Crítica | Cênicas


Foto de Valéria Simões

o vaudeville veste Tommy Hilfinger.

 O interior de uma casa burguesa, mais ou menos cem anos atrás. Mobília belle époque, biombos, cortinas e xícaras de porcelana. Se não fosse pela caixa de ferramentas stanley arregada pelo primeiro personagem a entrar em cena, seria uma montagem bastante verossímil no que se refere à ambiência original do texto, escrito por Georges Feydeau em 1911. Outro traço infiel à peça é o figurino do protagonista, o deputado Ventroux: ao invés do terno, uma camisa polo anacrônica, dessas tão caras aos nossos profissionais liberais em momentos de descontração. Esse é o primeiro toque de charme que salta aos olhos no trabalho de Edwald Hackler e do grupo Argonautas. As sutis adaptações de contexto recobrem o todo em diálogo franco com os tempos que correm. Pois a arte de ajustar-se ao presente é um arcano guardado por sentinelas brucutus. Comparadas à baianização forçada e canhestra operada por Harildo Deda em Romeu e Julieta no mês passado, as pequenas atualizações da matéria em Não andes por aí nua em pelo ganham ainda mais força. Hackler não subestima o espectador, tampouco a ele se curva na busca de identificação a todo e qualquer custo. A peça

não é atemporal, ninguém é atemporal e sim, algumas distâncias precisam ser mantidas.

Mas a peça em si não nem está tão longe, considerando-se a recente tradução de Marcos Barbosa (disponível no site da revista Pitágoras 500). O texto, inclusive, flui muito bem, seja no papel, seja no palco.

O deputado Ventroux está em pé de guerra com sua mulher, Clarice, porque ela não consegue largar o hábito de andar seminua pela casa: “Ah não! Que falta de Pudor”. No dia da ação, especificamente, ele receberá um antigo desafeto político que agora surge como possível

aliado. Os ânimos estão exaltados e a sorte da comédia está lançada. Para segurar a onda do início lá estão Marcelo Flores e Alethea Novaes, o casal Ventroux, seguidos pelo mordomo transformado em nordestino – outra sutileza da direção atenta ao presente, pois em Brasília as domésticas são as nordestinas –, interpretado por George Vladmir. Marcelo, o noivo neurótico, trabalha bem demais. Além de dominar com energia a respiração da cena cômica, ele articula tudo de modo preciso. Suas falas são a um só tempo límpidas e hilárias. No entanto, sem Alethea dando vida e graça à noiva insolente tudo desmoronaria. Na verdade, o único problema do casting só aparece final com o jornalista De Jaival, interpretado por Agnaldo

Lopes, cuja atuação não acompanha o ritmo dos colegas sobre o palco. Mas já é tarde demais para o público se chatear.

Há, todavia, o perigo à espreita. O motivo da mulher ignorante inscrito no texto (ela troca crápula por drácula, 30 graus Celsius por 30 graus de latitude) causa ruído; tanto que várias mulheres nitidamente aborrecidas abandonaram o teatro Martins Gonçalves tão logo perceberam o tom misógino. Elas provavelmente não acharam muita graça.

A máscara da comédia ridiculariza, exagera, sacaneia e ao mesmo tempo lança sobre os objetos e tipos uma sombra misteriosa que é capaz dos maiores desconcertos. Às vezes rimos de coisas tão escrotas, mas tão escrotas, que nos envergonhamos de nós mesmos; compartilhar essa risada aviltante só mesmo com um canalha raro, um semelhante nosso, um irmão. Reside aí a desgraça de uma espécie de gente que se acha engraçada, quando na verdade é só babaca.

​A máscara da comédia ridiculariza, exagera, sacaneia e ao mesmo tempo lança sobre os objetos e tipos uma sombra misteriosa que é capaz dos maiores desconcertos.

No entanto, uma boa dose de babaquice é necessária a todo comediante. A medida justa dessas balizas vacilantes só consegue existir como impressão fugaz para nós, aventureiros do tempo que somos, porque também precisamos rir sem culpa; o ponto certo entre babaquice, crueldade e graça elevada dura o tempo que a ave do paraíso demora para cruzar as férias de um homem de negócios. O caos sempre vence.

Mas, meio alheios a cerebralizações, vão seguindo Os Argonautas comandados pelo velho capitão Hackler. O texto de Feydeu é bem executado em seu temp. Quem chega ao final – além de agradecer a aula de história do teatro – aplaude os momentos hilários recém-vividos.

Boa parte da peça versa sobre a bunda de madame Clarisse, isso deveria ser gozado. Mas

chupá-la ou não chupá-la continua sendo uma questão.

2018 | Revista Barril - ISSN 2526-8872 - Todos os direitos reservados.