Crítica | Cênicas


Foto de Diney Araújo

Crítica de O BOBO 

Ferramentas poderosas trazem em si cargas de risco proporcionais à sua força. Uma faca dá o poder para atacar ou proteger a família de terceiros, mas, se mal utilizada, a faca vira arma para o inimigo. A mesma faca, nas mãos de uma criança, espalha destruição no interior do próprio clã. O cúmulo disso é a bomba atômica.

Assim também é a ironia, essa arma. Capaz de deslocar sentidos e realidades a partir referenciais mil, a mais bela e necessária verdade dita de maneira irônica, porém maldosa, pode acabar com a pessoa errada. Até mesmo a ironia impertinentemente perfeita, aquela cultuada pela arte e pela oratória, dita na hora certa ao interlocutor perspicaz, envolve sérios riscos para os envolvidos. O sujeito irônico coloca-se numa posição elevada em relação ao assunto ou objeto criticado, mas ao mesmo tempo abdica da nobre postura indiferente característica dos verdadeiros sábios. Se ele é tão inteligente assim, por que diabos não deixa as besteiras de lado para se ocupar das coisas dignas de seu intelecto superior? O mero prazer do sarcasmo vale a lida? É essa a manifestação mais vigorosa da racionalidade? A que custo? Ou no fundo há uma forte pulsão didático-moral ante o outro? Essas perguntas são intrincadas, tão difíceis, que a maioria de nós responde a elas com mais uma curva retórica através da autoironia, essa redenção.

Caio Rodrigo, em seu solo O Bobo, sacaneia a si e a tudo. Já na abertura, que lembra as chamadas caricatas de lutadores de boxe ou MMA ao ringue, ele anuncia a ficha poético/profissional do staff: Co-diretor rejeitado duas vezes na pós-graduação, músico amador e maconheiro, figurinista que não teve trabalho (a roupa se resume a uma cueca preta vagabunda, “extreme” bordaram nela), por fim, anuncia-se o ator/criador meio frustrado aspirante a professor da UFBA. Se as informações conferem, não se sabe, o texto já começou.

Texto, aliás, bastante vívido. Rei Lear, Hamlet, Caetano Veloso, Gracias a la vida e ensaios filosóficos em bricolagem com fragmentos inéditos sopram o verbo a ser materializado nas muitas vozes em cena. Ouve-se em corpo a aproximação crítica em relação ao cânone por parte dos envolvidos no processo: as máscaras prodigiosas, a luz precisa, o tablado móvel rebuscado, a guitarra distorcida dissonando. Há algo ali do Bergman teatral de O Rito e Noites de Circo.

Uma das cenas mais intrigantes se dá numa posição que não exibe a carne, na verdade a esconde e constrange. De dentro de um buraco fumegante aberto no tablado, o ator veste uma máscara branca sob um boné cubano. Dali, ele suará durante alguns minutos as ácidas lições políticas do Príncipe de Maquiavel, a todo tempo rearranjando de modo irritante o suporte do microfone diante de si. A corporificação da filosofia maquiavélica naquele segundo andar silencioso e amplo do Teatro Gregório de Matos faz descer sobre o espectador uma atmosfera distópica, esteja ele ou não em dia com os noticiários da política local e internacional dessa segunda metade dos anos 10.

 

O sujeito irônico coloca-se numa posição elevada em relação ao assunto ou objeto criticado, mas ao mesmo tempo abdica da nobre postura indiferente característica dos verdadeiros sábios. Se ele é tão inteligente assim, por que diabos não deixa as besteiras de lado para se ocupar das coisas dignas de seu intelecto superior? O mero prazer do sarcasmo vale a lida? É essa a manifestação mais vigorosa da racionalidade? A que custo? Ou no fundo há uma forte pulsão didático-moral ante o outro?

Todavia, o risco espreita. O discurso de deboche autoirônico por vezes dá voltas sentimentais em torno de questões que não são trabalhadas o bastante. No segmento do carnaval, por exemplo, encena-se uma paranoia em que o artista dentro do ator/autor quase morre metaforicamente numa avenida desse mundo estúpido e sem sentido. Ele quase decide desistir de fazer teatro, afinal, “para quem se faz teatro?”, ele se pergunta. Ora, essas perguntas manjadas e chatas do mundo da arte, se precisam mesmo aparecer, que venham de modo menos derramado. Uma outra pergunta é dirigida à plateia: “Quantos de vocês aqui tem empregada doméstica”? Assim, do nada, sem uma reflexão cênica devidamente performada, essa provocação soa gratuita e anódina.

