Crítica | Cênicas


Foto de Elzinha Abreu

MANEQUIM

maio de 2017

Edição: 12


Crítica ao solo Isaura Suélen Tupiniquim Cruz

Isaura Suélen Tupiniquim Cruz é o solo de Isaura Tupiquim, que teve estreia no dia 26 de maio de 2017 no Teatro Gregório de Matos. Partindo da questão “Como ser guru de si mesma?”, Isaura faz um convite para que “tornemos móveis e múltiplos os olhares sobre o outro e sobre si”[1]. Tentando “friccionar e estilhaçar suas autorrepresentações”[2]. O que percebi é que dentre os inúmeros caminhos possíveis para a construção desse solo, Isaura escolheu nos mostrar dois, tornando possível comparar Isaura Suélen Tupiniquim Cruz com Isaura Suélen Tupiniquim Cruz.

No primeiro momento, com o palco ainda sem sua presença, encontramos um manequim com um amplificador na região do estômago que vibrava e aos poucos ganhava volume apresentando-se como Isaura, perguntando-nos do que tínhamos fome e colando faixas e faixas da mesma coisa até tornar-se caótico.

Então, no meio desses ajustes surge Isaura outra vez. Desta vez no corpo da performer Isaura Tupiniquim. Envolta num manto preto, usando um cocá e uma máscara. E, afirmando-se como plataforma do tempo, caminha lentamente na mesma atmosfera mântrica que havia sido iniciada em meio ao caos-Isaura-manequim.

Foi então que, me permitindo a adjetivação, vi[vi] uma cena muito impactante: em um espaço vazio e preto, com a luz em penumbra, usando como recurso um cinto, uma máscara e um top que serviam de suporte para lasers vermelhos, ficamos imersos em uma fenda espaço-temporal. Contemplando uma mulher que parecia explodir e se transformar em mil pedaços. Um corpo que parecia ser capaz de radiografar cada partícula que estivesse ali. Memórias que eram invocadas de algum ponto obscuro. Contemplando um céu estrelado de sangue. Um corpo que poderia ser o de qualquer um, naquele exato momento e ao mesmo tempo.

 

Ali, não havia Isaura, nem eu, nem o outro. Havia aquilo, cuja mensuração do tempo parece, ironicamente, perda de tempo.

E então do mesmo modo em que fomos atirados naquele espaço, somos trazidos de volta ao Teatro Gregório de Matos com pouco cenário e arquibancadas dispostas para a apresentação de um desfile. Trocando o efeito imersivo pelo tom de informalidade cuja forma nós, contemporâneos, conservamos.

Nesse segundo momento, em que comecei a ler coisas, mesmo com todas as tentativas de ressignificação, “as roupas eram pedaços de pessoas” desconhecidas, algumas das quais Isaura escolhia dar vida e outras apenas carregar de um lado e para o outro, como uma carga [in]cômoda de memórias e ancestrais. E ao contrário da primeira parte (caos-Isaura-manequim-mantra-Isaura-luz), todas as coisas eram apresentadas de maneira coloquial e apressada. Estávamos agora em um outro momento: um desfile (Isaura-manequim-contemporâneo).

Na medida em que as coisas retornavam aos seus devidos lugares e nomes, a plateia ia se sentindo confortável. Seus corpos mudam em seus assentos e o olho de Isaura convida-os para a conversa. Então, chega Temer, a América do sul, suor e sangue, e enquanto Isaura cumpre seu papel de se alinhar com o momento político atual, eu me pergunto: Se o objetivo era tornar múltiplo o meu olhar, por que está me dando um mapa? Você me deu, ou nos foi dado por uma linguagem que nos é familiar?

Durante o segundo momento, que estou chamando aqui de Isaura-manequim-contemporâneo, as tentativas de borrar os contornos identitários de Isaura Suélen Tupiniquim Cruz são feitas através das relações que vão se estabelecendo com as roupas, com o baterista e com o microfone. São muitas imagens, mas o desfile parece não ter relação alguma com a imersão inicial, fazendo com que aquela Isaura-caos-manequim-mantra-isaura-luz do primeiro momento parecesse parte de outra coisa. Mesmo que ela tenha sido tão potente no borramento de todas as limitações que havia naquele corpo-Gregório.

