Crítica da Crítica | Cênicas


A partir da crítica Major Oliveira: nossos bons velhinhos e o tempo que vivemos, de Alex Simões. Revista BARRIL, Ed.08/2016

Por Ruy Filho, Revista ANTRO POSITIVO (SP)

Quando uma nova revista surge, já se coloca tão deslocada do presente que chega a ser curiosa a intenção. Isso porque as publicações estão em extinção, mortas dia-a-dia pelos valores de inutilidade exigidos cada vez mais pelo capitalismo moderno, também pelo pouco apreço ao conhecimento por parte das pessoas, que nem ouso mais chamar por leitores. Poucas pessoas, na verdade, para ser um tanto otimista, apesar de tudo. Assim, surgiu mais uma. A Revista Barril ignorou isso e simplesmente deu importância à vontade de alguns de querer pensar, falar, duvidar, provocar e outros verbos esquecidos por aí. A revista existe, está disponível a qualquer um, e isso não é banal. Já se tornou acontecimento e, por conseguinte, necessidade ao universo do teatro. Ser de Salvador não significa estar apenas por ali. Cada frase e ideia, cada olhar e observação se desloca pelas vias do mar morto que se tornou a internet para se consolidar como ilhas de respiros. Bem-vinda, então. E sempre teremos de agradecer a esse elenco inquieto, incapaz de permanecer mudo, pelas provocadas consequências inevitáveis.

Segundo ponto. Para que mesmo escrever críticas, em uma época em que qualquer conclusão parece ser apenas outra opinião mais e desnecessária? A Barril insiste. Em seus editoriais consta muito do desejo por olhar o outro a partir de como compreendê-lo diferente.  As críticas são oferecidas sem rodeio, sem disfarce, propondo um diálogo franco, aberto, por vezes dolorido, atribuindo à escrita sistemas particulares de cada resenhista em como lidar com a análise e a conclusão. Espera, o quanto uma crítica precisa ser analítica e conclusiva? Esse é um dos dilemas mais fundamentais hoje, ainda que muitos críticos, que por aí se confirmem eficientes no mercado das opiniões, insistam na análise e na conclusão. Enquanto o dilema, a única questão de fato relevante, é radicalmente negado por uma louca e desesperada tentativa do crítico ser maior do que a crítica. ‘Pessoalização’ inevitável, é verdade. Mas que, ao exagero, revela mais sobre o narcisismo do que sobre o interesse por pensar.

Antes de continuar, portanto, ao exercício dessa crítica da crítica, é preciso esclarecer não ser esse o caso percebido na resenha de Alex Simões. Ainda que a perspectiva seja analítica e conclusiva, a partir de sua própria experiência como espectador, o tom narcísico não está em foco. Um alívio e tanto.

Há outras questões a serem debatidas, contudo. A começar pela condição inevitável de conhecer os artistas envolvidos. Nem sempre isso é um problema, mas, quando se escolhe iniciar a crítica explicando os interesses que levaram à criação arrisca-se contaminar a argumentação pelo que antecede a obra, e não somente pela obra como independente acontecimento. Nada fácil, o que acabo de querer. A escrita de uma crítica exige os paradoxais envolvimento e distanciamento em iguais proporções. E a resenha, já de cara, evidencia para qual lado tende sua relação. E se fosse um crítico dinamarquês que nada conhecesse da ambiência teatral soteropolitana e dos percursos dos artistas, teria ele igual compreensão do espetáculo? Obviamente, não. Essa é a dificuldade maior ao crítico de agora, quase sempre desdobrado da própria prática do teatro (o que não sei se é o caso, por isso falo genericamente): construir distanciamentos capazes de provocar em si mesmo a condição de ser diferente ao outro.

Em muitos parágrafos, Alex dedica a descrever detalhes, cenas, imagens, aspectos, objetos. É objetivo e eficiente nessas descrições. No entanto, de que valem a quem não assistiu ao espetáculo, senão a um acúmulo de informações que não suportam uma concreta relação sensorial e emocional? A descrição em excesso acaba distraindo e não aproximando o leitor, pois o coloca em um espaço de abstração contraposto ao próprio interesse de que busca uma descrição. Dito de outro modo, descreve-se para aproximar. Curiosamente, esse deveria ser o movimento comum ao escrever: descrever, apresentar, traduzir. É o que nos explicam e ensinam os críticos de ontem. Mas não. A descrição limita o diálogo aos que dividiram a experiência, e a crítica acaba servindo a um pequeno grupo de iniciados.

Se o espetáculo foi capaz de construir uma única experiência, então não faz sentido ser fatiado em explicações pontuais e específicas. Ao contrário. Salvo, quando o resultado é propositadamente elaborado para ser a soma de contrapontos estéticos, discursivos, conceituais e simbólicos; quando cada elemento precisa ser compreendido a partir do enfrentamento aos demais.

A crítica de Alex não é tão simplória ou didática, como posso ter sugerido sem querer. É mais complexa e eficiente, acompanhando sempre as descrições com conclusões próprias.  Esses são os bons momentos. Ainda que também abstratas para quem não esteve na plateia, muitas das associações são perturbadoras e demonstram a coerência e a importância do espetáculo. Poderiam ser também menos conclusivas, afirmativas, mais duvidosas, de modo a provocar na leitura da crítica a verticalização sobre os porquês de conhecermos o trabalho. Como está, de modo fiel ao seu pensamento, lista uma série de contextos e discursos que podem ser ou não de interesse. Não pega o leitor desavisado. E aí está o problema também dessa minha provocação. Sendo uma revista sobre teatro, como todas, quem a lê, se não os já envolvidos em teatro? Como surpreender o outro gerando-lhe interesse pelo teatro que lhe apresenta uma resenha?  Bom, quem disser que escrever não é arriscado ao inútil, que atire a primeira tecla.

Por fim, uma última questão. A insistência em subdividir a cena em categorias: o ator, o texto, a trilha sonora… Essa antiga substantivação dos elementos que compõem um espetáculo, como se pudesse ser simplificado em itens e suas maiores ou menores competências. Se o espetáculo foi capaz de construir uma única experiência, então não faz sentido ser fatiado em explicações pontuais e específicas. Ao contrário. Salvo, quando o resultado é propositadamente elaborado para ser a soma de contrapontos estéticos, discursivos, conceituais e simbólicos; quando cada elemento precisa ser compreendido a partir do enfrentamento aos demais. Ao que a crítica em questão apresenta, o espetáculo parece mesmo se realizar como um único movimento ao espectador, o que exige igual resposta em sua observação.

A crítica de Alex se valoriza por uma excelente capacidade em construir significados e desdobramentos, expandindo a experiência ao convívio crítico reflexivo inclusive sobre o próprio crítico. Isso é ótimo. Basta superar a técnica de uma didática antiga vencida pela velocidade das redes sociais, em que todos possuem opiniões próprias sobre tudo e até ao que desconhecem profundamente, e das categorizações desnecessárias e improdutivas.  Os bons velhinhos, quando se trata da escrita crítica, morreram faz tempo. É triste, para alguns, mas é fato. E preocupa que muitos dos jovens já se encontram frente aos porões da inutilidade. Alex ainda parece estar mais perto da porta do que do abismo, e ter chance de fugir e viver.

 

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