Treta | Cênicas


Manobra de Flanco

novembro de 2016

Edição:


Falar sobre a solenidade de encerramento da seleção pública das setoriais artísticas 2016, que culminaria na assinatura do TAC (Termo de Acordo e Compromisso), é retornar aos pensamentos clássicos sobre democracia. Quando digo clássico, é voltar ao bicho papão de todo aquele que se consome com os ditames filosóficos contemporâneos, assolados, porquanto, pelo cool pós-estruturalismo. “[…] Gozar da mais perfeita igualdade política.”[1], aí está o primevo conceito sobre o que seria democracia, posto na roda pelo cristianizado Aristóteles. Sem dúvida, um espaço que já possui em seu fundamento a obrigação de estimular a participação popular, não tem outra saída a não ser optar pelo experimentalismo. Tomar a democracia como espaço político é entender o desmesurado laboratório, e entender, hoje, a crise da representatividade – no fundo, elemento chave para qualquer crise no sistema. É ser ao mesmo tempo a fome e a comida.

Espero que todo artista que tenha recebido o e-mail com o informe do Fundo de Cultura da Bahia (FCBA) sobre a solenidade, convocando para a assinatura do TAC de maneira categórica, tenha, no mínimo, desconfiado da proposição. A solenidade configurou-se como uma boa estratégia militar: investir contra os “selecionados” por todos os flancos. Decidi chegar uma hora e meia atrasado e, quando vi aquela multidão de artistas cercada pela imprensa, pelos políticos presentes e pelo edifício, clareou-se a ideia de uma armadilha constitucional. Uma coisa angustiante.

Todos nós sabemos o que seria uma armadilha constitucional, o processo do golpe parlamentar está aí, e se configura enquanto exemplo mais radical. Mas no que se refere à assinatura do TAC, podemos analisar o conceito a partir da “unilateridade”, caminho manjado no que tange as políticas culturais da Bahia. Asfixiar os artistas selecionados no Palácio do Rio Branco, um dos avatares que designa o processo colonial no Brasil, não é somente uma questão de ironia histórica, mas de fundamentar a política unilateral, afiançar que ela ainda persiste em seu processo devastador, e nessas questões, sabemos, o espaço é fundamental – front, política e arte se alimentam dessa condição: é um ataque estético.

Os agentes da cultura penam para chamar mais ao corpo, mais ao debate, os representantes políticos, a exemplo do governador, Rui Costa, e a Secretaria de Cultura, representada atualmente por Jorge Portugal. No que se refere ao secretário, boa parte dos encontros em que se reclamou o seu comparecimento, organizados, pois, pelos artistas, não tiveram a sua presença. No lugar de Portugal, por vezes, um educado comunicado que estaria com o governador. Um espaço onde um grupo de artistas se organizam para reclamar a um órgão público de cultura, se torna, talvez, insalubre para qualquer representante do órgão em questão. Se há a proposição de encontro por uma comunidade, geralmente, há a proposição de diálogo no corpo-a-corpo, como deve ser no que se refere à política, ou melhor; para continuar a investigação sobre o objeto e laboratório de pesquisa: a democracia.

A solenidade para a assinatura do TAC se tornou a sacada genial para emudecer um grupo em tempos de impeachment. Decidindo o espaço, as pessoas envolvidas e as condições, principalmente no que se refere à imprensa, se pega o artista selecionado pelo seu furor quanto a “aprovação” de seu projeto, se cria um sítio cada vez mais opressor, deixando muda qualquer possibilidade de manifestação – nessas horas dá vontade de ser um louco setentista. O acelero para abrir contas bancárias, em plena greve dos bancários, se torna um dado a mais que favorece o cerco. Pois se tudo é efêmero, a exultação tende a ser mais. No “convite” está lá, sua presença é imprescindível; assim mesmo, como única coisa grifada. Perguntando para um número de pessoas, era certo que somente tínhamos aquele dia para a assinatura – teve gente que veio de avião, pois estava em outro estado. Resumindo a estratégia:

Aproveitamos a assinatura do TAC e criamos uma solenidade no Rio Branco. Coloca música afro-baiana também, com uma pitada de bossa nova classe média. Bota o governador pra falar, o secretário de cultura pra falar, outras representações políticas nos rondando o tempo inteiro. Chamamos a imprensa – isso é imprescindível. Fazemos whisk and bowl! Pronto. Disparamos benfeitorias em menos de 10min e saímos pela tangente.

Tem que ser rápido. Mas não é só isso. É mister que se tenha, em prudência, “um representante da classe”. Neste caso, que assinará por todos, simbolicamente, o termo de acordo e compromisso. Está feito o evento-político-unilateral. Pensava que não dava mais para se angustiar até o momento de ver Fernando Júlia, ali, ao lado das “autoridades”, executando o ato simbólico. Ser político é coisa de gênio mesmo.

Todas as crises que abalaram o sistema democrático tiveram como epicentro a representatividade, seja para o bem, seja para o mal. Representatividade é a questão quando se fala em democracia e que abala a sua insistência em se classificar como sistema, tendo em vista o seu experimentalismo. Contudo, claro, o laboratório democracia possui seus pequenos métodos, seus pequenos sistemas. O problema brasileiro, com seu imenso arsenal bibliográfico de ciência política, é a dificuldade de investigar a nível prático. É necessário corpo quando se fala de democracia. Também é certo que sobra quem tenta fazer isso enquanto ser político e falta quem tenta fazer isso na função político. Se fala a todo momento que a crise no Brasil é econômica, se econômica fosse o imbróglio brasileiro seria, de maneira elementar, as questões de classe, inclusive em nível marxista. A coisa é ampla: classe, raça e gênero.

