Crítica | Literatura


capa de Elisa v. Randow e ilustração de Susa Monteiro

Fantasmas do futuro

Em O riso dos ratos, seu livro mais recente, Joca Reiners Terron dá prosseguimento a um projeto de investigação sobre os fantasmas de nosso futuro. Tal projeto, que à esteira de Déborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro poderíamos denominar “mitofísico”, isto é, dando conta de uma “mitologia adequada ao presente”, se insere nos efeitos próximos e distantes do complexo de crises que não apenas parece ter nos extirpado qualquer expectativa de porvir, como também nos aprisionou em um presente sem fim.

Seguindo a rota de colisão de A morte e o meteoro (2019), em O riso dos ratos nos encontramos já no epílogo civilizacional. O livro tem como personagem principal um homem sem nome que foi privado de seu mundo. Com uma doença terminal e obcecado em vingar a violência de que sua filha foi vítima, violência essa que é incapaz até mesmo de nomear, enclausurado em seu apartamento enquanto conjecturava maneiras de matar o agressor, não pôde se dar conta de que já vivia entre as ruínas. Habitante não somente das ruínas físicas de seu corpo adoentado, dos estilhaços subjetivos de sua memória pouco confiável, como também dos destroços civilizacionais de um mundo que seguiu sem ele, tem como propriedade apenas um apartamento velho e uma promessa de vingança que aquece suas mãos.

Destituído de seu apartamento por invasores, talvez o medo mais primitivo que constitui e excita a classe média brasileira, o personagem principal do livro se vê fadado, então, a uma espécie de regressão aos lugares fundadores do espaço nacional, do fim para o começo: a fábrica, o quilombo, a plantation, o valongo, o porão de um navio, a travessia atlântica, a terra intocada.

Primeiro, habita um supermercado abandonado chamado Futurama (nome que chegou a ser título do livro), supermercado que se revela, na verdade, um complexo fabril gerido à mão de ferro pelo antigo encarregado do mesmo. Transformados em operários duramente explorados, trabalhando sem parar e se alimentando de sopa de rato, os muitos destituídos de mundo são usados ali como combustível pelo empreendimento bizarro. Na companhia do homem que a sua filha chamava carinhosamente de avô, um sem teto que habitava as rampas do mercado já antes de o fim se infiltrar e corroer também os apartamentos da classe média paulistana, envereda num misto de fuga manca e busca febril pelo agressor de sua filha.

Os personagens do livro são desprovidos de qualquer gordura textual. Sem nome e sem rosto, vivendo existências mínimas, são reduzidos ao essencial: a filha, a jovem química, o encarregado, o avô, o bispo, o homem que cometeu aquilo a sua filha, o caolho, dentre tantos outros. Ainda que sem nome, os personagens são absolutamente discerníveis por suas ações e maneirismos pessoais, demonstrando uma individualidade urgente mesmo em meio aos escombros.

O riso dos ratos é um livro vasto, muito mais vasto do que suas pouco mais de duzentas páginas podem sugerir. Funciona como uma epopeia às avessas, em que o que se narra não são os feitos maravilhosos de um herói glorioso, mas antes as desventuras de toda uma espécie, em um regresso espiralado do fim à origem.

Ainda que terrível e angustiante, o livro é marcado também por um assombro pela natureza. Assombro cru e livre de qualquer idealização. Terron possui não apenas uma inventividade desembestada, como também um raro domínio na criação de atmosferas e na descrição dos espaços atravessados pelo protagonista, seja uma cidade arruinada ou uma imensa floresta perdida. A atmosfera evocada, sorte de paisagem-sonora, dá uma forte textura aos seus escritos, que são feitos de galhos retorcidos e matéria em estado de putrefação, peixes monstruosos e comprimidos moídos, labirintos compostos pelos beliches de órfãos-cobaias e entrepostos comerciais habitados pelos desgarrados da terra, toda a linhagem de estupradores e feitores descendentes do maquinário colonial.

Se A morte e o meteoro tinha como tema os estertores da história colonial nas américas, ainda que carregando em seu ventre podre uma nova colonização (a expansão cósmica do homem através da expedição chinesa a Marte), em O riso dos ratos há um retorno pelos espaços coloniais até surgir a possibilidade de fundação de outro mundo.

