Crítica da Crítica | Cênicas


LÁPIDES, PRAÇAS E TEATROS

junho de 2016

Edição: 5


Crítica a partir da crítica de Eduarda Uzêda sobre “Egotrip —Ser ou não ser, eis a comédia”, publicada no Jornal A Tarde, dia 13 de Julho de 2016.

Eu realmente fico na dúvida sobre os textos mais recentes de Eduarda Uzêda. Na maioria das vezes, topo com resenhas mais ou menos detalhadas, acompanhadas de entrevistas e fotos, mas em outras, encontro com algum híbrido de crítica, elogio e resmungo, que mais parecem comentários brotados de algum chá das cinco organizado pela redação. “Fulano é ótimo, mas Beltrano…” Quando um ouvido atento escuta isso, mais do que procurar saber quem é Fulano ou Beltrano, deve antes buscar o significado dessa palavra: ótimo. Afinal, o que faz uma coisa ser ótima?

De acordo com Uzêda, ótimo pode ser: leve, divertido, relaxado, bem humorado, bem amarrado, insano, lúdico, inteligente, engraçado, versátil, bom, sintonizado, afiado, brilhante, seguro, vivaz. Toda essa fauna de adjetivos foi copiada de sua mais recente crítica, sobre o espetáculo Egotrip. Tais palavras poderiam descrever bastante bem as qualidades de Carlinhos, brilhante neto de uma daquelas senhoras do chá das cinco. Mas tratando-se de arte, como aplicá-las?

Não interessa. Pois entre os artistas teatrais soteropolitanos, ainda há o seguinte costume: basta que saia um texto em algum jornal, que se tire uma foto e se publique na timeline, e pronto: o trabalho crítico é considerado feito. O fato é que há muitos anos Salvador não tem uma crítica condizente com a enorme produtividade do campo. E, a despeito dos resmungos habituais, o campo tem produzido muito. Agora, se a maioria é ótima ou não, são outros quinhentos, e, honestamente, essa questão não me interessa.

De alguma forma, os artistas se acostumaram a ter essa personagem como figura central da divulgação teatral, e parecem viver bem com isso. Aceitam a condição de ter seus trabalhos retratados por Uzêda assim como alguém deve suportar certas manias de parentes queridos. Muitas vezes, até eu. É necessário reconhecer: com a escassa circulação de materiais sobre arte nesta cidade, como não usar o mínimo que nos dão?

Mas se a função da crítica deveria ser pensar e criar junto, como aceitar, sendo simultaneamente crítico e criador, que um dia seu trabalho possa ser traduzido assim: “João [Sanches], no texto, também toca na angústia da passagem do tempo e dos imbróglios amorosos através da relação do personagem Rafael e sua noiva Isabel. E se debruça sobre imaginário rural. Mas tudo de maneira engraçada, o que não significa que não promova reflexão.”

Tudo bem que a “angústia da passagem do tempo” seja uma aproximação, bastante forçada aliás, com um existencialismo que, no espetáculo, está longe de ser constatado. Tudo bem que os “imbróglios amorosos” deem ao texto cores que só as ótimascomédias de Shakespeare possuem; mas o que dizer desse surto bucólico que “se debruça sobre imaginário rural”?

Fico confuso. Quem é que imagina esse imaginário rural? A crítica, o espectador, o “homem do campo”, ou os realizadores da peça? Porque se formos opor a visão de um habitante interiorano com a dos realizadores, encontraremos vários problemas. Afinal, boa parte das cidades baianas do interior é altamente urbanizada. E mesmo a comunidade fictícia dos Laraiás, retratada pela crítica como “louca e nada convencional”, fugiria a esse ideal, por ser de uma surrealidade tão grande quanto é surreal caracterizar um velório interiorano como “cena de um filme de terror”. Bom esclarecer, esta última fala não é de Uzêda, e sim de um dos personagens de Egotrip.

Mas o problema maior vem ao final da citação. De acordo com a crítica, há uma essencial oposição entre diversão e reflexão, constatação que faz o cadáver de Brecht retorcer-se na cova. Quando ela diz que, além de ser engraçada, a peça promove reflexão, separa claramente as duas instâncias. Diz que Egotrip constitui uma exceção frente a uma norma imaginária, que seria: se eu dou risada, não posso refletir. Nem preciso continuar para que todos saibam que isso sim é uma piada.

