Crítica da Crítica | Cênicas


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Milton Mastabi

A partir do Manifesto Transpofágico, de Renata Carvalho

 

Este crítico será, acima de tudo, o crítico do crítico que fui, antes mesmo de adentrar o enorme e lotado Teatro Municipal Castro Mendes, em Campinas, durante o 15º Feverestival. De antemão, peço que me perdoem se vocês gostariam de ler sobre o espetáculo ou sobre a própria atriz. Isso só vai chegar um pouco mais tarde e, mesmo assim, de viés.

A essa altura, a maioria de vocês deve conhecer a polêmica em torno d’O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu (2016), espetáculo da “atriz travesti Renata Carvalho” (essa é a expressão que frequentemente a acompanha nos jornais). A coisa toda girou em torno de alguns vetos a apresentações e a protestos e ameaças, tanto virtuais quanto em teatros, por parte “dessa canalha existente em qualquer sociedade que, em qualquer período de transição, ergue-se não só sem nenhum objetivo como até mesmo sem nenhum esboço de pensamento, apenas usando de todos os meios para ser a expressão da intranquilidade e da intolerância” — assim falou Dostoiévski há mais de um século atrás.

Essa classe de oportunistas morais — para além dos gritões do caso “Jesus Rainha do Céu” — vai desde os “direitistas” e “esquerdistas” mais inofensivos, esses yuppies e hipsters amigos ou inimigos nossos, presentes em jantares-de-família, reuniões de empresas júnior ou festinhas descoladas, até a citação de Goebbels e seus “mitos fundantes” pelo ex-esquerdista controvertido, neo-direitista e cristão convertido, rapidamente promovido, rapidamente rechaçado, diretor de teatro e ex-secretário-da-cultura-relâmpago, Roberto Alvim.

Sobre a polêmica das censuras, acerca da qual já escrevi o bastante, para quem ainda não sabia dela (ó hereges midiáticos), não precisa ir longe: pode encontrar aqui, aqui e aqui. Aqui, aqui, aqui, aqui e aqui — e ainda, aqui e aqui.

Como vemos insistentemente, o oportunismo não é um “privilégio branco”, nem “de direita”, apesar de grassar muito bem nessas áreas, como o pior milho transgênico. O oportunismo político nos ameaça todos os dias, a um só tempo real e virtual como um coronavírus, inclusive a este que vos escreve, no momento de lhes falar sobre o último espetáculo de Renata, o Manifesto Transpofágico, o qual por si só já representaria, para o oportunista vírus da mídia, o hospedeiro por excelência.

Pois bem, ia eu ao teatro, cheio das minhas aporrinhações de artista e crítico; como sempre, os dois a um só tempo, ou seja, acossado por, pelo menos, duas formas de ressentimento. É que eu sempre vou ao teatro, contrariamente aos discursos bem-intencionados sobre “estar aberto às experiências”, completamente fechado e desejando, intimamente, que cada acontecimento sobrevenha como uma revelação, abertura repentina, tão violenta quanto satisfatória.

Me ressentia, enquanto artista, do uso e abuso das formas mais pueris do dito contemporâneo na parte acachapante das coisas que vi, ao menos desde 2015, e que, ao meu parecer, embotavam quaisquer outras propostas, tão interessantes quanto, em prol da adesão irrestrita a um sistema de representações regido pela circulação incessante e frenética de informações sóciopolíticas: ou seja, na minha cabeça, eu pensava que “a subversão” já havia se tornado, em meio ao frenesi do mercado de arte, há muito, “uma versão (vendável) do sub”, ou que “a adesão é o brasão adesivo, a super bonder ideológica do século” (sim, com essa poética bastante suspeita).

Mas isso tudo provém, obviamente, de um “imaginário de artista”; ou seja, de uma mentalidade em cujo oco pode-se encontrar, dependendo das condições climáticas (e não estamos nas melhores), toda sorte de invejas, frustrações, fantasmas, ilusões perdidas, sentimentalismos gratuitos, bílis, recalques etc. Por isso a parte artista é a que menos gosto de escutar, e é a que me dá menos prazer — a não ser na hora de arregaçar as mangas para finalmente criar.

