Ensaio | Visuais


foto de Amine Barbuda

C’est que la Mort, planant comme un soleil nouveau

                                                        Charles Baudelaire

Walter Benjamin evoca a morte como parâmetro de análise da imagem fotográfica. Aproximando as fotos de Eugène Atget – na época, recém-descobertas – ao aparecimento do surrealismo, ele compreende que os novos temas buscados pelo fotógrafo eram as coisas abandonadas, a ruas e lugares em via de desaparição. Aí, a fotografia torna-se a expiação da morte de uma cidade, a Paris em preto-e-branco, que deveria ter seu êxtase respeitosamente registrado num rito fúnebre. Tanto em Benjamin quanto em Charles Baudelaire, o uso da alegoria da morte – seja em sua forma barroca,  seja em sua apropriação pela poesia do século XIX – atua como elaboração crítica da modernidade. A lírica baudelairiana foi o instrumento desse transporte retórico da alegoria da morte, antes circunscrita ao espaço literário, para o coração da metrópole, enquanto via critica ao urbanismo fin de siècle. As Flores do Mal é a elaboração dessa estética do negativo em que a morte – e um certo satanismo anti-burguês – se instaura no centro nervoso e urbano das transformações econômicas e políticas, exigindo a potência do tempo morto, da duração traumática do spleen: uma espécie de trabalho de luto do que se esfuma e crítica às novas formas de produção da existência. As imagens infernais, as várias faces da morte e seu trânsito entre coisas e situações – mesmo entre os homens – constituem a paixão pelo negativo, uma forma de combate e de exigência da desaceleração do tempo – talvez, até uma suspensão do tempo – como afirmação do presente. O spleen baudelairiano não seria essa capacidade de duração no coração veloz das transformações técnicas? Esse demorar-se num ambiente em suspensão, o qual cria arestas na planificação espaço-temporal, desenvolvida à época, é uma categoria negativa, empregada no combate à féerie objetual da sociedade de mercado. O individuo ennuyé com sua digestão lenta dos acontecimentos, enfastiado do mundo, em sua recusa a “interagir”, está com seus dias contados, pois a vida eletrizada e positiva, hoje triunfante, determinará tanto sua patologização quanto sua farmacopeia. Desde então, o tédio será a negação intolerável e proibida dos nossos dias nervosos, conjurado junto com a morte, a doença e a velhice. A imagem contemporânea, em sua urgência de circulação, fará o mesmo com o “tedioso” processo de revelar o negativo.

2.

                                                    Et que mimporte le blanc et ou le noir? Ils sont du domaine de la mort[1]

                                                                                                                                                 Louis Aragon

O fotógrafo francês Atget evitava os pontos turísticos da cidade de Paris – prática comum aos surrealistas – investindo contra a fotografia “monumental” e se engajando em libertar, na intimidade desses lugares, as forças do estranho e da morte. Todos esses sítios estão como que abandonados, a cidade está abandonada, pois as imagens das escadas, dos pátios, dos terraços de café, das praças e pontes, estão magnificamente vazias. Nessas fotografias, a cidade esvaziou-se em trabalho de luto: a cidade moderna promove as exéquias da velha Paris, a partir daí estranha aos seus habitantes.

