Geral


LAÍS MACHADO E MÔNICA SANTANA

março de 2016

Edição: 1


LAÍS MACHADO – Bem, para começar, de que maneira você gosta de se apresentar?

MÔNICA SANTANA – Menina, nunca pensei sobre isso. Eu posso dizer que eu tenho três profissões. Tem o teatro. Tenho experiência da atriz, da crítica, dessa atriz que escreve. Eu sou comunicadora-educadora, ligada aos direitos humanos. E tem a Mônica assessora de imprensa. Que não aparece, né? Que precisa que os outros apareçam. Tenho esses três lugares e acho que me apresento sempre me adequando a essas três posições.

Na verdade, é engraçado que como educadora você faz com que aquele com o qual está fazendo atividade, com quem você está lidando, que ele apareça. E como assessora também, com o assessorado. Nesses últimos tempos que o trabalho Isto Não é Uma Mulata teve mais visibilidade, é que eu tenho aparecido mais e preciso ficar dando as credenciais. É meio esquisito também (risos), porque você tem que ficar falando o que você faz. No fim das contas, a gente é pelo que a gente faz.

LM. Aquela pergunta básica, que eu já vi você respondendo várias vezes, mas vou seguir o protocolo. Sobre Isto Não é Uma Mulata: como o projeto começou, o que te motivou e que caminho tomou?

MS. Bem, começou quando eu estava lá pelo mestrado e uma amiga me convidou para participar de um congresso de pesquisadores negros. Eu estava pesquisando sobre Clarice Lispector, né? Então eu construí um solo a partir e em diálogo com a obra de Clarice Lispector. Esse trânsito de perceber o corpo e o prazer dentro de Clarice Lispector, e isso na cena. Depois desse convite, eu comecei a perceber que aquela personagem era uma mulher burguesa. Aquela personagem daquele livro era uma mulher branca.

LM. Qual livro?

MS. A Aprendizagem ou o livro dos prazeres. Uma mulher branca burguesa de um período x no tempo, que tinha um empoderamento, uma tomada de posse do corpo. Mas eu comecei a me perguntar como é que seria isso com uma mulher negra. Não foi isso que eu coloquei no solo. Não sei se você assistiu, mas minha voz tá ali. Não tem como descolar minha voz ali. Mas algumas circunstancias daquela personagem, não são minhas circunstancias. E ir para esse congresso me colocou numa crise de pensar sobre isso. E aí eu comecei a ler coisas. Porque até então eu não tinha muitas leituras sobre questões raciais. Embora no trabalho como educadora esses temas perpassassem, mas de fato eu não tinha essas leituras. E aquela experiência de ir para esse congresso, de apresentar lá, de ver os outros trabalhos que estavam sendo apresentados ali me fizeram pensar e começar a sentir necessidade de falar algo a respeito.

Por exemplo, teve um dia em que eu coloquei uma questão: eu estava numa festa com duas amigas brancas que eram super assediadas, e nesse dia eu tinha plena consciência de que eu estava ótima. Que eu estava bonita e ninguém chegava em mim. E eu sempre convivi com essa pira. Mas nesse dia eu pensei: não, eu estou me sentindo ótima (porque sempre tem aquela coisa de como é que você está se sentindo, sua autoestima como é que está). E eu lembro que eu escrevi um texto muito ingênuo, mas também muito raivoso a partir dessa percepção. Como é o olhar nessas circunstancia da paquera, dos encontros, sendo uma mulher negra. E foi engraçado porque todas as minhas amigas brancas que leram disseram…”não …nada a ver”, e as minhas amigas negras se reconheceram. E aí eu senti que tinha uma necessidade de falar, mas ainda sem saber direito como. E aí eu li um texto sobre o curso de formação de mulatas. Um curso para mulheres aprenderem a serem mulatas. E as meninas muito satisfeitas com isso. Isso dentro do Sesc Senac do Rio de Janeiro. Tem um conteúdo programático, as meninas fazem seleção. E eu fiquei…porra! O que é isso? Enfim, eu comecei a perceber que eu tinha um campo. E comecei a ler. E aí eu senti cada vez mais necessidade de falar. E eu já vinha me tornando uma pessoa monotemática.

