Crítica da Crítica | Cênicas


Crítico Implícito do Prêmio Braskem de Teatro (BA)

Como salientado na edição anterior da Revista Barril pelo parceiro Daniel Guerra, a coluna Crítica da Crítica se propõe a organizar reverberações de outras estruturas de pensamento crítico sobre as obras artísticas no campo das artes cênicas soteropolitanas. Ou seja, se configura enquanto ensejo de alimentar e problematizar o debate quanto a produção crítica, além de propor uma multiplicidade de visões sugestivas a uma obra. Mais uma vez nos deparamos com a ausência de textos que, em primeira estância, esta coluna buscava depender.

A partir desta falta, fiquei esboçando um pensamento decerto abissal, mas que poderia nos permitir a uma análise minuciosa do discurso crítico debaixo dos tapetes estético-políticos de algumas mídias e/ou iniciativas. Seria o caso de organizar o olhar no intuito de entender e discutir possíveis representatividades artísticas e de como estes entendimentos, a partir desses meios de comunicação que constituem um olhar para a produção em arte, ganham a complacência de uma parte significativa da “classe”. Com o advento da ausência de um pensamento crítico e imanente em arte, se abre o espaço para que outras camadas assumam tal responsabilidade sem necessariamente terem condições aderentes – seria o caso de estarmos definitivamente atentos a isso quando nos referimos a problematizações de um pensamento crítico. É essa a condição da maior, e única, premiação no campo teatral soteropolitano: o Prêmio Braskem de Teatro.

Particularmente, sustento um grande pavor de competições. Submeter-me a um teste, prova e/ou competição acaba por se configurar numa situação desconfortavelmente nervosa, o que me faz estabelecer uma distância expressiva de tais situações. Além de achar que a competição flerta com uma organização neoliberal, sinto que de alguma forma possa existir de minha parte um certo medo de lidar com o ego em vez de ajuntar pujanças – o ego entendido aqui da forma mais ordinária de seu juízo, o pedantismo. Essa minha condição psíquica quanto a enfrentamentos institucionalizados não significa que para mim tais inciativas devam se extinguir, tendo em vista que competir é uma das condições funestas e mortais de nossa atualidade – condição terrível.

No que se refere a única premiação do teatro soteropolitano, o Prêmio Braskem de Teatro, me incomodava originalmente, e ingenuamente, a necessidade de competição aliada a política dos editais. Pensava “como se não bastasse eu competir com colegas para ter dinheiro e executar a minha ideia, tenho que me submeter a uma competição glamorosa e quase sempre dogmática”. Dois de meus trabalhos foram indicados em algumas categorias e em situações bastante diversas, e fui entender a premiação de modo mais relativo (mas não sem desespero) após o meu grupo, em 2011, ganhar o prêmio de revelação, quando um de nossos projetos, anteriormente desaprovado, passou quando anexamos esta condição ao nosso currículo. Foi quando veio à luz uma interferência da premiação enquanto parâmetro crítico-estético, e até marqueteiro. Isso me consome até hoje.

É óbvio que as premiações possuem essa importância valorativa e necessariamente midiática, cumprindo uma função de difusão e lançamento de obras e artistas, isso é fundamental, e eu acredito que o Prêmio Braskem de Teatro cumpre, de modo ainda insuficiente, essa necessidade – não prezo pela sua extinção. Porém, observo que há uma blindagem crítica justamente por se tratar do único sistema de premiação em artes cênicas de Salvador, como se houvesse um certo pavor desse privilégio esvanecer, e essa blindagem é bastante fomentada e renovada pela comunidade. Mas, ressaltando o que aponto no começo deste texto, não falo somente de uma crítica estrutural da premiação (adição e subtração de categorias, e cerimônia por exemplo), mas também, e quiçá essencialmente, de uma crítica ao que o Prêmio propaga enquanto pensamento estético na cidade a partir do julgamento de desígnios artísticos em teatro.  

É comum que a “classe” se apegue ao que está posto de forma mais material, acessível, imediata e expressivamente midiática ao se tratar da valoração de seu trabalho – e aqueles que não se apegam são vistos como arrogantes dissidentes e marginalizados pela mesma classe em muitas ocasiões –, tal situação oriunda, justamente, do fato da mirra crítica e de diálogos mais intensos entre nós. O Prêmio Braskem de Teatro há anos vem legitimando um único modo de produção, uma forma, e lançando ao esquecimento iniciativas que, mesmo assumidamente teatrais, desbravam outras frequências receptivas. Quando não, acabam por adicionar e enquadrar tais inciativas nas “categorias especiais”, seja por ignorância ou por pressão (ou por força) de referenciar o que se lança fora da curva – quanto a estas situações, ouve-se até um “graças a deus, fomos lembrados”. Na premiação desse ano podemos ver Ruína de Anjos, um espetáculo teatral na rua, ser enquadrado como intervenção urbana. A impressão que tenho é que quando a comissão se depara com obras que se propõe a outros formatos que não os tradicionais, acabando por indica-los – principalmente nas categorias especial e revelação – pensam estar diante de OVINIS. Uma mistura de fascínio e alarme.

