Nebulosa | Visuais


The one thing I can do is make a fairly convincing fantasy of happiness. It doesn’t mean that I’m happy or the painting isn’t creepy, but good melancholy comes from a thwarted joy, which is another way to describe parenthood, or marriage, or being alive.
John Currin

 

A obra desse artista nascido em Trumpópolis (ou: lar dos bravos que podem consumir oreo de todos os sabores admissíveis, terra dos que detém olhos emoldurados por manchas negativas de bronzeamento artificial) parte de uma baliza técnica essencial, onde o método é uma premissa básica para que as imagens possam se apresentar e cumprir seus devidos papéis narrativos, alegóricos, simbólicos e representativos. A fatura de aplicação da tinta a óleo diluída – justaposta em camadas, com pincéis delicados, em gestos suaves, ordenada por uma paleta de cores ortodoxa (pessoas rosas dos cabelos marrom avermelhados e amarelos) que obedece a parâmetros compositivos restritos e apontáveis – intenciona sequenciar uma tradição clássica da linguagem e faz com que os trabalhos do pintor sejam inseridos em uma genealogia tradicional do métier. Seus temas, contudo, são mais universais e anacrônicos (ou militantes safadinhos), pois apontam questões como divisão de classes, representações sociais e práticas sexuais deliberadas; nada que tenha deixado de se fazer desde que os rapazes que operam no início d’uma Odisseia no espaço – os ascendentes peludos e um tanto considerável menos chatos que o blue man group – faziam as vezes das suas funções no planeta.

HIS-TE-RI-A.

O indivíduo histérico está encharcado de medo – ou tem medo de ter medo – ainda que a sensação seja oriunda de um perigo real e contemporâneo ao sujeito ou procedente de falácias utilizadas para manipulação de massas. Entretanto, dentre vários aspectos acadêmicos, processuais, temáticos e de conceito, a obra de Currin mostrar-se-á também (ou mais) interessante pela agonia e esquisitice geradas por suas imagens. Seria quase um adequado da pintura à feição com a qual Donnie Darko cruza ininteligivelmente cento e treze minutos, ou talvez as personagens de Currin sejam tão constrangedoras quanto a vontade não saciada de abandonar filmes cabeções-ininteligíveis-mas-importantes-para-tirar-onda-no-bar. Todavia – para além dos conjuntos representados nas imagens ou dos recortes que os corpos delineiam, com contrastes certas vezes nas ações narrativas, outras em bustos e poses mais retorcidamente estáticas – o mote principal dessas pinturas mostrar-se-á nos rostos e na geografia inóspita, porém familiar, dessas paisagens de aparências, jogando luz essencialmente na temática do retrato, com foco em sensações específicas; his-te-ri-a, instabilidade emocional, incompatibilidade ou impossibilidade total e completa de cumprir premissas básicas de um cargo que foi imputado ao fulano. Inexistência de modos e educação ao se portar publicamente

O sagrado na arte, após a pintura de ícones, borrifou-se nas gentilezas, minúcias e delicadezas dos detalhes cotidianos. As estruturas da primeira modernidade na pintura foram erigidas a partir da confecção de paisagens e retratos: a narração imagética dos domínios materiais e, fundamentalmente, da máscara dependurada na extremidade superior do corpo, no indivíduo burguês[1]. A catalogação e apresentação chinfrim da figura, até então anônima, em substituição aos semblantes metafísicos de deuses e reis, operacionalizando, assim, o mapeamento do ente que vive no mundo. Inaugura-se, dessa maneira, o projeto em prestações a perder de vista, da criação de alma das feições e dos lugares. Mas, nas pinturas de Currin, é como se essa alma estivesse se debatendo e convulsionando angustiada, inserida em algum lugar no invólucro físico do corpo; perdida, corrompida, suja, questionada. HIS-TE-RI-A. Ansiedade que nasce no psicológico mas brota pelos poros, virando um estado físico notório, quase palpável, uma marca registrada, quando recorrente. Se a carcaça é O Farol, a alma tem sua viscosidade amorfa gotejando quente e fumacenta na relação surreal, violenta e conturbada entre Thomas Wake e Ephraim Winslow, fazendo com que a intensidade da luz, alimentada pela tensão que explode a todo momento entre as partes internas, construa rostos com semblantes de cinismo aparente, histeria manifesta, loucura iminente; máscaras de carne feitas de tinta[2]. Assim, a careta não se constitui como acontecimento per se; reflete motivos inaparentes, espacialmente distantes, mas fenomenologicamente ligados; ela não é o significado, mas adere-se ao núcleo da questão, como na lógica filosófica, onde o sentido conservar-se-á tácito em relação ao que é falado na teoria, como um “ponto cego da linguagem, o olho que vê, mas não se vê”[3].