Aí em 2015 eu vi que eu realmente precisava fazer, e foi um processo onde essa necessidade de falar saiu por vários poros. Nos desenhos (eu já vinha desenhando essas coisas), na escrita, só faltava botar na cena. No corpo. Na cena. 

LM. Eu até comentei isso com você quando eu fui assistir. Como eu vivi também esse processo (na adolescência principalmente) você percebe que só cabe para você a violência. Aquele assédio violento. Não o da paquera, do afeto.

MS. É, fica muito no grosseiro ou no exótico. E o engraçado é que o projeto foi ficando mais político do que eu imaginava que fosse ficar. Porque as questões de saída eram sim as questões afetivas. Talvez eu realmente tenha dificuldade de falar dessas coisas, de colocá-las em cena. Eu queria falar de duas coisas: a loucura e a afetividade. E acabou que estão lá. Não como uma cena sobre, mas estão lá.

Do afetivo eu comecei a lembrar de coisas que no momento eu até ficava confortável, mas que hoje eu não sei se suportaria.  De você estar ficando com um cara branco que nunca ficou com uma mulher negra. Eu acho que eu nunca ficaria com um cara branco agora… não é por nada, mas uma das coisas em que acredito hoje é que o amor é um ato político. Os afetos são atos políticos. O que desperta o interesse no outro são atos políticos. Então hoje eu não conseguiria manter uma relação estável com um homem branco. Eu era menos irritadiça que hoje, hoje não suportaria “porra…sua cor…”. Pensaria logo: Porra! Estou “exotizada”.

E eu acho que eu já vivi essas situações de “exotização”, que num dado momento quando você está construindo uma autoestima, depois de tê-la negada, você não suporta mais. E nessas situações da “exotização”, quando você não está entre pessoas negras, as pessoas não entendem e até acham massa. Quando eu fui à Argentina, que é um lugar onde não tem negros, as pessoas ficavam loucas porque estavam vendo uma mulher negra. Eles gritavam. Não era o jeito aqui da Bahia. Gritavam mesmo. Eu sofria um tipo de assédio que me incomodava. E eu estava com duas amigas brancas (aquela branca baiana) e as meninas achavam ótimo. Só que eu me senti “exotizada”. Um bichinho no zoológico. E isso não era legal.

LM. Esse era um assunto que eu queria tocar com você. Sobre a imagem da mulher negra lá fora. O que você percebe disso?

MS. Eu fui três vezes para fora do País. Na Argentina foi o mais gritante. E lá eu vivi isso de andar e as pessoas gritarem. Tinha acabado de passar Chica da Silva e eles gritavam “Chica da Silva!”. Vivi situações de o garçom querer me beijar. Quando fui a Paris, que é uma cidade negra, apesar de não se vender essa imagem, eu percebi uma coisa: um descolamento. A gente vive a imagem da Bahia-África, mas é uma África mítica. Não é a experiência de agora. A gente viveu uma experiência diaspórica e essa experiência da saudade. Mas não se tem o reconhecimento quando você está diante de africanos. A gente realmente é mestiça. Às vezes tinha uma semelhança entre o olhar do branco e do africano, porque a gente é outra coisa. Pelo menos essa foi a minha experiência. E da última vez que eu fui (Paris), eu fiquei hospedada num lugar e a pessoa extremamente gentil, e a pessoa me contou uma conversa onde perguntaram a ela quantos homens eu tinha levado para lá. Essa fala me incomodou muito. Com isso eu não quero dizer que me sinto ofendida com os “muitos homens”, mas pela conotação que isso tem. Não era empoderamento sexual. Se eu fosse uma jovem alemã, talvez isso não fosse uma questão, embora, talvez, ela tivesse um empoderamento para levar os boys lá.