Considerar o romance de Joca Reiners Terron uma distopia seria um erro, tendo em vista que a história de nosso país sempre foi marcada pela extremada opressão, desumana desigualdade e constante extermínio espiritual, mental e físico da absoluta maioria da população. Como diz o próprio Terron em entrevista à RFI: “nós somos a distopia, […] nós somos distópicos por natureza.”

É impossível falar dos dois últimos livros de Terron, O riso dos ratos e A morte e o meteoro, sem levar em conta as múltiplas catástrofes que nos atropelaram nos anos recentes, sobretudo no Brasil – e a esse respeito escrevi com mais calma aqui. No entanto, mais do que uma reflexão sobre a crise humanitária que atravessamos e o colapso social que experenciamos, a reflexão como espelho distorcido da realidade, ou mesmo a especulação acerca dos prováveis caminhos de nosso fim, O riso dos ratos é antes a consequência de uma flor carnívora que se irradia a partir do centro da própria obra do autor. Esse centro irradiador, e aqui está a minha hipótese, é a primeira novela de Joca Reiners Terron.

 

A flor carnívora

Não há nada lá (2001), primeira novela de Terron, funciona como livro-farol, emissor de sinais – mas que, como o próprio título sugere, não nos oferece resposta alguma, nos lançando antes no torvelinho da ambiguidade dos signos. De alguma forma, toda a obra do autor já estava naquela novela de pedra lascada, o texto-tesseract que nos mostra que todo livro é apocalíptico – até mesmo o que não é. Ou, antes, aquele que pensa não ser.

Como diz um dos personagens do livro: “Somente a literatura, fundadora da realidade que conhecemos através da linguagem, construtora de mundos […], somente a literatura poderia deflagrar o fim de algo que ela mesma erigiu […], o que a linguagem construiu só ela terá o poder de destruir” (2001, p. 24).

Em NHNL, Terron parecia corroborar as conhecidas, mas ainda assim não menos explosivas, conclusões de Ricardo Piglia a respeito da relação entre a ficção e a sociedade, a narração e o mundo. É claro que essa concepção de Piglia é apenas um dos sensores de uma antena voltada para emissões cósmicas, e que tem em seus componentes figuras como Wolfgang Iser e Hans Vaihinger, dentre tantos – a ficção como constituição antropológica do homem –, e remete de maneira ainda mais decisiva às cosmogonias mais antigas. A ficção como dispositivo de concreção do real.

Em entrevista conduzida por Camila von Holdefer em 2017, Terron disse que “a vida adulta quase sempre é uma ficção que contamos a nós mesmos à medida que os anos passam. Sem certa dose de auto-engano ninguém conseguiria sobreviver ao absurdo cotidiano”. Essa frase parece ecoar a compreensão de Ricardo Piglia de que somos atravessados por narrações (a identidade nacional, a família, a identidade pessoal, dentre outras) e narramos sem parar, concordando ou subvertendo de alguma maneira essas histórias que nos são contadas.

NHNL é a flor carnívora que devora a si mesma, como um toro, um objeto geométrico sem começo nem fim, porque propõe o Universo como imenso livro e credita à literatura o poder definitivo. Fundadora da realidade, construtora e destruidora de mundos, seria muito empobrecedor utilizá-la apenas como suposta descrição dos acontecimentos ou mesmo como crítica social merecida e bem azeitada.

Isso não significa cair na ingenuidade amorosa dos principais personagens de Roberto Bolaño e sua crença romântica na literatura e na poesia como tábua de salvação disparadora das mais diversas revoluções. Um livro sozinho não pode mudar o mundo, decerto, embora possa nos mostrar em suas entranhas como os muitos mundos são formulados, deixando aberta assim caminhos para uma eventual reformulação. Ao evidenciar os mais diversos graus de ficcionalidade que nos atravessam e constituem, a literatura nos permite ao mesmo tempo compreender o ritmo inevitável do samsara a que parecemos estar submetidos e nos oferece também uma pequena, e difícil, passagem escondida para fora do labirinto.

Se em NHNL havia o Bispo de Macau, aquele que leu o terceiro segredo de Fátima e descobriu que só a literatura pode destruir aquilo que erigiu, em O riso dos ratos há de novo um bispo, este comprometido com um necroempreendimento colonial, um sujeito que é a uma só vez senhor de engenho e líder místico, explorando mão de obra escravizada não só pelo ferro, mas sobretudo pela palavra. Lá está de novo a palavra, esse feitiço, o encantamento que liberta e aprisiona.