A feiura consta na arte assim como aquele cunhado intrujão performa para o almoço de natal, ou o churrasco de aniversário de alguma prima: por vezes ostensivo, mas necessário. Nem só de saltinhos fofos, ergonômicos, com amplitude perfeita, emulando arcos redondinhos e pelinhos malhados e macios vai a vida, Jojo (contudo não era preciso ser nazi; endossar regimes autoritários sempre será gratuito, não é possível dizer se existirá um get back no seu caso específico). Lançar-se-á mão do outro polo da beleza, no geral, para fins diversos e a partir de estruturas também variadas, mas, quase nunca a causa da ausência de graça estética está lá contrastada, manifesta, histérica como participante de Big Brother nos primeiros dias na casa.

O que, reiterando logicamente, não se desvela – a raiz da demanda, o metteur en scène desse palco ambivalente – e peleja para aparecer delineado e completo, quando abrolha, também na obra de Currin, é o sintoma. Ele já nasce como natureza intricada, ilógico, pois lida com tempos e espaços diferentes: é um na nascente, mas se configura outro quando na foz. O problema é que, às vezes, o rio consta em uma geografia exígua de ambiente, fisicalidade pequena mas profunda – pouco espaço para muita dinâmica -; uma pessoa, por exemplo[4]. O sintoma está, então, para além do ato, fenômeno e acontecimento: é anacrônico por gênese, entre fixação e presciência, privilegiando a oscilação, o descompasso, o contratempo. Um monstrengo hibrido entre um ouvinte aficionado das batidas tortas de Phillip Selway com o heartless (não aquele do Kanye) Melvin Udall pulando frestas e não pisando nas fraturas das calçadas de Nova Iorque. Pertence simultaneamente a andamentos distintos[5]. Vem de dores físicas, imateriais, kármicas, existências e, em algum momento se dá pelo simples e paradoxal motivo da existência: nenhum. Pode ser, ainda, a reprodução controlada de padrões culturais e sociais com fins delimitados e apontáveis. Também dar-se-á de formas pitorescas e exóticas – como crianças citadinas italianas acordando com ferimentos e lacerações de mordidas de cavalos oníricos, por possessões demoníacas[6] ou chefes de estado abandonando entrevistas quando contrariados minimamente – o que são casos muito particulares e pitorescos.

O cinismo angustiante que berra dos rostos pintados por Currin – HIS-TE-RI-A – se inseridos no paralelo de Benjamim entre fisionomia e cidade, geraria um fortim em aguda guerra civil. Quiçá, ainda no instrumental do mesmo filósofo, a ausência de ruído onde a vista descansava, que rodeava o rosto humano fazendo com que as expressões faciais, pré-século XX, se assemelhassem a paisagem – em John Currin – seriam infernos abjetos e impensáveis, tais quais as prisões do Norte do Brasil se encontram às raias do início da segunda década do século XXI, largadas, condenadas e expurgadas pelo governo federal. Como quando a momentaneamente doce mas perenemente inocente Mary Ann de Charlize Theron em O advogado do diabo parte hesitante para uma tarde de compras em lojas caríssimas com suas amigas recém estabelecidas; a fim de se afirmar socialmente em seu aspecto regional de esposa-de-advogado-bem-sucedido (no Brasil atual costuma muito acontecer na república histérica de Curitiba), percebe que suas comparsas ao se refestelarem no ritual de experimentar milhões de vestidos de gala, entre um e outro roçar de tecidos pelos corpos moldados em procedimentos estéticos apresentam feições abjetas, fazendo ecoar imageticamente as vozes imundas que as preenchem internamente e quebrando a narrativa usual que seria contada pelo evento[7].