Por outro lado, eu mesmo pude refletir bastante, quando o personagem Galego diz para o personagem “gay coxinha”(é assim que a peça o adjetiva): “Se eu fosse homofóbico, te daria umas três porradas”, ao que o outro responde, visivelmente excitado: “Bate, bate!”. Esse diálogo, falado assim, em pleno Rio Vermelho, numa semana em que ainda ressoava no ar a morte brutal de um homem gay nas ruas do bairro, me causou um constrangimento tão grande que não me permitiu o riso, apesar da cena orientar para esse lado. Então, de certa maneira, posso concordar com Uzêda: nesse caso, riso e reflexão estavam sim, separados.

Mas não sejamos tão duros. Reconheçamos o lugar específico de onde brota o discurso da única crítica em todos os jornais impressos de Salvador. Eduarda Uzêda acompanhou um período em que o Teatro Baiano (assim mesmo, em maiúsculas) vivia uma grande produtividade. E se a produção se delineia sobre um campo político e ideológico, é claro que daí também resultará uma crítica que faça jus a tais configurações. O Carlinhos citado no começo do texto não é despropositado. Com ele tratamos também da dinastia Magalhães.

Um dia me deparei, no cemitério do Campo Santo, com o túmulo do avô Antônio Carlos, e me arrepiei quando vi que os mármores que recobriam sua lápide eram os mesmos que recobrem as  novas praças de Salvador. Então entendi: o carlismo, além de ser hegemonia política, é antes de tudo uma proposta estética. Temos produções eurocêntricas, produções amadoras, produções negras, produções feministas, produções infantis e por aí vai, assim como temos, irremediavelmente, produções carlistas. E para isso não é necessário apoiar este ou aquele partido, levantar tal ou qual bandeira. Basta que se reproduzam certos artifícios.

A famosa política de balcão ainda respira por estas bandas; é o nosso ovo da serpente, propenso a eclodir ao mínimo fraquejar das políticas culturais. Necessário tomar muito cuidado, afinal, são tempos progressivamente sombrios. Como alguns sabem, a política de balcão caracteriza-se por uma extrema cordialidade entre homens públicos. Num escritório, a portas fechadas, pode-se decidir quem deve e quem não deve ser patrocinado, quem deve e quem não deve ter seus méritos de artista reconhecidos. Uma fachada de intimidade entre gestor e artista pode esconder grandes abominações, evidentemente ideológicas.

Por isso o uso excessivo dos adjetivos. Bom, divertido, leve, chato; todas essas palavras poderiam ser usadas como descrição de uma pessoa qualquer. O mundo da intimidade é realmente propenso a generalizações, de forma que se há um grande diretor, por exemplo, é provável que por trás dessa grandeza haja uma série de pequenos contatos privilegiados e contrabandos de informação.

Ora, se os mármores da lápide do avô reaparecem no urbanismo do neto, quer dizer que as adjetivações de balcão reaparecerão em certos estilos de encenação e escrita. Uzêda, conscientemente ou não, faz ressoar, na sua crítica, a possibilidade da volta de um Teatro Baiano já bastante reconhecido como estilo (basta perguntar “lá fora”). Nos seus textos, os elogios a tal poética não são poucos, e mesmo que justificados, deixam transparecer um proselitismo subliminar.

Quando fraquejam os recursos públicos para a arte, começam a despontar produções que precisarão inflamar o mercado, a circulação de trabalho e capital, e sabemos, infelizmente, qual a parcela da sociedade que pode despender 50 reais para ver uma peça qualquer. De repente, atores e diretores são abduzidos por essa forma de trabalho, justificando-se sob o discurso do “leve”e do “divertido”, quando essa leveza, na verdade, é construída e sustentada por uma pesada máquina sociocultural, reprodutora de imensos equívocos.

A classe média endinheirada, a família tradicional e os bons costumes vicejam novamente, refluem pouco a pouco sobre todas as áreas, encontrando zonas de fuga e acomodação discursiva. E é lógico que se não há dinheiro circulando entre grupos e coletivos de investigação, propostas inovadoras e discursos diferenciais, a maneira mais fácil de engajar capital, fazê-lo circular, será pisar e repisar aqueles velhos dispositivos estéticos, aquelas piadas e aqueles adjetivos que todos sabemos bem, fazem uma maioria rir ou chorar, mesmo que não se queira, pois, afinal de contas, a hegemonia é uma cobra parideira, sempre pronta a dar o bote.

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