado físico e psicológico de um jogador solitário, e às vezes até do piso da quadra.

Numa luta, sua presença é indiscutível. Um boxeador leva uma sova por rounds seguidos, e ainda assim, tonto, cambaleando, babando, com o sangue escorrendo pelo rosto, sem enxergar direito, sem se firmar no chão, poderá desferir o gancho fulminante que nocauteará seu adversário. No xadrez, perdemos as torres, os bispos, os cavalos, grande parte de todas as peças, e a possibilidade do xeque-mate ainda paira sobre o rei adversário, que está encurralado diante da rainha e do único peão sobrevivente. No dominó, seguramos uma bucha morta com a possibilidade da vitória; bucha de branco. No Texas hold’em, o dois e o sete do pato que entrou na mesa sem saber jogar podem virar um full house e bater o par de ases que o bom jogador escondia. No palitinho, quando seu único adversário inocentemente pede lona e você não tem nada na mão.

O acréscimo de zero

Num esporte de bola jogado com os pés, ou seja, com a falta de minúcia, o goleiro é uma espécie de pária, rindo das leis na frente de todos; um usurpador. A Santa Ceia não foi pintada com pés, nem assim foi escrito Hamlet. Chopin não tocava nada com seus membros inferiores. A civilização é a exaltação das mãos, e o futebol, a desforra dos pés. Assim, pois, o uso das mãos está renegado ao desprezo.

O goleiro é o Sísifo dos campos. Mal se levanta de um glorioso salto de três metros e lá vem mais um petardo em sua direção. A cada lance lhe espreita a vergonha que esconderá os feitos de uma vida. Nem mesmo o gol contra é tão criticado quanto um frango. O frango é comédia pastelão; como o escorregão, a pisada na bola, a furada, a bolada no pescoço, é a materialização do patético. O gol contra é uma vicissitude factível a quem trabalha duro. O zagueiro, em vez dos apelidos e dos dedos apontados, recebe consolo. Os goleiros, a cruz.

Uma boa defesa é um gol perdido, o acréscimo de zero, antes demérito dos artilheiros que habilidade dos goleiros: “Como ele perdeu esse gol?” antes de “como ele pegou essa bola?”. O Efeito Salenko, que trata especialmente das relações entre os gols que ficam e os que se esvaem na mente, mantém os mesmos princípios no que se refere aos goleiros. O título fará o frango ser esquecido, uma falha na saída de bola não é nada demais se você pegar um pênalti depois, e as maiores defesas de todos os tempos estão em jogos de copas, simplesmente porque eles são mais importantes.

Uma grande defesa vale como um gol, pois não os levar é também uma vantagem. Entretanto, ela nunca é marcada nas súmulas dos árbitros. Refiro-me, é evidente, às defesaças, sensacionais, àquelas em lances tão infalíveis que não seria obrigação do goleiro defender – as defesas inacreditáveis que só entendemos no terceiro replay. Preferimos um jogo sem muitos lances de nossos goleiros.

Um gol não deixa de ser bonito quando o vídeo é ruim; a defesa precisa do melhor ângulo. O gol mais bonito de Pelé não foi filmado, e os vídeos da década de 50 são péssimos. Uma imagem não vale mais do que mil gols, daí ser esdrúxula a comparação com Maradona. Por falta de filmagens, o melhor goleiro de todos os tempos, František Plánička, o tcheco de 1,72 metros que segurou o Brasil com um braço quebrado e perdeu uma copa para Mussolini, é um anônimo internacional.

A perspectiva do prejuízo

O Brasil fez uma campanha medíocre nas eliminatórias da Copa de 2002. Na época, perdeu também para nulidades como Honduras e Austrália, além de entregar a Olimpíada de Sydney para Camarões, que tinha dois jogadores a menos. Nossa maior esperança, vergonha das vergonhas, era conseguir participar. Os favoritos eram França, Argentina, Itália, Espanha e Portugal. Ninguém foi muito longe. A Alemanha, desacreditada como o Brasil, avançou na segunda fase com três vitórias por 1 a 0. Terminou com números parecidos com os de nossas campanhas nas copas anteriores: os quatorze gols marcados em 1998 e os três que sofremos em 1994. Seria uma campanha vencedora? Dos três gols sofridos, dois foram na final; dos quatorze marcados, nenhum.

Porém a insatisfação dos times grandes é amenizada quando outro grande dá vexame. “A França voou cedo da copa”, diria Henry, “mas pelo menos Argentina e Portugal também”. O desgraçado ama companhia. Porém é pior quando a queda provém de Davi. Enfrentar o mais fraco é semear a perspectiva do prejuízo – vencer com pompas traz no máximo o senso de dever cumprido; perder, pior ainda, é a glória dos feiticeiros e dos pessimistas.

O mesmo não se pode falar dos pequenos, pois deles espera-se, quase sempre, a derrota. Sua queda não chama a atenção; quando muito, desperta piedade. Sua vitória, ainda que desprovida de qualquer interesse, é sempre notável. Para quem sempre perde, qualquer avanço espeta uma agulha na história. Coreia do Sul e Turquia, repetindo os feitos anteriores de Bulgária e Croácia, alcançaram as semifinais. Os EUA, seleção sem tradição no futebol, também se classificaram para a segunda fase; saíram mais cedo, motivo pelo qual provavelmente nada viram de interessante naquela disputa pelo terceiro lugar. E aqui está a premissa: a vergonha alheia diminui a nossa própria, mas o orgulho alheio pertence somente aos outros.

Quebra-cabeça

O futebol não é exatamente uma caixinha de surpresas, mas um quebra-cabeça que vai sendo montado aos poucos, em que no final, ao nos depararmos com a bela imagem, nos lembramos de certas pecinhas especiais que estivemos procurando por muito tempo, que quando vistas de fora, são apenas mais uma, semelhante a muitas, mas que têm bastante valor no contexto da montagem, pois nos esquecemos da maioria das outras peças. Esta é a essência do Efeito Salenko. Não cabe mais adentrar em suas minúcias. Não se trata de uma teoria prescritiva, que tem a intenção de diagnosticar e remediar, mas sim de uma explicação descritiva. Expomos estas ideias com a intenção única de refletir sobre ocorrências no esporte, de modo a acrescentar algo na sua compreensão, visualização e no fantástico ato de torcer. Assim, aqui suspendo a crônica de minhas saudades. Poderia ainda adentrar com detalhes nas copas seguintes, porém a cada quatro anos este ensaio ficaria carente de atualizações. Como a história, o futebol não para jamais. E caso alguém sinta falta de um comentário específico sobre o nosso maior vexame, em 2014, perceba que, afinal, estive falando disso o tempo inteiro.


Paulo Raviere é editor da Barril.

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