É também de igual problema a falta de memória e de intimidade com o campo de produção ao se tratar da categoria revelação, quando entre os indicados vemos nomes conhecidos ou de longa estrada no fazer. Em alguns anos isso foi até mesmo vergonhoso. Leandro Villa, por exemplo, já foi indicado a categoria duas vezes (2008 e 2014) e Denise Correia, que em um ano anterior tinha sido indicada na categoria melhor atriz (2012), no ano seguinte foi indicada na categoria revelação (2013); como explicar esses casos num currículo?

Pobre dos artistas que estão entre a indiferença e os louros.

É crucial que os artistas – e falo de mim também – organizem um processo de desnaturalização e até mesmo de desvirtuação da solenidade. Nos forçarmos a diminuir a virtualidade organizada pelo Prêmio para nos entendermos no campo árido de produção e difusão de pensamento crítico-estético nas artes cênicas de nossa cidade – tal construção nunca foi privilégio do âmbito acadêmico, pelo contrário, este espaço depende da dinâmica de produção (artística e de pensamento) do campo. Ou seja, sair um pouco da crítica estrutural da premiação (e cerimônia) e analisar o quanto muitos de nós se tornam reféns deste parâmetro crítico que não consegue acompanhar o fluxo das inciativas artísticas – e eu não falo somente do ponto de vista quantitativo. Acima de tudo, analisar o olhar lançado pelo Prêmio a produção de nossa cidade, pode proporcionar o entendimento de que a existência de uma premiação não é um favor, mas sim, uma constatação do quanto nos mantemos produtivos e mais, agenciando pensamento e discursos. Dosar a euforia dos indicados e vencedores, romper com o silêncio e/ou complacência ao que se vem configurando como um dos insuficientes padrões de pensamento crítico em artes cênicas, é emergencial.

Djalma Thürler, numa conversa informal no projeto de ocupação Mínimos Óbvios (Sala de Arte do Museu Geológico), disse que há um movimento – não lembro se em Rio de Janeiro ou em São Paulo – de artistas produzindo pensamento crítico em arte, constatando que cada vez mais esta alternativa vem se alargando. Tal iniciativa possui algumas justificativas; seja pela escassez de textos e outras formas de estrutura crítica em artes cênicas ou pela velha forma de produção que não contempla mais as iniciativas contemporâneas. Já foi citado nesta mesma coluna algumas plataformas em nossa cidade, que hoje ou estão inativas, como o site Papo Teatral ou que raramente se propõe ao debate estético em artes cênicas, como o site do Teatro NU, plataformas extremamente importantes que foram ou são fomentadas por artistas e pensadores do meio. Cito, inclusive, o blog Falando Sobre Cenas de Uendel de Oliveira Silva (pesquisador e dramaturgo) que mesmo afirmando uma estrutura crítica que, geralmente, não abarca algumas das obras nos eixos de risco, com grande fôlego fomentou o site até o ano passado, buscando abranger uma diversidade de proposições artísticas na cidade. Djalma ainda ressaltou que, simbolicamente, essa legitimada forma de fazer crítica morreu junto com sua última e maior representante, Bárbara Heliodora.

Menciono estes exemplos como comprovação de que é possível nos emanciparmos da inércia do pensamento crítico e de uma diletante análise tácita da premiação. Se a produção crítica é escassa, se Eduarda Uzeda (Jornal A Tarde) escreve despretensiosamente de vez em nunca (em algumas situações por solicitação dos próprios artistas), se faz urgente uma dedicação na difusão do pensando pelos próprios criadores. Na verdade, é este o movimento. 

Em um texto, também escrito por Daniel Guerra, em época da divulgação dos indicados ao Prêmio do ano de 2015, ele fala de uma tomada de posição do evento: assumir que o foco da premiação está num tipo de produção ou de entender a responsabilidade dinamizadora e investir numa renovação de seu formato, no intuito de atender ao que o campo artístico propõe em sua totalidade que, em todo lugar, acredito, é pautada na diferença. Não obstante, defendo que essa problemática não é responsabilidade somente da premiação (que precisa entender o encargo), mas também de nós, trabalhadores do campo, seja por salvaguardar a empreitada que é o Prêmio ou por não fomentar e difundir o campo com pensamentos coesos sobre a produção de artes cênicas de Salvador.

Não creio que a criação de novos prêmios seja a única solução de se livrar de um ditame ali difundido pelo Prêmio Braskem de Teatro, apesar de entender a possível importância deste ato. É insuficiente, além de afirmar a formação de grupos que, provavelmente, nunca se manterão em diálogo. Acima de tudo, é necessário fomentar o pensamento, dar espaço a múltiplas visões e enxergar, com disponibilidade, potência no diferente, e isso nós podemos fazer.

Pobre dos artistas que estão entre a indiferença e os louros.

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