Crítica | Cênicas


O projeto Diário Rosa inclui 5 eventos, criados com base na temática da violência contra o gênero feminino e promovendo diálogos com outras linguagens a partir das propostas: Diário Rosa – Teatro; Carta Branca – Performance; Meu Assédio Diário – Instalação; exibição de curtas e bate-papo- artes visuais e show da banda Las Marditas – Música. Um belo reencontro de mulheres para falar sobre estratégias, outras perspectivas, e mais um exercício de alteridade em relação a outras poéticas. Esta crítica fará o recorte apenas do espetáculo Diário Rosa, que ficou em cartaz no Teatro Gamboa Nova.

As mulheres que se engajaram nesse projeto inspiraram-se no Caderno Rosa de Lori Lamby, de Hilda Hilst, nos relatos de outras mulheres e, a partir dos referidos recortes, propuseram uma imersão nesse espaço biográfico que traz, em sua ética de relação com o espaço, apenas mulheres no coletivo, uma estratégia de representatividade que tem se multiplicado nas iniciativas artísticas de Salvador, como podemos observar, principalmente de 2015 para cá, impulsionadas pela primavera feminista no Brasil. e em consonância com os movimentos de ativismo digital através de hashtags nas redes sociais: “Eu Não mereço ser estuprada (#EuNãoMereçoSerEstuprada)”, “o corpo é meu (#Ocorpoémeu)”, “Primeiro Assédio” (#PrimeiroAssédio) etc.

O espetáculo foi direto quando enfatizou, logo depois da abertura, que a urgência em falar mais uma vez sobre o tema do assédio e do abuso sexual foi um dos impulsionadores para a cena. A partir dessa informação fui fisgada por essa palavra urgência, tão pulsante nas militâncias, nas redes sociais, e nas manifestações artísticas  contemporâneas de cunho  identitário.

A palavra desdobrou-se em pelo menos três significados ao longo do espetáculo:

1.    A urgência sobre o tema que está posto;

2. A urgência da representatividade das mulheres nos espaços de poder, nas narrativas e no discurso feminista da cena;

3. A urgência da encenação, assumindo a performatividade como estética e colocando o que a dramaturgia do espaço propunha em segundo plano. Julguei ter sido urgência, mas pode ter sido escolha mesmo.

Contudo, suponho que a urgência-escolha de não se utilizar efetivamente da dramaturgia do espaço para lidar com a urgência do tema, que, por sua vez, impulsionaria a subversão que há no discurso proposto, tenha sido um dos fatores que nos colocaram como espectadores, receptores do discurso. Qual espaço foi proposto para o engajamento dos afetos do público? A urgência do jogo e do risco dessa relação não prescinde da unilateralidade?

Fui ao espetáculo com minha filha e reconhecemos muita gente entre os presentes, o que nos aproximou ainda mais das histórias e das cenas propostas. Quantas daquelas mulheres tiveram suas histórias contadas ou espelhadas nas cenas? No começo, o norte de ironias e posturas do ser mulher para o senso comum nos preparava a bílis para as histórias das crianças que viriam logo em seguida.

A minha relação com o espetáculo foi se estranhando quando as cenas mais densas de violência foram se intensificando, não pelas narrativas em si, mas pela sensação de que, talvez, a estrutura que estava posta não teria vazão ali dentro do teatro e que seria invariavelmente quebrada pelos aplausos.

Logo após o último relato, de uma violência extrema, veio o blecaute. As atrizes cantaram, quase acalentando aquele eco de narrativa que pairava; entretanto, a dimensão posta foi execrada pelos aplausos retumbantes. As meninas voltaram para o palco e se sentaram, esperando aquele clima passar. Uns sorrisos meio amarelados, uma breve conversa e mais aplausos. O que o público de artistas, ativistas, familiares e amigos (visto que era uma estreia fechada para convidados) aplaudiram? Poderíamos ter saído com o silêncio e com essa cor rosa desfigurada, o rosa do início foi mais forte do que o relato final? Ou nada disso de rosa tem a ver com a questão, estamos no teatro e a convenção imperou. Ou, nesse caso, se a convenção imperou sobre o que foi feito, qual a responsabilidade – estratégias das artistas sobre o engajamento dos afetos? Qual é o pacto que se propõe ao público? Essas questões foram relevadas na construção do espetáculo? O aplauso ou qualquer interação com o público ainda são questões relevantes para o espetáculo.  Como interagir com a dramaturgia do espaço do teatro Gamboa?