LM. E a partir de suas referências, ao que você acha que se deve essa visão da brasileira lá fora? E vc acha que é possível mudar isso?

MS. Olha, eu estou estudando muito pro meu doutorado…

LM. Seu doutorado vai ser mais ligado a essa temática?

MS. Sim. Estou mais interessada em seguir estudando identidade. Em princípio eu não tentei artes cênicas, porque eu acho que as nossas discussões em artes cênicas são ainda muito “eurocentradas” e sem problematizar isso. Embora tenha a etnocenologia, que tem esse papel de deslocar um pouco as coisas, a gente não pensa o teatro grego, o europeu como etnocenológico, porque também são.  Se vendeu essa imagem de teatro universal e não se questiona.

Então eu acho que eu teria mais pares de leitura em Cultura e Sociedade. E de fato eu estou mais preocupada em como é que grupos minoritários criam processos discursivos e se reinventam na contramão daquilo que foi inventado pelo outro para eles.

Eu acredito sim que daqui a um tempo a gente possa reverter esses processos. E que a gente está num momento de reversão de discurso. Ainda a duras penas, mulheres negras estão podendo falar sobre si. Tecer discursos sobre si. Sobre aquilo que elas acham que são. Ou positivar o que querem positivar e negar aquilo que acreditam que devam negar. Desconstruindo os estereótipos.

Stuart Hall, que tem me influenciado bastante (e o pensamento dele influenciou muito o trabalho), problematiza como que a gente consegue, na afirmação positiva de ser negro, de ser uma mulher negra. Como que a gente consegue não nos essencializar. Como é que a gente consegue implodir o pensamento binário, não o reforçar. Sem cair na armadilha de ser negro é essencialmente isso ou aquilo. Ser uma mulher negra é isso ou aquilo. Esse ‘essencializar’ é cair num fechamento sobre a gente. É negar a pluralidade que somos.

LM. Até porque se você parar para pensar, falar o povo negro é uma redução dos povos africanos que foram trazidos para cá. Que tinham habilidades e prioridades, línguas, histórias, muito distintas. É a velha história de se pensar um continente inteiro como se fosse um País como se faz com o continente Africano. Afirmar uma essência não deixa de ser uma maneira de reduzir.

MS. Pois é. É um dever. Ainda não sei como fazer isso, mas deve-se buscar romper essa lógica. Como é que a gente consegue construir relações menos binárias?

Eu acho que a gente está trabalhando por isso, e talvez por isso esses discursos fascistas que tem ganhado tanta força, estejam tão presentes agora. Porque não se dá conta de lidar com um mundo tão multicultural que está se expressando e rasgando essas estruturas. E é uma questão mundial. Já foi essa história de pureza. Vocês queriam uma globalização? Chegou. Lide com isso.

E uma outra coisa que eu acho, que tem a ver com as leituras, que vão trazendo fichas que vão caindo. Hall traz o pensamento de entender a raça e o racismo como categorias discursivas e não problemas biológicos. Isso já caiu por terra. Essa ciência que buscava explicar comportamentos a partir de aspectos biológicos. Mas como é que isso é reformulado na linguagem? Porque o racismo é linguagem.

Não acho que será a curto prazo. Mas sou otimista.

A gente vive uma violência no Brasil muito bizarra. A gente sempre viveu a lógica da nossa carne valer muito pouco. A gente vive um contexto de guerra velado. Mas não tem mais como calar essa voz. E por isso incomoda tanto. Essa discussão do politicamente correto.

Racismo e machismo são questões de linguagem e nós, artistas, temos que entender isso. A gente sabe que pela palavra a gente performa o mundo. A gente fere, acaricia, constrói, a gente faz. Não pode achar que você pode falar qualquer coisa e que tá de boa. Um artista não pode estar falando esse tipo de coisa.

LM. Voltando para Isto Não é Uma Mulata, como foi para você a indicação ao Braskem na Categoria Revelação?

