Ensaio | Música


Tião Carreiro
Amine Barbuda 2018

O BLUES DA ESTRADA ABERTA

junho de 2018

Edição: 20


Ele não era o tipo que conta mais que uma vez uma história, e sendo isso uma demonstração de veracidade, ao mesmo tempo as circunstâncias do relato estarem tão definidas em minha mente me parece que nós dois dividimos uma lembrança por simbiose. Eu a fui reconstruindo e a reinventando, a cada ano em que eu cumpria minhas tantas horas de divagação em pensar seriamente nela; e ele a apagou dos frágeis registros orais de nossa família quando morreu há seis anos. Agora ela apenas a mim pertence, em meus esforços por transcender o tempo e conseguir me colocar no lugar dele no momento em que a viveu, quase como se roubasse dele também essa experiência, quase como se com isso eu estivesse tentando de vez apagá-lo para sempre, que dele não restasse mais nenhum vestígio externo de que alguma vez existiu- afora os tantos cacoetes e tantas poses de distração que ele tinha e começam a aparecer em mim após meus quarenta anos (não como se o corpo prestasse uma inesperada elegia; mais como se, por alguma justiça final, eu pudesse prever que eu também cumprirei a sentença de ser esquecido). Não acredito que seus outros três filhos tenham ouvido essa história; não me parece possível que ele tenha se sentado com eles na ampla varanda de sua casa de madeira no meio da floresta em franca degradação (degradação que ele mesmo ajudara a promover quando chegara lá, mas que a maturidade não mais que os novos arranjos de sua situação econômica proporcionaram a abdicação e a resistência em seus anos tardios); talvez seja mera vaidade minha, mas intuo que esses meus meios-irmãos tenham outras qualidades que mereceram dele outras formas de intimidade, mas a imaginação apenas eu herdei dele; e só a imaginação conjunta, esse aquecimento intenso no qual ele construiu um mundo de fadas próprio para me situar nele quando eu era muito pequeno, quando ele me levava no bolso da camisa, me permitia voar por sobre os fios elétricos dos postes de luz, me contava sobre o povo dos homens formigas e sobre o Tarzan, poderia nos condicionar a que ele contasse a história para mim e eu a reinventasse, a reincorporasse, a possuísse. Os anos se passaram e nós dois perdemos muito facilmente essa intimidade da invenção; nos últimos anos, e mesmo antes, quando passávamos férias juntos, o silêncio se impôs de forma lamentável entre nós, como se aquilo tudo houvesse se tornado constrangedor para o que a distância frequente entre pai e filho separados criara para nos imprimir o desconforto.

 

Mas a história é assim. Aconteceu alguns anos após o divórcio entre ele e a minha mãe. Ele era jovem, então. Quando os dois se separaram, morávamos em um apartamento na capital. Ele e minha mãe tentaram de todas as maneiras se adaptarem, fizeram todos os recursos para salvar um casamento que só a cordoalha das tradições católicas e do senso social que imprimia uma severa carga de preconceito contra o divórcio simulava ver que era possível dar certo. Ele era um artista. Uma das minhas crenças mais profundas é que, se naqueles tempos difíceis lhe fosse oferecido atenuantes para os estudos e para a cultura, ele teria se tornado um grande músico, ao menos para os valiosos fins de enriquecimento pessoal. Mas sua vida sempre resvalara na grosseria mais insofismável, o que ele, como motivo para sobrevivência espiritual, demonstrara incrível talento para se desviar e permanecer tranquilo em seu oásis particular, em seu autodidatismo, em sua persistência na exorbitação das misérias da realidade. Faltava-lhe malícia, isso é o certo. O que eu mais amava nele era sua nobreza, sua abnegação – estou atrasando o assunto, mas essas coisas devem ser ditas. Eu nunca o vi altear a voz, ou ser violento, ou perder a paciência; ele era sempre elegante em seu despojamento, em suas calças despreocupadamente rasgadas, em sua leveza diante as tantas vezes em que nem lhe passava pela cabeça afirmar diante esnobes o quanto havia lido, o quanto conhecia com profundidade sobre temas complexos, e o quanto era prenhe de experiências (Após sua morte, o cordel das verdades que fui adquirindo sobre os interstícios de sua personalidade sempre me comoveu e assustou: dos trinta anos em diante teve lepra, cinco vezes malária, uma infinidade de vezes dengue; enriquecera sobejamente por três vezes e por três vezes perdera tudo; matara dois homens em legítima defesa em uma tocaia que lhe fizeram por questões de posse de terra; e de repente, uns anos atrás, me aparece na memória uma lembrança fresca de quando, em meus cinco anos, fui visitá-lo na prisão.).

