Crítica | Cênicas


MORTE: SONHO POSSÍVEL

julho de 2017

Edição: 14


Sobre o espetáculo Ponto e Vírgula: pequena pausa antes do fim

Um dos maiores obstáculos na criação é conseguir se desenvolver recorrendo o mínimo possível a expressões ou ideias já desgastadas de tão repetidas. Falo daqueles chavões que, quando direcionados a nossa atenção, funcionam apenas como confirmação de algo que já sabíamos ou defendíamos e que nos faz levianamente pensar “estou certo”. Desconfio do que já é sabido e que, ainda que não careça, recebe ampla e repisada defesa. Quem precisa, por exemplo, gritar seu orgulho por ser heterossexual? Haverá quem argumente e é a essa argumentação que dirijo minha desconfiança, pra dizer o mínimo.

Quando o objeto criado não precisa se valer desses amuletos ou consegue afirmar o que é necessário por um caminho imprevisto, ficamos deslumbrados com tal encontro. No campo da arte, tocamos naquilo que foi a ideia do artista, compartilhamos com ele seu desejo.

Se a palavra carrega em si o potencial de revelar, alcançar, sentir e compreender uma realidade, usá-la desmedidamente pode equivaler àquilo que, de tão descartável e operado a um só tempo, virou motivo de piada: a tal conversa de elevador. Acontece que, muitas vezes, não estamos em um elevador, mas num espaço como o teatro, por exemplo. Investir, numa peça, no uso da palavra como principal mecanismo de comunicação pode ser bastante arriscado.

O que encontramos, quando adentramos o universo do espetáculo Ponto e Vírgula: pequena pausa antes do fim, são dois homens desconhecidos entre si que, “entediados com a demora em uma sala de espera, começam um papo despretensioso.” E disso se valerá a obra do início ao final. Como dito, uma eleição perigosa. Com vinte minutos de peça, deciframos que a situação se passa numa funerária e conhecemos mais uma escolha corajosa dos criadores: falar sobre a morte.

O texto, centro da encenação, assinado por Wanderley Meira, lança diferentes olhares sobre o assunto e imprime neles um tom diferente daquele que estamos acostumados a

usar quando tratamos da questão: o da cotidianidade somado à uma alguma des-romantização. Nisso reside o seu fascínio: afastar as ideias preconcebidas sobre como nos relacionamos com a morte para abordá-la no lugar da complexidade, esquivando-se assim dos lugares comuns.

Logo no início, uma das personagens demonstra certa indignação por ter de dar conta da burocracia que é enterrar alguém, sobretudo por esse alguém ser uma mãe que, de tão ausente, já está morta há muito tempo. E se a outra personagem argumenta que mãe é mãe ou algo nesse sentido, a primeira replica: “Não tem família nenhuma, não”, recusando qualquer normatização dos sentimentos.

A ausência dessa figura nos apresenta a perspectiva de um filho que teve de se tornar órfão quando desistiu de almejar aquilo que aprendemos sermos todos merecedores: o amor materno. Essa reflexão é sobretudo sobre a solidão, sobre novas maneiras de se enxergar e de se colocar no mundo. Passada a lamúria, entender-se órfão pode ser a oportunidade de ultrapassar, de exercer a  cobiçada liberdade.

Ponto e Vírgula, por versar sobre a morte, é também um espetáculo sobre utopias, sobre sonhos irrealizáveis.

O primeiro deles vem a partir desse mesmo filho, confesso da satisfação em poder experimentar o papel de rebento em algum momento, de poder zelar, ainda que nas condições postas.

O seguinte é exposto quando a outra personagem recorda tudo o que disse a seu ente quando este estava à beira da morte; todas as verdades, tudo que gostaria de ter dito antes.

O diálogo é colocado como artifício que tudo esclarece, que tudo resolve. E, por isso, também um sonho irrealizável, inatingível em função do próprio abismo que a palavra nos impõe quando praticada excessivamente.

A maior das utopias talvez esteja posta na peça na especulação de que o fim trará esclarecimentos de pronto, de que haverá algum aprendizado assim que a morte se consume. Não estaria o aprendizado num horizonte distante e jamais de acordo com o calendário dos sentimentos?

O espetáculo condensa em sua composição várias etapas de um longo processo e, se a morte é definida por muitos como o fim, ela própria tem seu início, seu meio e seu fim, diz-nos uma das personagens. Mas terá fim? Como identificá-lo? Quiçá o fim esteja naquele instante fortuito em que a vida deixa de nos parecer injusta, quando deixamos de levar a morte pro lado pessoal. E, assim como se dá no processo de tornar-se órfão, podemos enxergar nesse indesejado encontro também o ensejo para extrapolar de um eu para um outro.

Duas verdades das quais Ponto e Vírgula me lembrou é que “a morte não nos pede um dia livre” e que “o fim está no início, no entanto, continua-se”, ambas afirmações de Beckett; prova de que, por mais absurdo que possa parecer, o perecimento, como lembra uma das personagens, quando começa a ganhar suas primeiras formas, é um espetáculo dos mais tradicionais: aquele diante do qual e ao qual só podemos sentar e assistir.

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