MS.Olha. A gente ia fazer 6 apresentações, então, Raíça Bonfim (produtora da Gameleira Artes Integradas – responsável pela produção de Isto Não é Uma Mulata) lançou a questão: “Se a gente fizer seis a gente não concorre, vamos fazer mais duas?”. Mas eu pensei: gente, esse trabalho não é pra Braskem. Eu não estou inferiorizando meu trabalho, não. Acho que ele tem muita potência, mas eu entendo que essa zona em que eu estou, que vai de uma dramaturgia causal, que não é de um trabalho de construção de personagens, que não é de um determinado lugar de teatro que eu acho que uma premiação dessa natureza está mais disposta a considerar. E Olga Lamas e Raiça Bonfim (Gameleira Artes Integradas) disseram “Gata, vamos lá. E acho que tem uma potência sim. Entra num catalogo da cena do ano”. Enfim…achei potente. Nunca achei, por causa dessas coisas que eu já pontuei, que fosse um trabalho que a curadoria consideraria. Quando a indicação chegou eu tomei como surpresa.

Mas também achei engraçado estar na categoria revelação. Eu não acho que eu seja conhecida como atriz, mas eu já fiz algumas coisas. Fiz parte de grupos que são importantes como o Grupo Vilavox, por exemplo. Mas também acho que eu não caberia na categoria melhor atriz. Pela estética do que eu estou produzindo. E ao mesmo tempo, eu estou num trabalho que é absolutamente autoral, embora tenha uma equipe que cria comigo. Eu não sou só atriz do projeto. O lugar que me coube foi aquele.

LM. E o que você acha dessa categoria revelação? Porque, para mim, muitas vezes parece que se coloca ali o que não conseguiram enquadrar em nenhuma outra categoria.

MS. Acho que é isso mesmo. No meu caso e no de Raíça Bomfim, que foi uma pessoa decisiva nesse projeto, e está no cenário a muito tempo, já foi indicada com o grupo e está concorrendo em revelação com o solo Ofélia.

Eu acho que a gente tem hoje tem alguns problemas. Acho que é um problema da lógica de premiação, que já não dá conta da estrutura de produção artística. Como a polêmica que rolou no Oscar. Algumas coisas não cabem mais. E ali está uma pauta do racismo que nem chega aqui ainda, nas nossas premiações brasileiras.

Nesse ano até que tem um Braskem com a cara da produção da cidade. Mas acho que tem um problema como as premiações conseguem dar conta desse teatro que já não é mais aquela lógica. Esse teatro que já está a muito tempo deslocado. Com outras questões e tal.

Acho que mais problemático ainda é a categoria especial. Ela é muito louca. Porque qual é a lógica? Você não tem base de comparação. Tinha que ter uma categoria que desse conta da produção. Como vai avaliar qual é o trabalho mais potente? O de um iluminador ou uma produção? Que critério é usado? Eu acho que você pode avaliar entre iguais. E por que falo da produção em especifico?  Porque a gente esquece do quão difícil é fazer produção. Criar condições para fazer o espetáculo. Que é decisivo para o processo artístico e a gente tira isso da arte. Fico bem feliz porque uma produção foi considerada. Fernanda bezerra com a produção de Sade. Mas como você vai avaliar o trabalho dela com os outros? Cara, você tem um espetáculo inteiro na categoria especial (Ruína dos anjos). Como eu vou comparar o espetáculo com o trabalho de Rino Carvalho? Não é diminuindo nenhum dos trabalhos, mas são muito diferentes.

Mas a gente está numa cidade que tem um prêmio. E aí a gente fica cobrando desse prêmio que ele dê resposta a tudo. E ele não vai dar. Então, classe artística, se movimente e crie seu prêmio. Que pode não ter grana, mas pode ter visibilidade, notoriedade, reconhecimento para o trabalho das pessoas. Acho que a gente precisa, cada vez mais, sair desse lugar de ficar reclamando. É preciso criar outros prêmios. Acho que a classe já poderia ter essa maturidade para estar gerando isso.

LM. Como foram os públicos de Isto Não é uma Mulata?  