Na experiência de O Bobo, temos diante de nós a oportunidade de presenciar argúcia e inteligência tornadas matéria no corpo de Caio Rodrigo. Por mais que leia os mais ácidos ensaístas, os comediantes mais espertos, ao leitor ou espectador de cinema sempre será alheia a sensação de compartilhar a presença de pessoas realmente interessantes. Há quem morra sem nunca tê-las tido por perto.

A certa altura, o ator diz: “Eu não quero ser o bobo”. Não, Caio, definitivamente você não é bobo. Mas a ironia também mostra o que em nós há de pior. Não tem como ser melhor do que isso.

 

Rebate à crítica “O bobo, o príncipe e o risco” de Igor de Albuquerque

 Por Caio Rodrigo

Que belo texto! Uau! Eleva-me a potências impensadas e impotências imanentes, conduzindo-me plenamente à categoria de Herói da minha própria tragédia! Pura purgação!

Pegue o dicionário amigo, vamos Bricolar!

Bricolagem, esta palavra existe nos dicionários. Que merda, poderia não existir;

Eis a questão: “Teatro pra quê, para quem?” pergunta batida, revisitada que retorna no centro do texto em sua teatralidade construída: O mero prazer do sarcasmo vale a lida? É essa a manifestação mais vigorosa da racionalidade? A que custo? Ou no fundo há uma forte pulsão didático-moral ante o outro? Essas perguntas são intrincadas, tão difíceis que a maioria de nós responde a elas com mais uma curva retórica através da auto ironia, essa redenção.

Então, risco um projeto, uma imagem, uma interrogação. A ansiedade risca minha respiração, transpiro nas mãos e começo em silêncio, a cortar o espaço. Agora, já acompanhado e cheio de cansaço e desejo, seco o suor e me pergunto entredentes: Por quê? Leio o que acabo de escrever e penso: que merda, estou tentando falar bonito.

Vou criar um conversor automático de ironias. Ele só funciona com a assunção do ato irônico. Que maravilha!

O teatro clama o seu vigor em canto de sereia. A estética do inacabado será calculadamente bem acabada. E deve-se entender isso nas primeiras ações. Não podemos perguntar mais que duas vezes: o que é isto? E, se não há identificação, esteja preparado para algum diálogo. E o resto é silêncio. Este silêncio existe no dicionário Shakespeariano. Tudo que não foi ação é silêncio naquele momento trágico em que a corrupção – palavra que de tão usada perdeu seu ácido moral ontológico – grassa no seio da família e ganha potência de hipertexto até a morte trágica da personagem-título-dilema humano. E o que fica é a história a ser contada. E nos debruçamos sobre ela. E a cobra morde o rabo. E o resto…

Bergman diz em Da vida das marionetes: em silêncio, sou eu, mas quando digo “palavra”, estou em suas mãos. Não sei onde Bergman tomava café, o que ele gostava de ler, não gosto de biografias. Não sei como é seu rosto. Vou ver aqui no Google. Um minuto por favor. ……………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………..

Voltei, vi imagens. Prefiro ver seus filmes. Há uma descrição assombrosa sobre eles no Wikipédia. Não leiam, não é ironia, não é verdade, muito menos mentira. É simplesmente assombroso.

Vamos voltar.

Há quem não escute o seu próprio silêncio.

Tudo tão claro está. O silêncio é indecente. Há de se gritar ao menos. “Gritar ao menos”, bonito isso! Nesta hora os sábios dão a sentença final, se equilibrando em cima do muro a plenos pulmões com grave urdimento vocal a priori: Por favor, apaguem a luz.

Gracias a la vida… me deu dois olhos, que quando os abro vejo os espectadores procurando um lugar confortável no escuro. Gracias Drigo, eu que nunca vi seu rosto lhe digo:

Não se engane, o melhor de mim aparece em frente à TV, domingo comendo pipoca ao lado de minha companheira. É fantástico. Neste momento o que sinto é amor.

PS. ESTE REBATE SERÁ USADO NO ESPETÁCULO.

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