Espero que todo artista que tenha recebido o e-mail com o informe do Fundo de Cultura da Bahia (FCBA) sobre a solenidade, convocando para a assinatura do TAC de maneira categórica, tenha, no mínimo, desconfiado da proposição.

Inequívoco, quem propôs a solenidade do dia 03 de novembro sabe que a crise da democracia representativa perpassa essas três instâncias (é melhor deixar claro que todo mundo sabe disso). Para a assinatura simbólica, se tornaria imperativo que também fosse alguém do teatro, pois seus agentes, geralmente, são os que mais “abusam” a Secult-BA e seus órgãos vinculados.

Artisticamente ou através dos grupos de pressão[2], nós, pretos e mulheres, estamos nos organizando de maneira progressiva nos últimos anos e isso deve assustar. Logo, o medo deve afastar, por fim, os diálogos e debates em direção a uma participação popular mais efetiva (repetindo, DIÁLOGO, neste caso, com os agentes culturais e população, não conversa e política de balcão). Todo problema que venha a existir entre um órgão cultural público e um artista, no que se refere as questões de políticas culturais, deve virar pauta pública.

Uma figura como Fernanda Júlia, que, acima de tudo, assumi pautas ligadas às religiões de matriz africana em suas obras teatrais, estava calada e ao lado do homem que se tornou indiferente ao assassinato de 12 jovens negros no Cabula, com inclusão, que apoiou o ato dos policiais em um encontro histórico com os PMs que o aplaudiram fervorosamente. Se do lado de quem apoiou o cerco, a favor da via unilateral, há quem tenha a certeza de estar dialogando com o espaço democrático, para o outro o ato da assinatura simbólica confirmou toda a agressividade. Ver quem dirigiu a montagem Erê[3] (2015), do Bando de Teatro Olodum, endossando aquele cerco, foi como reviver a sensação de ser o 13º morto.

Todo artista negro corre sérios riscos de ser cooptado. Se lida com os temas relacionados às questões de raça e classe, a atenção é maior. Resistir a isso gera um grande esforço e atenção, posto que, apesar das inseguranças, ainda devemos manter nossas produções, lutando contra a inércia e a depressão. O risco é eminente em Salvador, muito pelo que acontece na esfera intermediária entre indivíduo e Estado, seja pelos grupos de pressão ou pelas produções artísticas e culturais, e, ainda, do que se vende sobre o que é ser negro.

A cooptação é sistêmica entre políticos, estratégia para atrair lideranças que, geralmente, ameaçam uma hegemonia. Assim se estabelecem as coligações e alianças – nada que uma deleção premiada não faça cair por terra. No momento que esta prática se estende para a sociedade civil, ou seja, atrair “possíveis cabeças” que se situam em outro front, a cooptação é mais rudimentar, embora psicanalítica. É objetivo atrair a “representação” tendo a intenção de produzir um tipo de ícone, logo, um exemplo reeducado. Por fim, se forma os reprodutores dos anseios das elites econômicas. Ou seja, reeducação socialdemocrata ala brasileira, sistema pedagógico requentado do americano. Resistir a isso, uma vez que se está enredado pelo ilusionismo, só se for um marighellista ferrenho e mesmo asssim não estaria a salvo da dor física, pois é consciência de corpo. Se o poder corrompe eu não sei, mas a cooptação é certeza, posto que há a quimera do poder.

Isso acontece, principalmente, através do entendimento, por parte dos governantes, dos anseios pela representação. Se há a reeducação de uma “representatividade” das camadas civis, possivelmente haverá um abalo sísmico severo. Sobre isto temos um exemplo paulista; quando a grande mídia elegeu os representantes das ocupações nas escolas públicas, o movimento foi minado de dentro. É necessário entender que representação é coisa de receptor, ou seja, é identificação que pode gerar potências interessantes. Querer oferecer, para não dizer forçar uma representatividade, é outra coisa, de certo nociva.

A solenidade e a assinatura simbólica como encerramento da seleção pública das setoriais artísticas 2016, não é a tentativa de cooptar, por meio da armadilha constitucional, uma pessoa. É importante que não haja pessoalização nesta análise. A agressão constitucional, que nos oferece uma anestesia, tenta cooptar uma classe, uma raça e um gênero dentro de uma comunidade artística usando de um estratagema inteligente. É necessário uma efetividade quanto ao diálogo e, por parte dos órgãos públicos e políticos, cessar com o receio do corpo-a-corpo.

Ser pego numa armadilha é uma condição, só basta saber se aceitamos o convite.

[1] Aristóteles em A Política.

[2] Organizações na esfera intermediária entre indivíduo e Estado.

[3] Montagem inspirada na também obra do Bando de Teatro Olodum, Erê Por Toda a Vida/Xirê, de 1996. A obra de 2015 denuncia o genocídio da juventude negra, trazendo a tona as chacinas ocorridas em território brasileiro como Candelária (RJ), Vigário Geral (RJ), Favela Naval (SP) e Cabula (SSA). A montagem teve concepção geral de Lázaro Ramos e direção de Fernanda Júlia.

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