Crítica | Cênicas


Foto de Izabella Valverde

Eu transbordo excrescências

                                                dúvidas,

                                                                   luminosidades.

E…só entendo de assustar palavras.

Daniela Galdino. Mulher abjeta.[1]

Talvez o maior desafio para uma pessoa brasileira minoritizada seja rasurar a retumbante e cafona pergunta ameaçadora “você sabe com quem está falando?” com a questão-enfrentamento “você sabe de que lugar estou falando?”. Àquelas que recusam a ser objetos (de silenciamento, de exclusão, de estudo, de representação alienante), resta a obsessão de dizer, de se subjetivar, de problematizar, de assustar palavras. A performance cênico-musical Obsessiva Dantesca, criada e executada por Laís Machado, com direção artística de Diego Pinheiro e direção musical de Andrea Martins, durante cerca de duas horas nos coloca essa e outras rasuras, essa e outras questões.

Trata-se de uma encenação de um grupo que rasura no próprio nome a questão: Base, grupo de Pesquisas Sobre o Método da Atriz, é um grupo que revisou seu próprio nome, substituindo o original termo “Ator” pelo correlato feminino, diante de uma constatação aparentemente óbvia: um grupo majoritariamente formado por mulheres não deve carregar em seu nome a palavra “ator”. Óbvia? Nem tanto. A linguagem nos impõe muitas armadilhas e às que se recusam a ser objeto, resta a obsessão em flagrar as armadilhas e desmontá-las.

As armadilhas são muitas e as reações são mais ou menos as mesmas. É importante apontar que o monotematismo está mais na reação de quem diz “lá vem ela falar sobre a questão da negra” ou  pergunta “existe arte negra?” do que em quem diz seu lugar de fala. As armadilhas da linguagem podem ser rasuradas com a expressão “dicotomias da linguagem”. Talvez uma das maiores perversidades do processo estruturante de exclusão das subjetividades minoritizadas seja responsabilizar as insurgentes por uma dicotomização, por um pensamento binário, como se a dicotomia não estivesse sempre ali, hierarquizando e silenciando.

Ao analisar poetas mulheres de língua portuguesa no Brasil e em África, Maria Nazareth da Fonseca nos dá pistas desse aparente monotematismo, que tranquilamente podem nos ajudar a pensar a Obsessiva Dantesca, que também é, por seu caráter multissemiótico, um acontecimento poético:

Com frequência essas expressões procuram ressemantizar um universo marcado por dicotomias. Talvez por isso seja necessário repisar temas já explorados à exaustão, recuperar a dor de ser negra numa sociedade que a exclui, para deixar aflorar a as linguagens de um corpo que tem sua própria linguagem e que se traça pelos recursos da feminilidade. Essa consciência de si enquanto corpo feminino da negrura, enquanto outro que se modela por leis diferentes das que a aprisionaram nas correntes do seu passado, libera manifestações de uma identidade que se faz de indagações, de questionamentos. (FONSECA, 2010,  p. 290[2])

As dicotomias estão postas e ressemantizá-las é preciso. É preciso fazer girar a dança das cadeiras, promover deslocamentos para que o óbvio seja posto na roda da apreciação. É preciso ir ao teatro negro feminista para ver uma banda de mulheres e pensar: por que uma banda só de mulheres significa e uma banda só de homens, não? É preciso tirar os assentos da plateia, dar-lhe a liberdade de se acomodar onde quiser no significante Espaço Cultural Barroquinha, chão onde nasceu o candomblé assim como o conhecemos no Brasil, e colocar o assento sobre a cabeça de uma atriz que carrega sobre sua cabeça não um banco de madeira que pode cair sobe a plateia, mas um signo problematizado.

Laís nos traz um banco sobre a cabeça, um banco pesado, e vai despindo o figurino de gala inspirada em motivos africanos, figurino de criação de Tina Melo, enquanto cambaleia equilibrando o objeto sobre a sua cabeça e pessoas da plateia ficam se esquivando. Temos um objeto sobre a cabeça de um sujeito. Um sujeito pensante. Toda mulher negra é uma equilibrista. Em algum momento, uma mulher na plateia se levanta e lhe ajuda. Ela deixa o banco no chão e a abraça.

Laís é uma criadora que conduz energicamente tudo ao seu redor. É uma usina nuclear. Bebe do vinho da tragédia grega e da catuaba da farsa brasileira. Rege a banda, rege a plateia, enquanto é observada atentamente pelo seu diretor. No dia em que fui assistir à performance cênico musical sua mãe estava lá. Uma mulher branca abandonada por um homem negro. Seu irmão também estava lá. Ela apresenta sua família e sua história de vida como quem e do mesmo modo que apresenta a equipe do espetáculo. Arte e vida misturadas significam. As inexoráveis dicotomias se diluem nos atravessamentos.