O crítico, se não é mais atraente, ao menos afina, na inteligência, a formulação quase sempre infantilóide, chorona ou excessivamente entusiasmada do sujeito artista. Ele diz: “Veja bem, sr. artista, o que se passa é que há uma hegemonia midiática se implantando nos corações do nosso século, espalhada aos quatro ventos por essa ferramenta (dizem) tão interessante quanto nociva que se chama internet. Além do que, a geração está de fato mudando. Você não pode deixar, retrospectivamente, de acreditar naquelas notícias veiculadas ainda no final do século passado, sobre os millenials. Sim, eles existem, e já estão na casa dos 20. Não venha me falar, portanto, de estética versus política, porque sim, essa é uma questão morta, não por ter encontrado resposta melhor, mas por sua própria caducidade interna (essa caducidade que já vem lá do século XVIII). Sim, você remói e remói suas certezas — e elas não estão nem tão certas nem tão erradas. De fato, ocorreu e está ocorrendo uma mudança global, como aquelas que, na História, dividem Eras, não apenas no plano político-econômico mas no estético, e principalmente, na encruzilhada dos dois. Mais pessoas podem se dizer artistas, e são encorajadas, constantemente, a tal. A isso se soma a ramificação totalizante das redes sociais, que amplia e modifica os brados, as formas de se comportar e as possibilidades de criar, produzir e divulgar seus próprios trabalhos. Mas essa mesma abrangência virtual, aparentemente otimista, significa a extensão de um poderio capitalista cujo cerne, sabemos, se encontra novamente, e sempre, nos Estados Unidos da América. Então é claro que estamos, sim, sob o império dos memes. Não apenas aqueles cards que circulam na internet, com desenhos e frases, mas memes enquanto repetidores de informações, vírus implacáveis. O mesmo se dá com as formas da arte. Circulando mais facilmente, elas imperam como imagens e enunciados. Então é verdade que o teatro documentário se torna um fetiche, que a fala autobiográfica cheia de lágrimas de persuasão é a tônica dos corpos contemporâneos, que a própria noção de contemporâneo é de uma incontestabilidade alarmante, que os discursos minoritários, apropriados pelo mercado neoliberal da curadoria onipresente, se tornam progressivamente ralos e inofensivos; mas também, essas formas, dignas de um tempo específico, assim como a Fuga o foi durante o Barroco, estão cheias de verdade. Haverá tudo isso sim, mas haverá também casos onde o processo será recolocado desde o início, não o início no sentido cronológico, mas aquele início radical, próprio do surgimento do que chega sempre sem nos avisar e que se sustenta sob os próprios pés com uma intimidade máxima, tanto no que se diz, quanto no que se faz. Então, da mesma forma que outrora havia o Belo ruim, bom ou mais ou menos, hoje há o “Urgente & Necessário” ruim, bom ou mais ou menos, não cabendo a você, ó Criança, distinguir o bom, o belo, o mal e o feio, mas ficar atento ali onde o furacão começa a se preparar, ou quando, deitado com o ouvido no chão, escuta os sussurros do vulcão. Eis o Espírito do Tempo. Ele está no meio de nós”

“Amém”

Soa o terceiro sinal e tudo se apaga. Por três ou quatro vezes, alguns refletores acendem muito lentamente e, como olhos voltando ao vazio sem terem visto nada, se apagam, até que um deles, de súbito, consegue capturar um corpo que flutua a meio centímetro do palco. Ele paira no abismo como o Primeiro Sopro da Bíblia, “fiat lux”, mas é de fato um corpo, porque está em silêncio, porque é de carne, porque respira e porque não tem rosto. Não é o corpo-conceito ou o corpo-potência do acadêmico e do artista; é um corpo concreto porque é quase um objeto, e sendo objeto, não pode quase nada; é frágil e evidente como qualquer pedaço de barro queimado.

A voz surge do nada, porque o rosto está coberto de sombras. Assim, o relato auto-biográfico e o corpo-de-quem-fala se tornam duas entidades distintas, como num filme de Godard em que a trilha sonora e as imagens correm paralelas ou lutam entre si, com a intenção deliberada de dar um curto-circuito crítico na percepção cotidiana. Vemos, portanto, um corpo passeando pelo palco, à medida em que é recortado pelas diagonais dos refletores como o é pelos olhares do mundo, sempre num mesmo ritmo, a um só tempo solene e descontraído, enquanto, de fora, uma voz, a de Renata, narra eventos da sua vida, da infância à vida adulta, fazendo intervir neles imagens e relatos de como as travestis são historicamente tratadas no Brasil.

A esse choque de escuridão sobrevém um abrupto choque de luz. Na segunda parte do espetáculo ela se mostra inteira, completamente iluminada, e, ainda nua, trafega entre o público como se apresentasse um talk-show ou um stand-up comedy, num jogo provocativo de perguntas e respostas.

De descrição já basta. Não é esse o meu objetivo; por isso volto àquela parte do texto em que, conversando comigo mesmo, soltava um sonoro “amém”, com relação à aparição de um “Espírito do Tempo”, que , segundo o Crítico, estaria “no meio de nós”. Pois bem, esse “amém”, onde quer que apareça, é sempre um tanto problemático.

Criticar um espetáculo que te arrebatou é sempre mais difícil do que criticar um espetáculo que lhe foi indiferente ou terrível. Nesses, o lastro que se tem de invenção é maior, porque há pouco ou nenhum compromisso de fidelidade ao acontecido, e você pode viajar às plagas mentais com a mais criativa irresponsabilidade — expressão que já é quase um pleonasmo. Quando, inversamente, um negócio te toca ou te vira ao avesso, com foi o caso desse, fica tudo mais arriscado, porque o perigo do romantismo e do entusiasmo está logo ali, na esquina, e, como sabemos, (Fernando Pessoa já nos alertou), qualquer espécie de “sentimento sincero” não garante em nada uma boa execução literária. A crítica, seja ela cruel, apaziguadora, ácida, violenta, elogiosa, entusiasmada, apaixonada ou branda, deve ser sempre a expressão de uma cisão, e nunca de uma adesão. A adesão não constrói a negatividade essencial ao pensamento crítico.