As estórias de detetive surgidas no século XIX, como as que foram escritas por Edgar Allan Poe, apreendem o urbano também através da aura do criminal. É a perda e busca dos sinais de um acontecimento nefasto, do roubo ao assassinato, que movem a invenção e enredo dessas estórias e instauram um tempo negativo de apreensão, absorção e reflexão sobre o que é visto. Pensando nessa relação entre crime e imagem técnica, Benjamin nos lega um curioso comentário sobre Atget: “Não é por acaso que as fotos de Atget foram comparadas ao local de um crime. Mas existe em nossas cidades um só recanto que não seja o local de um crime? Não é cada passante um criminoso?”. Caberiam aos fotógrafos ligados a essa tradição inventariar essa modalidade criminosa e aos ensaístas arriscarem a sua taxionomia. Qual a relação ente a fotografia e a memória da cidade? Poderíamos dizer que memória e fotografia nascem de jogos de morte. A primeira, triunfante, se espoja sobre os despojos dos vencidos, os que morreram e não podem legar seu passado aos vivos; a segunda, congela e eterniza o real, que é sua lembrança, ao tempo de seu rito fúnebre. A rigidez cadavérica das imagens será sempre assustadora. O que foi rosto, agora é máscara mortuária. Ao instar as forças do desaparecimento e da transitoriedade, os surrealistas – escritores ou fotógrafos – reinterpretam, ao seu modo, as ruínas contemporâneas. É a duração das coisas que está em jogo: os estilhaços de outras épocas que perduram enquanto ruínas, acenando para o caráter fantasmagórico e explosivo do que nos cerca.  A fantasmagoria urbana dessa época é a insistência de habitar uma cidade que não mais implica em pertencimento e semelhança, escapa como um corpo morto que cultuamos e com o qual não dividimos mais o mesmo mundo. O tema do desconforto e do estranhamento do homem moderno em relação ao seu ambiente urbano, oriundos dos processos de desaparecimento/abandono flagrados nas imagens fotográficas, está presente nas trágicas imagens de Atget. Sua antiga, enorme e pesada câmara requeria uma caixa de placas fotográficas de vidro, negativos no formato 18×24 cm, que exigiam longas exposições e transformavam os habitantes da cidade em fantasmas, vultos em velocidade rumo ao desaparecimento. Essas aparições fantasmagóricas eram a possibilidade mesma da marcação e retenção do tempo na fotografia, afirmando uma presença, mesmo fantasmática, decorrente da duração técnica da exposição. Uma vida segunda se lhes sobrepõe como espectros que lembram os personagens baudelaireanos: velhos, ninfômanas, opiômanos, esqueletos. Figuras da Morte, pois a maldição e o satanismo de Baudelaire desdobram-se numa paixão pelo negativo. Assim como a morte na lírica baudelaireana, aqui a imagem fotográfica acionando o negativo (morte, desaparecimento, abandono, espectralidade em contraponto ao espetáculo de luzes e utopias capitalistas), assume um tempo outro de enfrentamento, em que a cena está prenhe de sinais que escapam e que devem ser “sensibilizados” como rastros, restos de uma vida fantasmática entre as nouveautés da incipiente sociedade mercantil. Atget e seus mecanismos ultrapassados ocupam espaço semelhante ao spleen baudelaireano, antes com o tempo lento da exposição, ou posteriormente com os negativos: suspensão, duração, crítica. Por fim, suas imagens são objetos inúteis, não encontram consumidores, um tanto deslocadas em relação à produção imagética do período, não se remetem ao círculo infernal das mercadorias, classificadas que são como souvenires. Mas o que elas podem lembrar senão a morte, pior, o sumiço do que um dia existiu gloriosamente? O velho fotógrafo, numa cumplicidade jamais admitida com os surrealistas, transformou o trato fotográfico com a morte em teoria negativa: desatou as forças explosivas da aparição imagética daquilo que foi. Suas imagens denunciam prematuramente a existência espectral a que estamos todos condenados num mundo de transparência absoluta e obscena.

3.

Je vois les yeux qui ont vu l’Empereur

                                         Roland Barthes

Roland Barthes escreve um ensaio sobre a fotografia sob o signo do luto. Negando a possibilidade de uma linguagem da imagem fotográfica, ou sua interpretação apenas como ilusão estética, o ensaísta francês afirma que a fotografia, assim como a escrita, é um fragmento, um resto de algo que foi. Essa memória congelada tecnicamente – ainda submetida ao comércio do negativo – aponta para uma perda e sua ordem do luto: essas imagens reveladas, embora elidam as qualidades do real (sendo plana e não em três dimensões, sem volume, temperatura, odor etc), trazem a presença violenta “do que aí esteve”. A imagem plasmada denuncia a gramatura do real como resto, seja como testemunha da cena “que foi” ou do sujeito que não mais existe. Toda imagem fotográfica, até aí, implica na existência de um fora, situado no exterior do exterior. Embora a cena fotografada obedeça às perspectivas subjetivas do fotógrafo, ou mesmo às técnicas dispostas historicamente, importa mais o seu testemunho, o registro daquilo que escapa e não mais se repetirá (o fora, o real), afirmando a violência de seu desaparecimento. A demora da ação química sobre o filme e depois sobre o negativo, na sala escura, não nos transporta para o momento epifânico da aparição da imagem (agora em positivo) no retorno do que é já morto e inacessível? O “trabalho do negativo” nessas imagens, duplicado no luto e na química – apropriação técnica do conceito de tenebreuse lumiére da teologia negativa – impõem a duração da espera para eternizar aquilo que já não é mais. Ignorando a imagem cinematográfica e optando pelas imagens fotográficas e privadas, essa poética do luto reinveste no espaço de suspensão do tempo, obstacularizando a circulação da imagem através da fisgada do punctum. Furando a rede veloz das trocas imagéticas e introduzindo a duração tediosa do ruminar da morte, a fotografia torna-se uma película do real (como um dia ele nos apareceu), embora esvaziado de algumas de suas qualidades. Assim, acessamos a ossatura imóvel do real através da negatividade sem bordas, sem reservas – como uma parte maldita abrigada em toda positividade.  Se hoje, o que nos cerca são imagens sem duração – ao abolirem o tempo de exposição e de tratamento do negativo, acomodando-se na instantaneidade da eletric life das plataformas digitais – a imagem fotográfica bartheseana, por sua vez, segue as pegadas de Atget e Benjamin na paixāo pelo negativo, aproximando duração e morte. Alumbramento na escuridão, esse é o motivo da “câmara clara”, um oxímoro barroco, incompreensível, quando presenciamos por toda a parte o extermínio do negativo e a ascensão gélida, objetiva de um mundo transparente e positivo.


[1] “E o que interessa o branco e ou o preto? Eles estão no domínio da morte”.

Washington Drummond, Professor do curso de Pós-graduação em Crítica Cultural -Uneb

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