Não-Ficção | Literatura


Julia Codo 2018

O ACERVO DAS COISAS PRESCINDÍVEIS

junho de 2018

Edição: 20


  1. Mudei-me para este apartamento há mais de dois anos, após uma separação. Estava enfim sozinha, morava sozinha, dormia sozinha, fazia refeições sozinha. Nunca havia sido assim. E era bom e ruim. Alguns objetos vieram da casa antiga, outros foram comprados depois. Demorei um tempo para travar uma relação íntima com a casa atual e os objetos novos, ou com a nova disposição dos objetos antigos. Estaria a mesa da sala perdida naquele novo espaço, se sentiria ela estranha e solitária, como em uma festa em que não conhece ninguém?
  2. Comprei um aparador azul porque era bonito e porque estava na promoção. Não sabia montar o móvel. Agora não me lembro se foi o homem que veio instalar os lustres ou o vizinho chileno quem o montou para mim. Comprei plantas, muitas plantas, por motivos estéticos, é verdade, mas também porque elas respiram. Em poucos meses, porém, matei quase todas, inclusive o cacto. Morriam afogadas, por excesso de zelo, ou porque me esquecia delas e as deixava à mingua, sedentas.

 

  1. Tenho também este aquecedor. Comprei-o no dia em que decidi que não queria mais sofrer. O apartamento é extremamente gelado, estávamos no pior dia do inverno paulistano, e sou uma pessoa que se irrita com frio – é algo que me define um pouco. Estava enrolada em um cobertor, com uma dor fina no dedão do pé, tentando trabalhar. Tive um lampejo, me levantei, saí de casa e fui até a primeira loja que encontrei na Teodoro Sampaio, sem pesquisar preços na Internet. Voltei caminhando com a caixa enorme nas mãos. Ao ligar o aparelho na tomada, me espantei com a luz absurda que ele emitiu; um Deus-Sol portátil. Tirei uma foto e a postei no Instagram com esta legenda: “objeto luminoso comprado em momento de desespero”.

 

 

  1. Já estou neste apartamento há algumas estações. Agora aguardo mais uma vez o frio que sempre chega com o meu aniversário e, remexendo papéis, encontro o manual de instruções do aquecedor, que nunca havia lido. Há uma página intitulada “Recomendação”, onde é possível ver ilustrações que indicam o melhor lugar para se posicionar o aparelho. Detenho-me um pouco ali e me divirto ao ler, sob cada ilustração, as palavras “confortável” (abaixo das janelas, aquecimento homogêneo), e “desconfortável” (longe das entradas de ar, aquecimento diferenciado – seja lá o que isso signifique). Acabo de me dar conta de que sempre utilizei o aquecedor de modo “desconfortável”. Ao menos esquentei meus pés um pouco.

 

 

  1. No verão seguinte matei outra planta. Era a última que havia sobrevivido a esses anos após a mudança; as demais são mais recentes. Fui viajar e as deixei sozinha, sem água. Esqueci de pedir que minha mãe as molhasse. Voltei de um lugar muito quente, com a pele queimada, completamente rosa; a barriga flamejando. Imaginei-as secas como eu, a sua superfície árida, e a primeira coisa que fiz ao regressar foi encharcá-las. Três dias depois, ela, sempre tão rígida derreteu-se sobre a terra. “Recomendação”: às vezes as plantas ficam melhor sem água.

 

  1. Outro objeto adquirido nestes últimos anos é uma arma: a raquete para matar mosquitos. Também a comprei em um momento de desespero, numa semana muito quente, após várias noites de insônia causadas por pernilongos que não se contentavam em sugar meu sangue, mas precisavam fazê-lo de maneira histérica. Talvez por delírio, cheguei a pensar que se tratava do mesmo inseto que deixava o quarto pela manhã e voltava a me visitar todas as noites. Imaginei a história do pernilongo, suas pernas longas, seu corpo preenchido com o sangue que havia sido meu. A raquete frita os mosquitos e solta um estalo breve, uma pequena explosão doméstica. Com o choque, também é liberado um ponto de luz, efêmero, que primeiro me assusta e depois atrai os meus olhos e desperta em mim um instinto assassino. Assim me diverti durante todo o verão passado: uma tenista perseguindo seu adversário.

 

  1. Quando cheguei ao apartamento, estava um tanto traumatizada com a mudança, porque os objetos pesam muito e é preciso colocá-los em caixas de papelão, igualmente pesadas, e depois tirá-los das caixas e lhes encontrar um lugar. Os objetos também ocupam muito espaço. Surpreendeu-me a quantidade de coisas acumuladas nos anos anteriores, escondidas em cantos improváveis, envelhecendo junto com o casamento. E o tempo passa, e as coisas, se não as usamos, fracassam e murcham, como as plantas. Decidi ter menos objetos na nova casa, e passei a evitar o acervo das coisas prescindíveis. Ainda assim, aquelas pequenas, que ocupam menos espaço, resistem e aparecem perdidas em duas caixinhas brancas no fundo do armário, onde encontro uma faixa de cabelo vermelha que nunca usei, um cartão de banco que não funciona, uma touca de banho rosa, um porta-dólar, um marcador de livro de crochê em forma de flor, um broche “Diretas Já”, um cinto de nylon, uma pulseira que não serve no meu pulso.

 

  1. Nessa caixa, acabo de colocar o vodu do Eduardo Cunha, que ganhei de uma amiga. Na semana em que o pendurei na porta do corredor, como um enfeite, ele foi condenado. A política brasileira é tão absurda que ninguém mais sabe quem é Eduardo Cunha. Eu também tinha me esquecido dele ali, mas esta semana decidi guardá-lo junto das coisas empoeiradas, lugar também dos políticos peçonhentos que caíram no ostracismo.

 

  1. Hoje já não sei como é não viver aqui, quase não me lembro de como era a outra casa. Tenho novas plantas. Como esta que segue respirando e se esparrama, alongada pelo móvel. Não é exatamente nova, foi um presente dos vizinhos chilenos que voltaram para a terra natal, mas tem se mostrado resistente o bastante para sobreviver a esta outra existência. Eles também me deram um quadro da Billie Holiday, uma balança para pesar malas que não sei onde está, uma quantidade enorme de cremes para o cabelo, taças de vinho que já foram quebradas, entre outras coisas. Quando as plantas crescem, posso ver o tempo passando. É um espanto me deparar com um ramo inteiro novo e me dar conta de que não o vi prosperando, de que perdi algo acontecendo. Também há uma certa angústia nessa constatação: atenção, o tempo está passando e você não está notando. Enquanto isso, mata mosquitos, sente frio, liga o aquecedor. O tempo, esse sim, o Deus-Sol luminoso contentor de todas as coisas.

 


Julia Codo é escritora.

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