Hoje fala-se muito de afeto, como se a acepção espinoziana do conceito tivesse a ver com essa lamúria afetiva típica dos jovens do novo milênio (talvez de todos os milênios). Quando se lê finalmente a Ética, descobre-se que os afetos, na verdade, estão muito mais próximos dos poderes de Foucault do que dessas afetações publicitárias alavancadas pelos seriados “absolutamente progressistas” da Netflix.

O que a reprodução de formas e discursos contemporâneos perpetra é esse tipo de pasteurização que, ao mesmo tempo em que torna qualquer coisa mais salutar ao gosto “do público”, torna-as menos violentas, política e esteticamente falando. O que Renata faz é reativar, na crueza do seu discurso artístico, a violência própria do verbo e da carne, sem abdicar da sua capacidade de comunicação e empatia. Por isso, se esta crítica fosse apenas um libelo à liberdade, igualdade, fraternidade e ao “ninguém solta a mão de ninguém”, me sentiria traindo o acontecimento mesmo. Na sua crueldade ácida e crítica, que não poupa, na platéia, os esquerdo-machos, as brancas feministas sagradas, nem a nata esclarecida da arte contemporânea, se aproxima do personagem religioso invocado em seu primeiro espetáculo. Afinal, foram os anos caminhando pelo deserto que, segundo os cristãos, habilitaram Jesus a chutar o pau da barraca. Dado o paradigma que representa a existência trans dentro do feminismo, tal aproximação está longe de ser inexata.

No Manifesto Transpofágico, o golpe certeiro consiste em virar a mesa toda, e não apenas ir trocando as cartas/representações de lugar.

Paradoxalmente, não posso deixar de fazer uma relação alegórica entre um célebre seriado e o conflito interno e fértil que há, no campo cultural, entre o discurso minoritário, incorporado em corpos radicais, e a pasteurização mercadológica desses mesmos discursos. Em The Handmaid’s Tale, as Aias são mulheres obrigadas a parir filhos para os senhores da casa, cujas mulheres (“Esposas”) se tornaram estéreis. No momento do parto, de um ritualismo distópico horripilante, a Aia, com todas as dores de um parto difícil, é colocada numa estranha cadeira de dois andares. Ela senta no de baixo. No andar de cima, como um duplo seu, vem pousar a Esposa, que vinha sendo ritualmente preparada em outro quarto, gemendo, gritando e respirando como as parturientes reais. Ao final a criança nasce, é entregue à Esposa, enquanto a Aia deve retornar ao quarto para repousar de seu cansaço real. Ora, aqui, o gozo da Esposa nada mais é que a mais-valia, extraída do trabalho de parto da aia, da serva, da escrava, da proletária…

Pois bem: essa Esposa, que grita sem gritar, dói sem doer, respira sem respirar, contrai sem contrair, sangra sem sangrar, e mesmo assim lucra — simbólica ou monetariamente — com os sofrimentos de outrem, é justamente o mercado de arte, com seus gringos-que-falam-e-falam-do-sul-do-mundo, críticos entusiastas-superficiais, curadores absolutamente-bem-intencionados e toda uma imensa gama de artistas-mascate, cuja ética fundamental consiste em pongar no bonde de uma suposta “revolução” como quem faz cosplay do La Casa de Papel. Eles representam a plasticidade, a complacência aparentemente infinita do capital. Não é coincidência que o seriado, apesar do estofo evidentemente progressista liberal — como todos os são, aliás —, contenha germes anarco-comunistas. Renata Carvalho, como força legítima do próprio tempo, traz, igualmente, essas mesmas linhas, e ainda outras, simultaneamente coexistentes e conflitantes. Cumpre, a cada caso, — se se quer discutir uma “arte política” — descobrir qual dessas linhas deveria vigorar.

No mais, é aquela velha história de “pregar aos convertidos”. Curadores, artistas, diretores de museu, donos de galeria, todos, no panorama discursivo atual, figuram de mãos dadas, sem se soltar. Todos, em prol do bom exercício das suas funções — e “em tempos sombrios” (quem, hoje, não escutou essa fórmula?) —, concordam no básico; todos apelam a um tal de “comum” que agora resolveu dar as caras. O resultado é visto a olhos nus: em meio à tragédia, o panorama é uma mistura sinistra de Bambuluá, Ursinhos Carinhosos, David Lynch e Tropicália.

Por isso, não escondo a vontade de saber o que iria acontecer se, qualquer dia, Renata contra-pregasse seu anti-evangelho num espaço que tivesse, ao menos na sua maioria, aquelas caras caretas que nós, os “esclarecidos”, lutamos para não assumir ou não nos tornar. Porque, ao final, todos nós, “os artistas”, saímos, em graus maiores ou menores de desconforto, confortavelmente confirmados; e de alma lavada.


Daniel Guerra é editor da Barril, crítico de arte e diretor de teatro.

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