MS. Bem…. Eu estou bem feliz. Eu fico até estranhando, mas os retornos que chegaram foram muito positivos. Não que o trabalho não tenha questões, mas o retorno tem sido muito feliz. Se eu pudesse eu nunca mais fazia sem debate. Porque você tem dimensão do efeito, como é que, de imediato, aquilo chega.

Isso que eu falei da loucura, que eu queria ter colocado…. em Alagados tinha um grupo de mulheres que estavam acompanhadas de uma psicóloga. É um grupo que foca no atendimento a mulheres negras, que foca em problematizar as neuroses geradas pelo racismo. E eu queria colocar isso na minha cena. Porque faz parte da minha história familiar. E a leitura de Frantz Fanon, que foi um psicanalista que pensou e colocou em questão como é que a psicanalise não dá conta de falar das neuroses causadas pelo racismo e das doenças que a diáspora gerou. E eu ficava pensando nele, nas minhas questões e queria muito colocar isso em cena, mas achava que eu não tinha conseguido. Mas está lá, e essa mulher falou sobre como isso aparece na cena, como é importante falar disso e o que é essa loucura que adoece milhares de mulheres e homens negros. E foi muito valoroso ouvir isso. Me emocionei muito quando ela trouxe isso. E esses debates de fato… cada elemento que eu uso veio de uma escolha, de um pensamento de um trabalho, mas o autor de qualquer obra artística não tem domínio sobre a obra que ele está gerando. Então vão emergir questões que lhe escapam, e esse momento do debate tem sido um momento em que eu posso aprender sobre o trabalho. E tem sido muito feliz, principalmente esses dois dias em Alagados. As apresentações em Alagados foram muito fortes, retornos muito significantes e emocionados.

Quanto por outro lado foi o dia que eu apresentei para um grupo maior de jovens, de escola pública, pouco habituados a estarem no teatro. E você sabe como é um monte de adolescente juntos. Eles não estão nem aí para você. Estão ligados é nos “Brother” deles, e você, muito provavelmente, será a pessoa que eles vão sacanear. Adolescente é isso. E aí eu fiquei naquela situação de estar fazendo e eles naquela vibe de adolescente. E isso me fez chegar num nível de agressividade que eu ainda não tinha alcançado. Eu tive que pensar: Qual é a linguagem que eu sei que vocês estão ligados? Então vamos nela. E aí eu vi que rolou um “porra! Ela tá falando comigo”. “Não desvia o olhar não que eu tô falando com vc”. E rolou. Foi intenso, mas rolou. Foi forte. Foi toda uma conjuntura que me deixou muito feliz de apresentar lá. Fora o espaço que foi muito acolhedor. A figura de Jamira Muniz (Coordenadora do Centro Cultural de Alagados) também, que é uma pessoa foda. Foi uma experiência muito feliz.

E uma coisa é você apresentar para os seus pares. Quando eu fui apresentar o trabalho em Praia do Forte, a convite de Larissa Luz e Fernanda Bezerra, para abrir o show dela (Larissa Luz também é uma cantora, uma artista que está trabalhando muito essa questão da afirmação da mulher negra). E a gente foi na van conversando sobre isso, porque tanto o meu trabalho quando o dela não são o tipo de trabalho que figuram na Praia do Forte. E foi foda. Primeiro que eu não apresentei o espetáculo. Foi mais uma performance. Deixar essas figuras passearem por ali. Fiquei um longo tempo limpando, varrendo a rua. E ao mesmo tempo em que eu estava invisível para quem não era da cidade, as pessoas de lá, os ambulantes que trabalhavam ali, sabiam que eu não era dali e começavam a assistir. E quem ficou até o fim, foi a galera de praia do forte. E eles concordavam, “pô, que massa”. Não estou dizendo que eu estou entrando naquela lógica binaria que eu critiquei lá no início. Claro que tiveram pessoas brancas, turistas que assistiram, e depois me chamaram para conversar…assim como pessoas dali que me acharam uma maluca. Mas tem um dado momento em que a gente enxerga uma paleta de cores. E essa paleta foi visível em alguns momentos, sim. E eu achei potente, sim…foi uma experiência que eu queria repetir em outro lugar.