O sintoma, no caso de Currin, pode ser estético, baseado em feições não usuais quanto na fatura de composição e técnica aplicada às pinturas, pois ele pertence e remonta à tradição direta e nobre da pintura, que traz à tona padrões em repetição de feições não usuais representadas e demonstradas pela arte elevada – de Leonardo a Goya, Arcimboldo a Lucian Freud, Jenny Saville a Van Gogh – a esquisitice apresentada formal e institucionalmente, como um panetone de vinte mil reais envolto em laços vermelhos comprados em alguma loja monárquica com acento dinamarquês na capital do século XIX do futuro: o Ríu de Xanêiro das milícias reais, digitais e, acima de tudo, míticas.

A pintura com ascendência tradicional e métodos clássicos estava em ação entre as duas últimas décadas do século XIV e trinta primeiros anos do século XV, quando a participação popular no governo aumenta numericamente por conta de uma reforma constitucional, mas não acarreta em nenhuma mudança efetiva na cultura política da região florentina, mantendo os trabalhadores mais pobres nas margens de tudo que ocorria na cidade, enquanto figuras ilustres e de alto contraste institucional utilizavam-se das máquinas públicas para acobertarem astronômicos e irreais desvios de caráter privados (histeria). Ao longo dos séculos XVI, XVII e XVIII é possível encontrar a menção ao termo corrupção em fontes diversas na literatura[8] espanhola e francesa – duas regiões notáveis pelo trabalho com pintura clássica, além da Itália, é claro (beijo Rui Guerra!).

Assim, as estruturas que empunham essas cacholas[9] ornamentadas com máscaras de rosto ou rostos de máscara – convulsivos, retesados, caricatos, pitorescos e esdrúxulos (HISTERIA) – são corpos, nem biológicos nem históricos[10], mas estatais, que far-se-ão plena e totalmente dispostos – a todo instante – em obedecer e acionar as estratégias de opressão gratuitas e diretas, que pelo esvaziamento endógeno constante e sequenciado dos entes faz com que projetem-se ímpetos de revisão, desconstrução e destruição por todas as partes. Como o objeto Schopenhaueriano que deve exprimir a coisa em si para deter algum laivo de sentido. Sendo que pelo instrumental Kantiano, a coisa em si é o que transporta determinações de tempo espaço e causalidade, seccionando de forma transversal o objeto artístico, independente da intenção de quem o produz ou o interpreta e lançando-o em um novelo de temporalidades simultâneas e anacrônicas. Dessa maneira a estética atual da política brasileira é uma careta John-Curriana, onde a carne do rosto trabalha (como a Flayslane do BBB) velando mas não escondendo, no caso, os regimes totalitários da America Latina, promulgados no século XX que estão todos presentes em um gesto de banana – embebida em calda de amor a torturador -lançado à mídia e ao jornalismo (completamente fraco e conivente). A construção de sentido na obra do pintor, então, dilatar-se-á chegando à estética das estruturas políticas tupiniquins pós-doismílê-dezoito.

John Currin montou os ministérios no governo mais recente do Brasil.


Livros citados no texto

BELTING, Hans. Antropologia da imagem. Lisboa: KKYM + EAUM, 2014.

BRISSAC, Nelson. Paisagens Urbanas. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2004.

DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. São Paulo: Graal, 2009.

DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante do tempo: história da arte e anacronismo das imagens. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015.