 

O Apocalipse, isto é, a revelação

Sempre distante das paragens de certa literatura dita realista e na verdade comprometida com a descrição comezinha do ramerrame cotidiano, os livros de Terron são compostos da mesma matéria de que eram feitas as histórias mais antigas contadas ao redor da fogueira: assombro, terror, maravilhamento, aventura. Como em mitologias e lendas, epopeias tão longínquas quanto a de Gilgámesh, aquele que viu o abismo, muito anterior à bíblia e ao apocalipse cristão, o mais importante aqui é contar uma história. Uma história dentro de uma história dentro de uma história, como em Noite dentro da noite (2017), um dos melhores livros da literatura brasileira contemporânea, deixando à mostra o novelo narrativo de que são feitas as nossas próprias entranhas, tudo o que acreditávamos mais verdadeiro e estável, as histórias que contamos para nós mesmos antes de dormir.

Terron se destaca não somente pela qualidade de sua prosa, mas sobretudo pela ousada e desembestada inventividade que atravessa os seus livros. Labirínticos, seus textos não são habitados apenas pelo monstro que nos espera em cada esquina. São também povoados por uma espessa neblina. Cegados pela atmosfera nebulosa, só reconhecemos o buraco em que nos metemos quando já não há mais escapatória. Tropeçando em líquens, sendo surpreendidos pelo submarino nazi vindo à tona no pantanal mato-grossense ou reconhecendo em nossa linhagem doentia de estupradores e racistas o chamado pela vinda do filho de deus, o meteoro que salvará o mundo de todos nós.

Considerado pessimista, Terron possui antes um otimismo perspectivista. Afinal, como ele mesmo diz na entrevista à RFI, do ponto de vista do planeta, a inexorável extinção humana é de um otimismo atroz. Mas se surpreenderá também quem, numa leitura apressada, concluir que O riso dos ratos é um livro pessimista. Escondida e se ramificando como hera, há uma visão otimista que só podemos compreender no final, entre a vista embaçada e o delírio. Como conclui o personagem principal em dado momento: “A realidade deixou de ser o mundo das coisas para adquirir outra dimensão, composta de desvarios e lembranças”. Entre desvarios e lembranças, portanto, outra terra pode surgir. Um mundo inteiramente novo, originário, e que cortou violenta e finalmente o contato com a maldição colonial, se livrando de uma vez por todas da linhagem malograda.

Quando o personagem principal encontra os muitos descarnados se acocorando em débeis fogueiras perto de um rio subterrâneo, somos levados de volta a outros momentos da obra de Terron. A vertigem de habitar uma cidade em ruínas que foi construída sobre rios e nascentes vem do medo de ser tragado pelo sumidouro. Entre os mortos-vivos de que agora faz parte, recebe a sentença de uma mulher: “isso é uma curva de rio sujo”. Não se tratando apenas de um aceno para os leitores que conhecem minimamente o seu trabalho, essa frase parece revelar uma verdade mais profunda. Talvez a obra de Terron, ancorada na divisa apocalíptica/ revelatória que emana de sua primeira e decisiva novela, e que atravessa todos os seus escritos, seja ela mesma um sumidouro. A curva de rio sujo que só acumula tranqueira: memórias esquecidas, futuros interceptados, passados imprevisíveis.

Dessa obra-sumidouro, verdadeira noite dentro da noite, brota uma flor canibal contagiante, espécie de erva daninha, uma hera senciente que se espalha e nos enlaça, nos levando de volta para o torvelinho de que ela mesmo saiu. O torvelinho de que ela mesmo faz parte.

Como na cosmogonia dos kaajapukugi, de A morte e o meteoro, cuja compreensão cíclica do tempo concebe que todo final é um novo começo, NHNL, paradoxalmente, será sempre o primeiro e o último livro de Terron – o Tesseract pairando sobre a obra inteira do autor, os sete selos do apocalipse ficcional, isto é, da revelação final: são as histórias que contamos para nós mesmos que nos permitem viver.


Luiz Guilherme Fonseca é pesquisador. Mestre em literatura pelo PPGLCC da PUC-Rio e doutorando no mesmo programa.

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