LM. Essa lógica binária ainda existe. Essa perspectiva ainda existe. E a gente está atravessado por esse olhar. Vivemos um processo de desconstruir essa perspectiva, mas ela ainda existe. Você acha que Isto Não É Uma Mulata é para ocupar os espaços negros e convocar a todos, ou é um espetáculo para ocupar os espaços brancos de poder, dizendo um “se respeite”? Ou você acha que isso não existe?

MS. Eu acho que os dois. Por exemplo, fui assistir a um espetáculo em que uma amiga (Heloisa Jorge) participa no Rio de Janeiro, e o espetáculo se chama Race, e trata de racismo. Fiquei com várias questões sobre o texto, encenação, mas fiquei lá com minhas questões; Depois teve um debate. Primeiro que chegar num teatro em Botafogo, super fofinho, que é o teatro de Andrea Beltrão e Marieta Severo, e na hora que eu cheguei eu era a única mulher negra para assistir. Isso me causou um incomodo. Aí chegaram mais dois, me aproximei. (Risos). Ninguém estava me tratando mal, mas eu me sentia desconfortável. No fim das contas éramos 5 pra assistir, num teatro lotado. E na hora do debate, a questão foi sobre patrocínio. E eu fiquei… “gente, uma hora e meia de peça falando sobre racismo, com 5 negros na plateia, e falando numa perspectiva incômoda”. Quer dizer, quem não está habituado às questões, pode pensar que não entendeu direito o que ele está querendo, mas para um negro que está pensando essas questões, olha de cara e fala: Hum, um texto sobre racismo, escrito por um branco norte americano, provavelmente de relativo sucesso…ele pode até acreditar que ele está sendo super imparcial, mas ele não está. É uma visão de branco.  Por mais gente fina que ele seja, e ele precisa assumir isso.

No dia em que eu assisti, vi que não houve debate sobre o espetáculo, e vi que as pessoas não estavam ali para discutir sobre isso. E eu fique louca para apresentar na zona sul do Rio de Janeiro. Eu acho que o meu trabalho é agressivo, e eu queria ir pra esse embate. Que eu posso sair ferida, ter vários retornos não tão bacaninhas quanto eu tenho recebido. Mas eu fiquei inquieta.

LM. Em algum momento você pensou em ter uma equipe negra? Se sim, quais foram as dificuldades e o que isso representava politicamente pra você?

MS. Eu me perguntei, sim, num dado momento, mas o que aconteceu com Isto Não É Uma Mulata, foi assim: Quem está ali trabalhando comigo é amigo. E eu tenho amigos negros, brancos, trans, cis, plurais e tão comigo e me fortaleceram na vida. Quando eu escrevi, um ano antes, eu tentei alguns editais, e tentei formar uma equipe negra, mas os editais não rolaram. Então quem aceitou fazer comigo sem grana? Toparam por acreditar na proposta. Eu tenho uma equipe muito plural. As produtoras são Raíça (Bonfim) e Olga (Lamas), e também é complicado para mim classificar Raíça como branca. Não sei, mas também ela não está num lugar em que ela teve as vivências de uma mulher negra… então é difícil de classificar. Olga uma mulher branca. Elas estão comigo, me abraçaram, e muita coisa aconteceu por causa delas duas. Cássio Caiazzo e Deílton José, dois homens negros, da Península de Itapagipe, colaram comigo em figurino e cenário. Luíz Guimarães, que tem um entendimento da sua origem indígena, André Oliveira que é um homem negro que veio de são Paulo e que fez essa direção musical, e trouxe outros discursos para cena. Andrea Magnoni, que é uma mulher branca, absolutamente conectada com as questões de diversidade, que faz um trabalho maravilhoso com fotografia, e acho que será lembrada. E fazer o ensaio com ela foi foda. Daniel Guerra e Roberto Jaffier, dois homens brancos. E gosto muito do vídeo que a gente fez, que era para ser um teaser, mas acho que é uma peça que tem um discurso próprio. E Nayara Homem, que foi dos criativos a primeira pessoa com quem eu lidei. Quando ainda não tinha quase nada, e ia fazer uma performance no Dominicaos, e fui na casa dela, e eu ainda não tinha nem falado sobre Fanon, que é o autor de um livro chamado Pele negra,  máscaras brancas. E ela trouxe essa ideia, de fazer uma máscara branca que fosse de desmanchando. E que foi uma coisa que veio dela. Pessoas de outras linguagens que chegam para somar.