Já que entramos nessas questões poderíamos refletir também acerca da representatividade do próprio teatro Gamboa Nova, um teatro pequeno, com uma estrutura confortável para qualquer instalação, acessível ao público do Centro. É um teatro realmente conveniente e aconchegante onde outra convenção, além do aplauso, que é a regra geral, está se instaurando: o de justificar a “urgência” ou a “performatividade” verbalmente em cena. Vi outro espetáculo que também fez essa escolha. Onde estaria a urgência desse espaço para que não precisássemos de outros artefatos na comunicação com o público?

O assunto que quis abordar com isso foi a escolha das urgências e espaços de vazão para o que urge. Quando estamos em processo de criação muitas vezes entramos no caos ou criamos porque já estamos nele. O processo criativo torna-se mais revelação do que autoria, muitas vezes. O lugar da criação é um elemento  fundamental na construção/ desconstrução de qualquer obra; parece óbvio, mas não é. Enquanto não assumirmos o espaço como parte fundamental do discurso cênico, seja ele qual for, estaremos com as pernas quebradas e procurando apoios onde não há.

 

As meninas voltaram para o palco e se sentaram, esperando aquele clima passar. Uns sorrisos meio amarelados, uma breve conversa e mais aplausos. O que o público de artistas, ativistas, familiares e amigos (visto que era uma estreia fechada para convidados) aplaudiram? Poderíamos ter saído com o silêncio e com essa cor rosa desfigurada, o rosa do início foi mais forte do que o relato final?

Como podemos observar, os pontos “culturais” que ganharam mais visibilidade ou nasceram de iniciativas que até não tinham tanta pretensão em ser, mas se descobriram sendo, ganharam visibilidade em Salvador do ano passado pra cá. Lugares como a Barabadá, Burlesque, Casa Antuak, Casa de Castro Alves, Casa Monxtra, Casa Preta, Coaty, Espaço Lalá, Galeria Entre, Largo da Mariquita e tantos outros a que não tive acesso ainda, nas periferias e fora de Salvador, têm revelado outras potências de poéticas. Não quero dizer com esse pequeno panorama que apenas os lugares “alternativos” têm potência ou são a fonte genuína da arte experimental e de outras poéticas, mas quero destacar como a dramaturgia desses espaços não está, na maioria dos acontecimentos, separadas do evento. E os teatros que são constantemente resignificados? A exemplo do teatro do Centro Cultural da Barroquinha e o Teatro Gregório de Matos. Os solos baianos do grupo NATA e do grupo Base colocaram em xeque os formatos de gênero, de performatividade, de espaço cênico e estado de presença. Chegaram de avalanche e de galera com as urgências todas.

Descobrir as potências e as reais motivações da vida, da cena, é um trabalho muitas vezes às cegas. O Diário Rosa é um espetáculo que nos toca de cara pela afetividade, desde o convite no Facebook até o compartilhamento de algodão doce e pipoca durante o espetáculo. É muito produtivo esse encontro com mulheres de várias linguagens artísticas para abordar as particularidades e outras estratégias poéticas, mas enquanto artistas, artivistas, militantes, estudantes, temos sempre que fomentar a criticidade das vertentes e das formas de produção dos espetáculos feministas e sobre o caráter das urgências para não reproduzirmos padrões que tentamos modificar.

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 Referências

http://esquerdasocialista.com.br/juntas-a-primavera-feminista/

Hilst, Hilda. O Caderno Rosa de Lori Lamby. Ed- São Paulo: Globo, 2005.

MALCHER, Beatriz Moreira da Gama. A Crítica, moral e espetáculo: o caso do feminismo digital. Dissertação de Mestrado, Rio de Janeiro 2016. Centro de Filosofia e Ciências Humanas Programa de Pós-Graduação em Comunicação em Cultural- UFRJ.

