Ficção e Poesia | Literatura


Ilustração de Milton Mastabi

Multiversos

março de 2020

Edição: 21


Dava para matar sem sofrer. A saudade eu digo, dava para matar. Não precisava desaparecer assim. Mas ele disse que não. Melhor ficar longe, deixa decantar, Clarisse. Já são quatro meses sem nem um oi. Mentira, teve o e-mail quando ele me disse que os saques que eu fazia no meu banco, que é o mesmo que o dele, estavam caindo nasua conta bancária porque não haviam cancelado a conta conjunta. E eu dei risada, quis agradecer à gerente por essa artimanha, mas ele não achou graça e só me pediu para verificar a situação,já que estava fora do país.

Foi a primeira vez em que me dei conta de que não saberia mais onde ele estava. E me lembrei daquela manhã em que eu lia um artigo que falava da teoria dos multiversos. Era naquela revista sobre casos bizarros da ciência que eu assinei no aeroporto, e ainda ganhei uma mala de rodinhas de brinde, e que ele achava uma bobagem.

Eu lia em voz alta, ele estava na cozinha fazendo ovos mexidos e só queria falar de política, enquanto eu queria falar de astronomia, ET’s e casos extraordinários do mundo da física, da química, de coisas que eu não entendo. Eu queria falar do que não posso comprovar e por causa disso acho mais fácil acreditar. Sempre achei as verdades prontas um pouco falsas.

Eu queria acreditar em alguma coisa.

E naquele dia comecei a divagar sobre a interpretação dos muitos mundos, sobre os cientistas que acreditam que sim, existem mundos paralelos. Sobre a onda, não a do mar, não esse mar barulhento que escuto há dias eque mais parece um ônibus arrancando no morro, mas as partículas que formam tudo no mundo, inclusive nós. Partículas que nunca entram em colapso e que estão por aí sem se trombarem, numa infinidade de bifurcações quânticas que dão origem, ao mesmo tempo, a universos paralelos onde tudo pode acontecer.

Talvez eu deveria ligar para ele, aproveitar que estou na casa onde tem internet, mas prometi a Paloma que não ligaria.A Paloma me liga todo dia para saber se estou bem e quando respondo que sim ela nunca acredita. E daí, a Paloma nunca vai saber. Ou mandar uma mensagem. Dizer que tenho saudades, sei que a gente não devia insistir, mas vim para a Bahia e lembro de você na areia querendo tomar suco de cacau e eu cerveja, tudo bem, não ligo de tomar cerveja sozinha. Estou com muitas saudades, vontade de dizer esquece essa história, larga tudo, menos eu, larga tudo e vem me ver. Aqui no meu mundo paralelo eu continuo sendo eu mesma. Ainda durmo com a sua cueca e sinto sede se esqueço o copo d’água. Trouxe a cueca na viagem. É confortável, se fosse um short de mulher seria apertado, cuecas são justas sem serem apertadas. Seguram a barriga no ponto certo. Tenho algumas estrias a mais, umas rugas na hora do riso, e a espinha do nariz que sempre volta, é interna e dói na hora de respirar. Emagreci, diz a Paloma que é a dieta do Campari, que eu deveria publicar numa revista o meu segredo, chamo de dieta da desgraça, mas não é tão grave assim, estou bem. Continuo com a barriguinha que você gostava de apertar e os cravos na bochecha que gostava de espremer e eu xingava: vai marcar, vai marcar. Os cabelos cachearam um pouco mais, acho estranho, mas deve ser alguma coisa da água do chuveiro.

Ainda na cozinha parei de ler o artigo por um minuto e perguntei: se eu morresse hoje, o que você faria? Ele não respondeu. E como quem dá uma boa notícia, continuei a ler a matéria que dizia que por causa dessas bifurcações quânticas existem milhões de versões de nós mesmos, cada uma vivendo em um universo diferente.E disse entusiasmada que ele poderia achar outra versão minha num mundo paralelo. Ele disse ótimo, agora vamos comer,porque neste mundo em que vivemos os ovos mexidos ficam ruins quando estão frios.

Se a Paloma souber que guardei uma cueca do Bernardo vai me chamar de macumbeira. Talvez eu seja e no fundo eu acredite em universos paralelos e vestindo a cueca ao dormir eu possa fazer voltar o Bernardo de antes. E ele voltaria numa manhã de sábado, pularia em cima de mim na cama, e eu iria reclamar, tá cedo, me deixa e ele me sacudiria. Depois iria tomar banho enquanto eu faria o café na moca que nunca lavo com detergente,como os italianos me ensinaram, mas era só ele ver a moca quase preta para lavar com água e sabão. E antes de me sentar à mesa eu tomaria banho enquanto ele bateria os lençóis da cama, ácaros malditos, diria, ou melhor,pensaria. Nunca diria malditos, nem palavrões. Muito correto. Tão novo, tão jovem.

Muito jovem para morrer.

Eu comia os ovos mexidos entre a leitura do artigo e fazia perguntas, achando estranho ele escutar tão calado, como se praticasse um ato repentino de empatia budista. Ele se levantou e foi se sentar no sofá antes de eu engolir meu último pedaço de pão com ovos mexidos e me disse sem introdução.

– Clarisse, eu quero o divórcio.

Revueltos, sempre gostei de falar em espanhol: huevos revueltos.

Não, não me revoltei. Acho que porque não ouvi ou fingi que não ouvi, não me lembro. A terapeuta falou que bloqueei o momento, como se minhas partículas, aquelas que nunca se esbarram, colidissem pela primeira vez e não soubessem bem como agir. Apenas continuei a contar que fizeram o experimento do gato de Schrödinger. Funciona assim: se temos um gato dentro de uma caixa totalmente fechada e incomunicável e um único átomo decide se o gato vai morrer envenenado ou continuar vivo, segundo a chamada interpretação de Copenhague, o gato está em um estado de sobreposição quântica, ao mesmo tempo vivo e morto, e seu futuro só será decidido no momento em que a caixa for aberta, obrigando o átomo a decidir se decai ou não.

– Clarisse, me escuta, eu pensei muito.

E respondi que não tinha terminado de falar e expliquei que na interpretação de Everett, que criou a teoria do multiverso nível 3, o universo se separa em dois, e enquanto em um dos universos o gato está vivo, no outro está morto. E nós também somos capazes de nos dividirmos em dois e cada uma das nossas realidades fica para sempre conectada com um dos estados do átomo que se dividiu, ainda que ele só participe de um dos universos. Mas uma vez separados, cada universo continua seu próprio caminho e nunca mais interage com os outros. Mas sabe qual a melhor parte? É que a cada momento que você toma uma decisão, existe algum outro você que tomou a decisão oposta, e que está por aí, em algum universo paralelo.

– Clarisse, eu já me decidi.

Reli o artigo várias vezes nos últimos meses, imaginado que o Bernardo que estava no sofá era na verdade o outro Bernardo que veio de um mundo paralelo. Mas para que o outro Bernardo exista, aquele que toma decisões opostas, o Bernardo que está no meu mundo paralelo precisa morrer. Igual ao gato que em um dos universos está vivo e no outro está morto. Se ele morrer vai restar apenas um Bernardo que mesmo que nunca consiga esbarrar suas partículas em mim, ainda me ama e me procura. Um Bernardo que nunca quis terminar o casamento.

Talvez não seria tão ruim assim se ele, o Bernardo do meu mundo, morresse agora. Talvez ao invés de me preocupar com a sua morte repentina,eu devesse pensar numa forma de matá-lo de uma vez por todas.


Rita de Podestá é escritora, roteirista e consultora de projetos de comunicação social.

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