LM. Eu pergunto isso pela dificuldade, em encontrar pessoas negras ocupando outras áreas. E umas mais difíceis do que as outras, como vídeo, fotografia… Produção é a que mais vem mudando. E até pensando na nossa realidade, quem é que pode colar? Mesmo que ache a ideia massa?

MS. De fato, é o que eu estou falando…Cássio por exemplo, é um artista negro que pôde fazer isso. Cassio era uma pessoa com quem eu não tinha intimidade. E quem sabe num outro momento que eu tenha recurso eu possa viabilizar… Mas eu também não sei se eu quero. Agora que eu tenho uma equipe que colou comigo de graça, e quando tiver grana chamar outras pessoas, não sei…não sei se tem resposta.

O que eu acho fundamental, e quero ver, são negros ocupando todos os espaços.

Mas acho que ainda não é assim por dois motivos: Em salvador tem essa cultura de ver e chamar as mesmas pessoas…e é claro que quanto mais você faz, mais experiência você ganha, tem treino, erro, acerto

LM. E mais ouvem seus nomes também (risos).

MS. E aí eu vejo, “ah! Mas fulano nunca fez nada…não sei…” . Aí eu falo “porra! Você também não tem dinheiro. Arrisca. Essa pessoa precisa experimentar pra fazer”. Como a pessoa vai crescer?

Que é a fala de Viola Davis “O que diferencia as mulheres brancas das mulheres negras são as oportunidades”. E isso é para tudo. Pode ser que ela erre, mas pode ser que ela acerte.

LM. Como qualquer outra pessoa, porque isso é uma sensação que eu tenho: parece que dentro deste meio, imagino que em todos, mas falando no nosso, qualquer pessoa erra e acerta. Mas parece que o artista negro precisa ser MUITO BOM. Para começar a ser escutado, assistido, para ter diálogo. É como se o erro do artista negro fosse menos tolerado.

MS. Eu me lembro da Helena de Taís Araújo. Ela foi muito criticada. E quantas atrizes brancas são ruins e estão na tv porque são bonitas? E a novela tinha grandes problemas dramatúrgicos, mas ela foi linchada. Ela não tem direito de estar fraca em uma novela. Eu quero que Taís Araújo tenha o mesmo direito de errar de Gabriela Duarte.

LM. Para finalizar, como foi o seu processo de “embranquecimento”? Seu processo de tomada de consciência foi no congresso, mas como foi o seu processo? Eu vivi isso, converso com muitas mulheres que viveram isso. Ainda mais nós, que somos mulheres negras de pele mais clara, o processo é muito mais discreto.

MS. Hoje eu tenho consciência de que a estrutura do espetáculo foi a minha história: a gente começa no lugar invisível. Ai você começa a perceber que para ser notada você precisa ser branca, e vai fazendo esses procedimentos para parecer branca. Até que você começa a achar que nem é tão preta assim. Até que você percebe que a pele não sai. Que tem um peso colocado sobre você, e você vai carregando. E nesse peso vem aqueles adjetivos que as vezes são bons, mas às vezes te “exotizam”, te animalizam, de hipersexualizam… Até você dizer que “chega! Não quero essa porra”. E aí corre atrás desse processo de afirmação de si.

2018 | Revista Barril - ISSN 2526-8872 - Todos os direitos reservados.