Um outro ponto, é que a partir do momento em

que somos apresentados a Isaura-caos-manequim-mantra-Isaura-luz nossas expectativas são ajustadas. Afinal, estávamos diante da introdução, da mestra de cerimônia. Mas o caos e a imprevisibilidade daquele acontecimento são ajustados, logo em seguida, a uma forma pré-determinada pelo Contemporâneo. Contradizendo as leis da física que dizem que o caos tende ao máximo. Poderíamos falar em clímax também: é como se ele tivesse sido apresentado no começo. E, mesmo que intencional, é importante lembrar que formalizar um corpo depois que este foi estilhaçado demanda muita energia…, mas não quero voltar para a física.

Perto do fim, Isaura come uma banana sentada ao lado do manequim que agora usa o cocar e todos os apetrechos futuristas, e nesse momento vislumbro o caos-Isaura-manequim-mantra-Isaura-luz outra vez. Ela se dava tempo, nos dava tempo. Cortava, mastigava e deglutia na beira de uma estrada, diante de um mundo em potência.

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[1] Texto de Isaura Tupiniquim no programa do solo.

[2] Idem

Rebate à crítica “Manequim” de Laís Machado

Por Isaura Tupiniquim

O solo Isaura Suélen Tupiniquim Cruz não parte exatamente da pergunta que nomeia o projeto “Como ser guru de si mesma?”, mas do desejo de criar dramaturgias a partir desses nomes que formam um nome, o qual ao longo da vida me pareceu chamar atenção das pessoas por imprimir ou sintetizar uma imagem de brasil colônia pop sincrética, tendo para isso três eixos de passagem que seriam a dança, o show e o desfile, como ambientes que pudessem ser movidos por modos distintos de existir num mesmo corpo e no espaço. O nome do projeto tinha muito mais a ver com o modo de operar no processo compositivo, ou seja, o que de mim é tantos outros e como fazer disso um saber sobre si, sendo um projeto de criação de solo com direção de Leonardo França e colaboração de Sheila Ribeiro.

E quando você diz que só escolhemos mostrar dois caminhos para construção do solo fazendo uma comparação de materialidades que não se diferenciam, nesse caso, meu nome e nome do trabalho, eu não entendo muito bem… Me parece que fomos coerentes com o que foi possível durante o processo onde a contradição da materialidade do nome e as autoficções interessavam mais do que os recortes autobiográficos, de modo que o que apresento são variações de mim a partir de um corpo, de um repertório dentro de recortes culturais, subjetivos, econômicos, temporais, etc, que estão ali, mesmo nas suas delimitações, agindo no campo dos possíveis, ou das possíveis Isauras, Suélens, Tupiniquins e Cruzes que aparecem como índia gueixa cyber, manequim modelo cantora de samba funk rock, do campo ou da cidade, engajada e fútil, densa e leve, precária e privilegiada, feminina masculina, marginal, diva, pop…

É importante lembrar que as parcerias feitas nesse trabalho, o constituem. Leonardo França, que é criador da obra junto comigo e tem papel fundamental desde as referências trazidas por ele, como ele mesmo como multi artista baiano como eu, instaurando os procedimentos para processo de criação. Sheila Ribeiro que colaborou durante o processo tem uma trajetória respeitável como artista e pesquisadora de dança, moda e antropologia comunicacional. Além dos parceiros Antenor Cardoso e João Meirelles, que pensaram a trilha, outros amigos que acompanharam mais de perto o processo me ajudaram a selecionar o que dessas auto representações seria mais explorado.