MEYER, Michael. Lógica, linguagem e argumentação. Lisboa: Teorema, 1982

PROUST, Marcel. A sombra das raparigas em flor. Rio de Janeiro: Editora Globo, 2005.

[1] BRISSAC, 2004.

[2]A relação de reciprocidade que a máscara estabelece com o rosto não poder-se-á reduzir à mera articulação entre ocultação (rosto) e revelação (novo rosto ou rosto mascarado). Analisando a questão do ponto e vista da intenção social, o rosto verdadeiro não é aquele que a máscara esconde, mas o que só a máscara gera. Por isso, a máscara é igualmente o prelúdio de uma disciplinação do rosto natural, que se estiliza em máscara para se conformar à codificação que nela se enforma (BELTING, 2014, p.51).

[3] MEYER, 1982, p.53.

[4] Palavra difícil de apreender: ela não designa uma coisa isolada, nem mesmo um processo que poderíamos reduzir a um ou dois vetores ou a um número preciso de componentes. É uma complexidade de segundo grau. É outra coisa além do conceito semiológico ou clinico, mesmo que comprometa uma certa compreensão de emergência (fenomenal) do sentido, e mesmo que comprometa uma certa compreensão da apregnância (estrutural) da disfuncionalidade (DIDI-HUBERMAN, 2015, p.43).

[5]O passado, então, não é mais o passado imediato da retenção, mas o passado reflexivo da representação, a particularidade refletida e reproduzida. Em correlação, o futuro deixa também de ser o futuro imediato da antecipação para tornar-se o futuro reflexivo da previsão, a generalidade refletida do entendimento (o entendimento proporciona a expectativa da imaginação em relação ao número de casos semelhantes distintos observados e lembrados). Quer dizer que as sínteses ativas da memória e do entendimento se superpõem à síntese passiva da imaginação e se apoiam nela. (DELEUZE, 2009, p.76)

[6] A possessão demoníaca em si já configura um caso próximo e distante do que viver-se-á socialmente gerando analogias possíveis, mas com uma pitada de extraordinário. A colonização da alma por um português infernal, a criação do latifúndio do espírito por um cafeicultor das trevas, com toda certeza assunto para algum texto alhures, AGUARDEM.

[7]O paradoxo visual é o da aparição: um sintoma aparece, um sintoma sobrevém – e, a esse título, ele interrompe o curso normal das coisas, segundo uma lei, tão soberana quanto subterrânea, que resiste à observação trivial. O que a imagem-sintoma interrompe não é senão o curso da representação. Mas o que ela contraria, ela sustenta em certo sentido: a imagem-sintoma deveria, então, ser pensada sob o ângulo de um inconsciente da representação. (DIDI-HUBERMAN, 2015, p.45)

[8] OROZCO, Sebastián de Covarrubias. Tesoro de la lengua castellana o española. Edición de Felipe C. R. Maldonado revisada por Manuel Camarero. Madrid: Castalia, 1995. [8]

MARIA, Theobaldo de Jesus. Lisboa, 1730.

NICOT, Jean. Thresor de la langue françoyse, tant ancienne que moderne. Paris: David Douceur, 1606.

FURETIÈRE, Antoine. Dictionnaire de l’Académie Française, Paris:Vve Coignard/J. -B. Coignard, 1694, vol 2. Disponível em: http://artflsrv01. uchicago. edu.

VIGIER, J. Thesouro apollineo, galenico, chimico, chirurgico, farmacêutico ou compêndio de remédios para ricos &pobres, por Joam Vigier. Lisboa: Officina Real Deslandesiana, 1714.

[9] Daniel Beleza, os corações poderiam estar mais em fúria, né? As flores estão cada vez mais no interno das nossas cabeças e menos no Brasil paradoxal cheio de esterco que não aduba nada.

[10] GOMEZ GRIJALVA, 2020.


Moisés Crivelaro é artista e professor.

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