 

Rebate à crítica “Diário Rosa: Uma questão de urgência” de Águeda Tavares

Por Larissa Lacerda

Agradeço à Barril por proporcionar este espaço de diálogo sobre o nosso fazer artístico, nesta outra esfera, a da crítica. Recebi a proposta de Águeda Tavares para “fazer o rebate” à sua crítica sobre O Diário Rosa. Considero a palavra “rebater” menos potente do que “dialogar”; portanto, seguirei no exercício do diálogo a partir das questões levantadas pela autora supracitada. Lembrando que as criadoras do Diário Rosa são muitas e eu, Larissa Lacerda, represento uma dessas vozes.

O convite inicial que resultou na rede do Diário Rosa foi:  construir um espetáculo teatral centrado nas questões do assédio e do abuso sexual que partisse de uma imersão no “espaço biográfico”. E, fora isso, tivemos O Caderno Rosa de Lori Lamby como um inspirador imagético e poético do modo como operaríamos diante do material que seria levantado. Quando começamos o processo de criação do Diário Rosa, ou a “abertura dos diários”, sabíamos do desafio que seria, em primeiro lugar, lidar com nossas memórias, memórias de pessoas queridas, e também, memórias de mulheres até então desconhecidas: memórias de dor, memórias escusas, apagadas, violadas: terreno feito de escombros, espaço nebuloso. E descobrimos que lidar com essas diversas memórias era como assistir a um filme como Dançando no Escuro repetidas vezes… e muitas vezes fizemos a escolha de não assistir… Porque todos os dias, depois de nossas rotinas cansadas e repletas de assédios diários e de submissões e dos velhos jogos de cintura, não queríamos mais repetir. Descobrimos que precisaríamos de afeto. Porque estávamos levantando a poeira de muitas e muitas mulheres, e nossas próprias poeiras. Nos cuidar, nos proteger, nos acarinhar era preciso. Era necessário. Não deixaríamos de mexer na ferida, de remexer, porque é preciso, mas o que ficou mais forte é que precisamos nos confiar, nos fortalecer, nos reconciliar, nos amar. E tudo foi feito com muito amor. Queríamos levar isso adiante na cena.

Não entendo bem o que Águeda tenta colocar sobre uma “possível” “dramaturgia do espaço”, nem o que quer dizer com a utilização de “artefato”. Gostaria de ter visto mais uma leitura crítica sobre o que apresentamos dentro das escolhas que fizemos e menos a expectativa da crítica sobre o que acredita que poderíamos pensar ou fazer. E isso me marcou bastante durante a leitura, porque li curiosa tentando encontrar o Diário… Mas um “termo” tomou muito espaço na sua escrita de modo que ficou impossível ignorá-lo. A noção de “dramaturgia do espaço”, no meu ponto de vista, foi trabalhada com certa imprecisão. Por exemplo, na questão “Como interagir com a dramaturgia do espaço do teatro Gamboa”? Na tentativa de chegar perto dos anseios da crítica com relação a essa questão (dentre outras suscitadas pelas mesmas reflexões), posso dizer o seguinte: penso que escolher um espaço não-convencional ou convencional para desenvolver um trabalho não define o discurso proposto pelo trabalho. Nesse sentido, acredito que a forma como nos utilizamos do espaço pode nos revelar outras camadas de significação, mas não determiná-las. Concordo que podemos potencializar os discursos provocando outras formas de “jogo” ou de experiência com o público. Mas não concordo que jogar com o convencional resulte determinantemente em uma relação unilateral. Se eu pensasse assim, deixaria a literatura e o cinema de lado, por exemplo. Por outro lado, eu, particularmente, gosto dos “artefatos” técnicos que um teatro pode proporcionar. Gosto de assumir uma ficção e jogar com “efeitos de realidade”. Mas tudo é pesquisa, possibilidade e necessidade do momento. Se poderíamos utilizar o espaço do Gamboa de outra forma, por exemplo? A falta de contato com o espaço durante a criação acaba sendo fator importante para os caminhos do trabalho. Contudo, a resposta poderia ser “sim”, poderíamos, mas o que surgiu dos laboratórios e da sala de ensaio foi determinante para que estabelecêssemos aquele formato. Logo adiante aprofundo nisso um pouco mais.