A artista está nua. Está completamente exposta e inscrita. Pega uma posca e escreve palavras sobre o próprio corpo. Lembro daquela famosa expressão de Foucault parafraseando Nietzche: “A história se inscreve nos corpos”. Saúda seu orixá, sua/nossa mãe Yemanjá. “Estamos em pleno mar”.

Mais adiante, pede licença para a mãe, a biológica, para misturar catuaba com vinho. Canta canções que falam da teimosia de ser uma mulher negra. Canta canções que significam a beleza de ser mulher negra. Não a beleza idílica, a beleza da resiliência. A beleza que fere.

Laís atua, canta, sobe no palco para tocar percussão, nos dirige palavras, muitas palavras, tem um vigor no corpo, tira a roupa, põe a roupa de volta, nos deixa nuas. Convida Amanda Rosa para cantar e se emociona. A rainha está nua. Estava ao lado da baixista que fala baixinho para ela que precisava ir ao banheiro. Ela replica para todas nós que a baixista precisava mijar. Artistas mijam. Uma mulher mija. Numa linguagem em que os eufemismos silenciam as mulheres, mijar em vez de fazer xixi significa.

Significa especialmente quando ela nos lembra, através da contagem dos 33, do estupro coletivo acontecido este ano no Rio de Janeiro, tendo como vítima uma adolescente. Pede colaboração das mulheres presentes para apontar outros estupradores. São nomes de políticos, em sua maioria. São nomes que não vou lembrar aqui. Ela nos conta de uma manifestação em Salvador em repúdio ao estupro coletivo e observa que havia poucos de nós, homens, lá. Eu, por exemplo, não estava. E não interessa por que não estava, mas interessa contar que me senti constrangido nesse momento. Produtivamente constrangido.

As dicotomias estão postas e ressemantizá-las é preciso. É preciso fazer girar a dança das cadeiras, promover deslocamentos para que o óbvio seja posto na roda da apreciação.

 

O desenho da luz favorece o espaço, nossa presença de plateia naquela nave, de uma igreja construída por e para negros sobre o que foi o primeiro terreiro de candomblé do país. A direção musical de Andrea e a execução das canções respondem à altura ao vigor da atriz regente e sua massa sonora se impõe, com vigor, em nossos ouvidos, vibrando em nossos corpos. O figurino de Tina Melo é merecidamente posto como peça de exposição sobre um manequim nos momentos em que a atriz regente o dispensa. A sonorização precisava de ajustes e a potência vocal da atriz conseguiu se impor nos momentos em que o microfone não ajudou. Toda mulher negra é uma equilibrista.

Ao fundo da nave, uma quartinha guarda seus fundamentos. Tudo significa. O espetáculo chega ao fim, mas muitas de nós precisamos ser convidadas a nos retirar. Laís é uma xamã e temos vontade de ficar perto dela. Deixamos o teatro. Teatro? Saio com a canção de Diego Pinheiro, entre muitas outras questões e palavras assustadas, na cabeça:

En América Del Sur las negras gritaban ais.

Hace mucho tiempo, y ahora un poco más.

[1] GALDINO, Daniela. Inúmera. Ilhéus, BA: Mondronngo, 2013. 2. Ed. 18.

[2] FONSECA, Maria Nazareth Soares. Vozes femininas em afrodicções poéticas: Brasil e África portuguesa. In: PEREIRA, Edimilson de Almeida. Um Tigre na Floresta de Signos. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2010. p. 285-294. Os grifos, meus, são indicativos de adaptação para uma linguagem inclusiva de gênero, adotada ao longo do texto.

Rebate à crítica “Notas musicais para uma Obsessiva Dantesca” de Alex Simões

 Por Laís Machado
 A gente precisa parar de falar da outra/outro na terceira pessoa, é sério. Sua lesbianidade, sua história de resistência, suas marcas no corpo, o trabalho doméstico, seus pontos de vistas às institucionalidades são intelectualidades interessantes. Compõem sua socialização, para a vida pública, para a militância. É preciso romper com a autoestima política e intelectual de terceiro mundo. […] Não se exima! O que se escreve é na primeira pessoa, por que se tem responsabilidade pessoal e coletiva. Elza Soares é nós!!! (Carla Akotirene no Facebook)

Existe um lugar confortável. Neste lugar as certezas são palpáveis. Sair deste espaço é possível, embora seja mais tentador permanecer por lá. Esse é um lugar em que nós, mulheres pretas, nunca estivemos. Nunca nos foi dado nem o direito de descansar por lá. Quando resolvemos, sempre inspiradas por irmãs que o fizeram antes, abrir a boca, esse processo consegue ser tão doloroso quanto mantê-la fechada, mas aos poucos vai nos enchendo de força e apoio e, consequentemente, mais força.

