Crítica da Crítica | Cênicas


Relutei, comigo mesma, em escrever sobre o texto Fissura por Fissura: Sobre Maçã – Um Acontecimento Cênico, de Diego Pinheiro, e me senti também grata pelo convite de colocar a cara-no-sol, não na condição de crítica da crítica, mas na minha intenção de destrinchar um pouco os ruídos que surgiram entre rebates na revista e nas mesas de bar. Poucas faíscas de diálogo. Ruídos e reverberações estranhas. O autor se propôs a ser sucinto no seu posicionamento sobre o acontecimento e a Maçã, haja vista a extensão de volumes escritos sobre a noção de “acontecimento”, que tratam exaustivamente sobre o assunto. Sobre Maçã, foram mais de duas horas de peça, pelo menos no dia que eu fui. Diego foi categórico quando não reconheceu Maçã como um acontecimento. Eu serei mais breve, talvez irmanada à condição de “academicista” por falar sobre uma peça que tensionou um tanto minha lombar.

 Nos primeiros 5 minutos de peça, já não pude negar o eco de uma questão que me motivou a assisti-la. Mais tarde, ao ler a crítica – as indicações das músicas de P.S. no começo do rebate (pegadinha acadêmica ,haah!) enfim os 4 rebates e mais um P.S., só pra garantir que nós, os acadêmicos, insensíveis a esse lugar de acontecimento, tivéssemos acesso a uma centelha de redenção pelo Pathos – dou vazão a essa investigação: A tensão de assegurar um “acontecimento” foi criada pelo título Maçã, pela espectadora1, pela crítica, ou pelo rebate? A expectativa de ir a um evento que se diz “acontecimento”  já ganha uma proporção que é furtiva à minha vontade. Quando um espetáculo se intitula em outro território, denomina-se fora de uma estrutura conhecida das “cenas bahianas”, já nos colocamos mais ainda à espreita do outro lugar, outro território. Quando falo outro território é elA a estética. Procurei lugares nessa nova estrutura que davam vazão a o acontecimento. O que se dizia já era politizado, já era o que tinha de ser dito. Entregue e vomitado e escarrado e esticado por várias vezes, o mesmo discurso em espiral, das escolhas, da criação do pecado, do matriarcado. O que faltou foi espaço pra mim e para esse outro lugar. Quando coloco a falta de lugar, leia-se não falta de representatividade, mas de espaço para o acontecimento. A representatividade também pode ser usada como o entre, a fuga para um acontecimento arrebatador, se na palavra já não estiver implícito esse adjetivo, mas para o lugar que subverte inclusive a lógica da representatividade.

Continuando a curta investigação, pela sequência lógica, chegamos ao ponto do embate: que diabos é acontecimento para esta que escreve e para o grupo Coato? Por que o título causou mais polêmica do que o evento todo?  Por que ainda damos esse tom de afronta pessoal em questões tão impessoais quanto uma simples análise de discurso? Existe essa separação na nossa prática?

N1 No caso “maçã” me coloquei neste lugar, porque era o único. Não acredito que o público que foi ver Maçã é parte separada do acontecimento, mas espacialmente fomos limitados a esse lugar por um bom tempo do evento.

É inegável o fato de a Maçã ter acontecido para muita gente. E ser “acontecimento” no sentido de “evento” é também uma possibilidade, a exemplo dos Jogos Olímpicos que são realizados a cada quatro anos, e que este ano acontecerá no Brasil. Fiquei pensando por muitos dias se não estaria sendo leviana e um tanto pretensiosa em escrever sobre acontecimento e expectativas, querer publicar e ainda me fazer entendida. Mas, afora os caráteres, essas questões simples que levanto podem definir meu mal estar, que vem da linguagem e do seu poder. Quando li o rebate, automaticamente comecei a escrever as coisas que senti, foi uma escrita “impressionista”, não objetiva como esta. Recebi o rebate atravessado por Diego e me vi no lugar da Torre de Babel desmoronada, seguindo a Gênesis da Maçã.