Depois que as premonições se cumpriram, os dois se separaram. Eu tinha oito anos, e tanto minha mãe quanto meu pai tinham 27. Eram jovens demais. É difícil imaginá-los como adultos, difícil não perdoá-los. A vida naquela época era bem mais dura. Havia um infantilismo diferente do de hoje que deveriam combater para simular serem aptos para o mundo. Quando ele percebeu que deveria começar outra coisa, em um lugar bem longe dali, imagino o quanto lhe foi difícil virar as costas, o quanto lhe parecera que tudo se fechava de um modo insuportável. Ele partira para a Amazônia, sem um puto no bolso. Isso talvez fosse sua reação à depressão, esse elemento alienígena desconhecido que até então nunca se lhe havia apresentado. Ele era muito apegado a mim, e eu a ele. Um pai que inventa um universo particular para seu filho e atualiza suas mobílias zelosamente a cada dia demonstra em reverso o quanto se assemelha à morte a separação. Não é querer ser melodramático, mas aconteceu aqui algo catastrófico, algo que não se faz com duas pessoas que estão ligadas tão indissoluvelmente: mesmo para qualquer padrão racional que eu tenha aprendido em meu futuro de cidadão sarcástico, isso me parece tão desonesto por parte do acaso ou da potestade quanto a obstrução súbita do direito da inocência: um acidente de avião, uma mutilação deformadora causada por uma colisão de veículos, uma violência sexual, queimaduras corporais de terceiro grau, despatriados de guerra. Ele na certa imaginava sem saber o quanto eu sofri, e eu, em minha idade, por mais que intuísse, era incapaz de julgar o ato senão como uma suprema traição.  De novo as palavras tem uma leveza acachapante para que eu diga que instintivamente tivemos que matar um ao outro para podermos seguir adiante. E matar alguém com esse peso, sabendo que para todas as outras coisas, principalmente para a injustiça do benefício de alteridades sem a mesma intimidade, esse alguém continuará vivo, faz parte da ironia brutal da coisa.

Pois agora eu conto. Essa é a história, na linha reta mais possível a que eu posso me ater. Ele viajava rumo à floresta, porque alguém, um de seus amigos de juventude, lhe dissera que lá é que era o local certo para um homem sem mais nada além do chapéu recomeçar. Isso era nos anos 80 do século passado; uma época que mesmo eu usufruindo do pouco de cor que persistia dos poderes da infância ainda recordo como em preto-e-branco, ou naqueles tingimentos evanescentes em que ficam as pessoas nas fotos como prenúncios de seus próprios arrependimentos tardios por terem levianamente se submetido à contraprova cabal de que desperdiçaram suas únicas vidas. Os anos em que o país era um projeto sempre atrasado pela falta de catarse histórica dos pulos contínuos que dava entre um coronelato cheio de injustiças e outro. Imagino o país como uma grande estrada cortando as variações de relevo geográfico, com ele emprumado na poeira do início sem uma coragem genuína além da que vinha da certeza de que nada poderia piorar mais, hora e outra surgindo pelos lados casas e praças que, apesar de compor as alterações de cada cidade e povo no caminho até seu destino, eram cobertas por aquela aura comunal da inércia do fechamento político de cinquenta anos de ditaduras. Ele deve ter subido pelo país de carona, olhando o cenário pelas janelas ou pela carroceria das caminhonetas e caminhões. Eu empreendi essa viagem uma década depois, e somente parte do caminho podia ser transitado de ônibus. Ele para em um povoado no Mato Grosso. É chuva que não acaba mais. Ele começa a se assustar com a chuva, a chuva diferente da norma que conhecia, uma chuva que era como uma entidade viva, como uma presença primordial, uma cortina orgânica mesozoica com a qual só se adaptaria na floresta quando aprendesse de vez que se podia aturá-la nos interstícios de suas tragédias e doenças, respeitando os limites das privações que sua divina indiferença impunha sobre os tantos que moravam nela. Quando eu o vi, ele disse que essa chuva contínua era como o interior da barriga da baleia de Jonas. Nesse povoado havia um circo mambembe, desses bem pobres: palhaços alcoólatras, trapezistas sem nenhuma audácia, um chimpanzé que parecia ter evoluído ao ponto suficiente de dividir o mormaço de humor de aposentadoria e a feiura que havia nas caras de todo mundo. Ele passa a dormir sob uma das lonas, ao troco de ajudar a limpar a bosta do cavalo, ou limpar o lavabo conjunto, ou afastar com a pá o excesso de água para não atrapalhar as famílias que iam ver o espetáculo nem um pouco por pena, mas por essa consciência de consumidores que para tudo o mais não funciona mas que quando surge a oportunidade de por à prova do ridículo esses pobres palhaços forasteiros se torna depreciativamente rigorosa.