Obsessiva Dantesca foi um trabalho muito relevante para mim, que apontou caminhos estéticos, posicionamentos em relação a minha militância e a minha vida. Mas se deu de maneira bastante particular. Algumas imagens já nasceram prontas, outras coisas só foram entendidas em contato. A sensação é de que os quatro dias de apresentação/comunhão foram uma coisa só, apenas com intervalos para evitar o coma alcóolico.

No primeiro dia, o banco na minha cabeça fez com que as pessoas fugissem e rissem do esforço dos outros por fugir. Toda vez que aquele banco caía me machucava, em principal pela necessidade de evitar que ele atingisse alguém. No segundo dia, as pessoas nem se levantavam, o que me fazia me machucar ainda mais para não ferir ninguém. No terceiro, (o dia em que você assistiu, Alex) foi o primeiro dia em que uma mulher perguntou: Você quer ajuda? Mas em compensação, no quarto dia, o banco não caiu nenhuma vez, porque na primeira vez em que ele ameaçou cair, quatro mulheres correram para segurar, e isso acabou se tornando uma norma naquele dia. Me desculpem, mas não consigo analisar esse comportamento apenas da perspectiva de análise da recepção, do fruidor, do expectante ou qualquer nome que se queira dar. É também político, social, ideológico, individual e coletivo. Como você mesmo diz, significa. E é significado em conjunto.

Existia ali um convite para comunhão que foi aceito de diversas formas e negado de outras tantas maneiras. Certa vez li um texto de Renato Ferracini que tinha como título A Presença Não É Um Atributo do Ator, em que ele dizia que “a presença é construção e composição na relação com o outro”. Aprendi muito mais sobre isso nos quatro dias de Obsessiva do que lendo, escrevendo e em laboratório durante toda a manutenção do Teatro Base (Ai! O encontro). Mas, se percebermos, é possível analisar aspectos políticos com esse mesmo recorte usado para analisar aspectos poéticos. Porque as coisas estão, de fato, imbricadas.

O número de obras assumidamente feministas tem crescido em Salvador; logo, na eterna busca de equilíbrio entre forma e discurso, tem-se experimentado outros posicionamentos éticos no fazer e no compartilhar que demandam um outro tipo de fruição. Eu, por exemplo, desenvolvo uma pesquisa que venho chamando de Ajuran – Transe e Fluxo, que se trata da busca por um estado de presença poroso, passível ao afeto, que se alimente e se intensifique na própria ação, no contato, e Obsessiva foi meu primeiro experimento (por isso adoro o xamã, se chegou dessa maneira para pelo menos uma pessoa, estou indo bem). Deixar as espectadoras/atuantes livres para se configurarem e reconfigurarem da maneira que bem entendessem, foi uma escolha que esteve no limiar político/estético. Se o feminismo que eu acredito e milito tenta construir outras relações de afeto e poder, eu não poderia pré-definir e/ou engessar a configuração atuante-testemunha e testemunha-atuante. O que fez com que cada dia lidássemos com uma configuração espacial diferente.

Também tive o privilégio de contar com uma equipe de mulheres que estavam sensíveis aos vetores que estavam sendo colocados em jogo. Sabendo a hora de disparar uma sonoridade, fazer vibrar o couro do atabaque ou tornar a iluminação quase penumbra. E era uma relação muito pautada na confiança, uma vez que, com exceção das músicas, não havia nada mais marcado. Obsessiva é feita a muitas mãos.

Além do mais, mulheres pretas artistas têm assumido o lugar de  autoras de seus discursos. O que nos coloca numa onda bastante fértil de experimentalismos e traz à luz temas que nos sufocam e nos silenciam há muitos anos, mesmo antes de nossos nascimentos. Eu precisei beber para conseguir dar conta de alguns deles. Algumas mulheres presentes também precisaram, outras não. Eu precisei estar lá para conseguir gritar, outras não precisam e outras saíram convidadas a encontrar seus modos de gritar. Mas era unânime a necessidade do grito, e a partir disso, relações sutis se estabeleciam.

Talvez por isso sejamos acusadas de dicotomizar as coisas, porque, afinal, temos um mundo não tão confortável para contrapor aos que vivem no mundinho que introduziu meu Rebate.  Mas nesse julho das pretas peço aos orixás que o constrangimento, a dor, a raiva, o ódio não nos matem mais. Coloquemos eles no mundo. Se anos de posicionamentos políticos, escolhas sociais, anos de exploração os alimentaram, por que assumimos esse peso sozinhas?

Perforar órganos déspotas,

Brada la mujer negra: Alerta!

Hace mucho tiempo, y ahora un poco más.

Obrigada, Alex.

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