 

O desenho dramatúrgico em ISTC vinha sendo criado para finalizar com a roupa de laser, mas entendemos que outros momentos precisavam ser tão importantes quanto este em que o efeito é tão impressionável e artificial. Pra nós, ficou cada vez mais presente o desejo de terminar de modo menos místico e mais cru com um toque de samba que é essa coisa da tristeza alegre que nos deixa com um pouco mais de esperança. E acho que aí entra um outro recorte impossível de eliminar que é minha existência de América do Sul e Nordeste no momento em que se encontra o Brasil. Não tem como passar por cima disso, então pra mim, não quer dizer cumprir nada, mas manifestar mais uma vez o que está em mim como um mix de revolta, medo e esperança diante do eterno retorno do brasil colônia que é de onde eu falo.

A mudança de nuances e atmosferas do trabalho podem ter te dado à impressão de um momento de “informalidade” de um jeito recorrente na arte contemporânea, acho que essa pode ser sua leitura, mas isso realmente é o que menos nos interessa nesse trabalho, onde exploramos sem medo os excessos, as possibilidades da cena, do show, do desfile. Não houve durante o processo e também acho que não apareça na configuração nenhum desejo de imprimir uma ideia de neutralidade.

Bem, tem um momento do seu texto que pra mim é bastante difícil de compreender, porque não consigo me situar na obra a partir da sua descrição. É o momento em que você diz que começou a “ler coisas”, mas que as “roupas sempre pareciam pedaços de pessoas”. Sim, isso também me ocorre, principalmente quando elas saem do formato passarela do primeiro momento e ficam espalhadas pelo espaço caotizando o ambiente depois do meu giro com todas essas peças sobre a cabeça. Esse momento pra nós tem haver com memória, moda, morte, ritual e sim, aquelas roupas pelo chão podem ser pedaços de pessoas e de eus, um campo de guerra com estilhaços…

Nesse mesmo parágrafo você continua, numa perspectiva bastante apressada, afirmando que carrego roupas de um lado para o outro dando vida a algumas e outras não. Não sei se te acompanho, mas imagino que esse seja o momento após o giro em que componho a Suélen. E esse é o único momento onde brinco de colocar e tirar peças de roupa e com mais velocidade justamente para criar as variações dramatúrgicas necessárias ao trabalho criando por vezes alguns estranhamentos transitórios até configurar a Suélen Cyber Nikin Cruz.

E aí, respondendo um pouco as suas perguntas… Acredito que uma obra, qualquer que seja, já é um mapa em si, uma cadeira já é um mapa que lhe dá forma, materialidade, memória, função etc. Então, criar algo que proponha ao outro um olhar múltiplo diante do que ele vê é solicitar uma generosidade do olhar do outro para multiplicar ainda mais as variações criadas pela obra com a imaginação e os referenciais de cada um sobre a coisa. Assim cada imagem das diversas Isauras Suélen Tupiniquins Cruzes que surge pode variar com os contextos, mas partindo, como tudo na vida, de algumas restrições a começar pelo meu corpo, a direção, o espaço, o tempo, o momento histórico… E penso que nesse trabalho a linguagem seja bastante familiar mesmo, mas prefiro não buscar a origem das coisas.

Quando você diz que “as tentativas de borrar os contornos identitários” são feitas pelas trocas de roupas, etc, você esquece de avaliar a coisa mais importante pra mim ali que é a corporalidade, as sutis mudanças criadas no modo de se mover, de se relacionar com as trocas, de friccionar a modelo com o mano, o meu corpo orgânico e inorgânico, o curto-circuito de personas que associo como movimento no diálogo com bateria no desfile da roupa azul, por exemplo. Ou quando me sento para comer banana e o modo como imprimo um jeito de me curvar de sentar de mastigar de olhar… O modo como eu canto e as escolhas das músicas…

E nesse trabalho, como já disse antes, não há problema em a imagem inicial não ter nada a ver com a seguinte ou com o fim, a coerência como lei só nos interessa se conseguirmos reforçar as contradições como lei que se expressam no meu nome, no seu nome e no que constitui esses brasis.

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