Sobre a ida para o Gamboa: escolhemos o Gamboa e o Gamboa nos escolheu e nos acolheu. Pedimos a pauta e ganhamos a possibilidade de ocupar o teatro inteiro. Vimos nisso uma oportunidade de ampliar a discussão. E ampliamos. Queríamos a troca e tivemos. As outras atividades citadas pela crítica aconteceram: tudo sem subvenção, sem patrocínio (como vem acontecendo em tantas produções na nossa cidade); com vontade, necessidade e coragem. E fundamentalmente pela união de muitas mulheres que têm muito para dizer. E precisamos dizer! E sim, concordo com a leitura feita pela crítica, há um formato previsto pelo espaço do teatro. Há uma convenção. E a proposta era lidar com a convenção. E também estabelecer outras. Uma das coisas que aprendi e compreendi um pouco mais com o fazer teatral: a sociedade é feita de convenções. E no caso do Diário, nós, desde o princípio, resolvemos olhar de frente para todas elas, quando resolvemos, especialmente, colocar no “altar” do teatro, o palco, aquele excesso de Rosa. Lá colocamos as convenções que queríamos transgredir. Mas convenções são convenções… Elas permanecem mesmo na transgressão. E aplausos aconteceram… e não aconteceram em alguns dias… foi pensado, repensado e previsto. É estranho? Depende… e me fiz a mesma pergunta: o que as pessoas aplaudem? Mas aí é o “outro”, e ele carrega aquilo da imprevisibilidade. Algumas mulheres vieram falar comigo, logo ali, enquanto eu aguardava a saída da maioria para abrir o fosso e fazer a limpeza do palco para o dia seguinte: algumas falaram sobre “coragem”, outras sobre “necessidade”, outras só choravam abraçadas comigo, outras desejavam “força”, choravam um pouco mais, com a certeza de que aquelas histórias eram nossas, ou que podiam ser, ou talvez, simplesmente, por se sentirem identificadas pelas narrativas. Mulheres conhecidas e desconhecidas… lembro de uma que voltou com uma sobrinha, um sobrinho e a filha; outra mandou o filho para, sei lá… Mas algumas sentiram que poderiam compartilhar suas histórias comigo, ali mesmo, no final do expediente. Que pena que não podíamos nos estender para uma troca aberta, para “terminar” como começou, só que com outros corpos, outras relações: “intimidade”? Parece que aquele espaço pequeno e aconchegante do Gamboa criava uma sensação de intimidade. Ou o próprio desenrolar formal das narrativas, relatos, ou a forma como nos dirigimos ao público, ou tudo junto? E me faço outra questão: será que através de efeitos de real num espaço ficcional conseguimos criar um pacto público de intimidade? Era um dos objetivos iniciais. Será que seria possível uma abertura para troca de relatos como continuidade do espetáculo… Uma diluição das nossas vozes? Gostaríamos de experimentar isso. Cabe no Diário Rosa. No entanto, dentre outras questões, temos problemas estruturais em Salvador que transcendem o Gamboa Nova: transporte, segurança, por exemplo e, por outro lado, o financiamento que pudesse bancar uma equipe sem hora determinada para o “fim”.

No final das contas, penso que, para nós, essa pode ser uma chave de leitura: a intimidade pública. Mas são cenas do próximo capítulo. Acredito em trabalho em processo e na estrutura dinâmica que esse tipo de teatro nos permite: ver o trabalho maturar, mudar, e sim, se transformar, principalmente depois que ele se encontra com o “outro”, o público. Há sempre algo de imponderável no que fazemos e a nossa melhor recompensa é poder vê-lo reverberar por aí. Espero, minha cara Águeda e minhas queridas e queridos da Barril, que tenhamos a oportunidade de elaborar mais e mais por aqui e por aí. Grata pelo presente.

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