​O discurso como poder e como legitimador também pesa não só no nosso convívio como cidadãs (xs, os) mortais e com medo, mas nas nossas práticas artísticas. Talvez esse seja um papel repulsivo: o de desvelar por onde queremos ser legitimados e quebrar essas estruturas legitimadoras ou, pelo menos, estabelecer  uma relação direta com esse furacão de mecanismos compulsórios que estão aí, os moinhos de vento (isso é ainda mais angustiante quando é o outro que o faz, não é, Águeda?).

A estrutura era a mesma de cânones do teatro pós dramáticO. Não houve subversão deles, nem pelos corpos nus, nem pela discursa, e não se comete nenhum crime por isso. O que me incomodou realmente no rebate foi a falta de diálogo com a crítica, como se a crítica quisesse diminuir o trabalho do grupo, sendo O detentOr acadêmicO do que pode ou não ser AcontecimentO. O espaço de representatividade foi criado em cima dos cânones. É nisso que acredito que não há espaço para o acontecimento, acontecimento como algo esteticamente fresco, imprevisível. Não identifico o acontecimento na estrutura cênica dada. Atento mais para a versão legitimadora da palavra, do que para a apropriação e subversão do termo.

Subverter um signo sem se propor a dialogar com ele é tentar subverter a esfinge antes de encontrá-la.

Fazendo uma última análise da necessidade do termo, lembro dos brincantes do Cavalo Marinho e de algumas manifestações de cultura popular de Pernambuco, que ganham um caráter acadêmico pelas nomenclaturas do fenômeno. Lembro da falta de pretensão de alguns brincantes amigos meus, em não querer que essa manifestação seja identificada como dança, esporte ou ainda acontecimento. Eles se intitulam brincantes e isso basta. Quando os academicistas vão estudar esses fenômenos geralmente seguem com um roteiro de comparação pronta para estudar as formas que já existem e identificam no saber popular outros formatos. Alguns acreditam até que estão dando um prestígio ao evento, como se fosse uma honra receber méritos dos doutores das outras linguagens. Esse modelo de estudo não é nenhuma novidade para nós; embora seja um modelo já combatido pelos próprios orientadores na academia, ainda não é a exceção. Entretanto, aqui, estamos falando de pessoas que têm a formação acadêmica no mesmo lugar e que partem das mesmas vertentes da linguagem artística. Apesar de divergentes, não podemos nos distanciar desse campo de saber nesse embate. A separação pela palavra “academicista” também soa legitimadora, para quem o diz, de um lugar não aprisionado pelos métodos dados, um lugar subversivo. Na porosidade estética contemporânea temos os deslizes clássicos de querer demarcar um outro lugar, sem considerar alguns terrenos postos. Subverter um signo sem se propor a dialogar com ele é tentar subverter a esfinge antes de encontrá-la.

Não falo de um lugar  separado desses contextos todos. Também sou artista nessa areia movediça, o que é tão maçante quanto um afogamento, urgente, revelador das potências e modificador dos estados que não representam nada para além do  próprio  empuxo, no último ato.

As escolhas estão aí, observáveis nas nossas práticas. A noção da escolha também vem de lugares que pensam que temos todo o controle do universo, do exato controle de causa e consequência de todos os atos ou da maioria deles, coisa que também desconfio, mas isso fica para uma próxima, se houver. Desejo que esses desdobramentos da revista ganhem força, além do fôlego que já tem e promovam debates presenciais sobre o teatro de agora. Grata pela iniciativa que libera os pensamentos tão orgânicos quanto os rizomas – palavra bem show da xuxa ultimamente, mas necessária para redimensionar as idéias – para os botânicos.

P.S.: A imagem que tenho na cabeça do espetáculo Maçã é justamente essa da divulgação na crítica de Diego, tirada por Talitinha Andrade, do rosto de Roberta Nascimento. Foi um símbolo bem forte pra todas nós, com certeza. Não sei se alguém que viu Maçã não soube dos acontecimentos fora da exposição, mas reiterou a força da discursa, nos lembrando que se o discuso é persistente a força opressora existe densamente , é institucionalizada, enraizada na cultura e mata.

P.S.: adoro Elis.

P.S.: Esse deveria vir antes do texto, mas não resisto à regra acadêmica de hoje.

FORA TEMER!

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