E é no último dia que a coisa acontece. Quando estão desinstalando o circo para irem embora, ele vê o violeiro-mor da tradição surgir não sabe ele de onde e se postar debaixo da lona principal, como se estivesse se preparando com seu violão para dar um show privado para os funcionários itinerantes. Era como ver Robert Johnson, como um americano conhecedor de música se deparar com o maior blueseiro da história. Entre os violeiros existe a mesma tradição da alcunha, assim como entre o jazz temos o Duke e o Count, e entre o blues temos o Blind Joe Reynolds e o Big Bill Broonzy. Os apelidos entre os violeiros são da mesma lavra de ambiguidade depurada de preconceitos e pejorativismo, ainda que sejam inventados justamente para facilitar apontar a pobreza, o defeito, a cor da pele ou fazer troça da ambição nunca alcançada dos músicos. Assim, temos o Pardinho, o Xavantinho, o Caçulinha, o Cascatinha, o Chico Rey, o Milionário, o Leo Canhoto, o Sulino, o Caçador, o Caboclinho. E ele via ali, à sua frente, o Carreiro, o maior deles, uma lenda viva, um motivo de reverência entre todos os seus amigos de música, um notório tocador de guapas e milongas e arrasta-pés, um prodígio que conseguia solar com o instrumento como se estivesse colocando montaria em um cavalo bravo por ele amestrado, daí seu nome, Carreiro, porque também, por não haver um mercado fonográfico seguro para os tantos discos que gravou, ele fora caminhoneiro, tropeiro, e o diabo. Ele se aproxima, trêmulo, sabendo que as forças lhe faltavam, mas que ele jamais poderia deixar passar esse milagre, ou essa alucinação. A história se desenvolve com os dois cantando juntos, alguém tendo emprestado um violão para ele. A lona protegendo-os e à minguada plateia. Bebendo pinga e comendo os petiscos servidos pelos assistentes animados. Da única vez que me contou isso, em meu deslumbre, vi com absoluta nitidez quando Carreiro lhe deu a honra de uma alcunha, dizendo que ele tocava e cantava tão bem que dali em diante seria chamado de Milton Viola. Parte disso tudo talvez não tenha sido assim, mas é assim que sempre me pareceu, um dos dias mais importantes da nova vida de meu pai, de seu renascimento. Mas isso aconteceu, sem a mínima sombra de dúvida. Quando eu cheguei na cidadezinha onde ele se instalara, dez ou doze anos depois, após olhar com atenção para cada cidadezinha de passagem pelo lado se não havia um circo com palhaços feios, eu anunciei que procurava pelo Milton Viola. Ninguém soube me dizer nada. Me sentei desconsolado na mureta de um bar, pensando que atravessara 3 mil quilômetros por nada. Daí me veio uma iluminação; talvez a história não fosse somente minha; talvez ele resolvera secularizá-la; perguntei se eles conheciam onde morava Tião Carreiro. Eles me apontaram, com sorrisos de admiração e familiaridade, a rua a tantas quadras de onde ele morava.


Charlles Campos é escritor e leitor profissional no https://charllescampos.blogspot.com.br

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