Nebulosa | Visuais


Flor originária
Thais Calazans 2018

1.

“não!” (maio 68)

A face desencantada da atriz pornô, sua gesticulação de boneca, o movimento do corpo ao impulso dos solavancos do colega de cena – que no último estertor da alma humana ensaiava um prazer que nunca chegará – refletiam em slow motion nos olhos travados do único espectador, que na sala refrigerada, atacava avidamente a sua quentinha requentada com macarrão e frango frito. Nenhum pudor ali é permitido, nenhum anteparo que se insinue para, numa delicadeza quase imperceptível, nos traçar a tênue membrana em que a vida, marcada pelos seus regimes de sombra e imprecisão se anuncie. O mesmo para a violência operacional das telas-frias: decapitações, empalamentos, estupros hiperrealizados nas gotas de sangue, tão ou mais coloridas que os cabelos das modelos nas publicidades; membros amputados e suculentos como os pseudo-hambúrgueres dos outdoors. Nosso personagem, impassível, continua sentado em sua cadeira, frente a uma tela luminosa, a ruminar o bolo alimentar.

O advento do pornô e da hiperviolência nas imagens – sorvida como uma estética crua e vanguardista pós-tudo – colonizou o regime das imagens em que estamos imersos. Regime esse fundado numa associação entre imagens reprodutíveis e aparelhos, segundo um incessante processo de exposição massiva. Nunca existiram imagens como essas – saídas de emergência da era da reprodutibilidade, agora acompanhadas de uma exposição instantânea, potencializada infinitamente pelas redes mundiais. A disseminação das telas associadas, sobretudo aos aparelhos, efetivou o universo pornô e a hiperviolência numa quase onipresença. Vulgaridade, exposta e imediata sob uma luz intensa que dilui contrastes, elide sombras. A vida reverberada nas telas brilhantes e móveis das tvs, notebooks e smartphones.

O que caracterizaria o nosso regime de imagens e sua articulação na constituição do “sujeito” contemporâneo não seria, portanto, nunca a banalização, como pensávamos, mas a sua vulgarização numa “cosmética de si” – essa a grande ameaça da vida hodierna no que concerne à política e ao erotismo.

2.

“a arte está morta, não coma o cadáver” (maio 68)

As imagens do complexo pornô-violência estão por toda parte, alimentam os noticiários televisivos, da violência doméstica aos arroubos da política, da guerra pura, sem território, ao universo infantil. Não mais consumidas em privado, são agora endêmicas; das fotografias políticas – vide o voyeurismo triunfalista do denuncismo – aos celebrados filmes dos diretores de cinema cult (Pensemos nas obras de Sebastião Salgado, Tarantino ou Lars von Trier sorvidas (servidas?) como uma estética crua e vanguardista pós-tudo). O argumento político ou sexual será sempre o de mostrar as coisas como elas realmente são, sem tergiversações, sem hipocrisias, em sua suposta “nudeza”. Exige de nós uma cumplicidade que reforce o ponto de vista abertamente perverso: forrando com uma pretensa moral estética ou política o uso mercantil dos corpos e imagens. O pacto entre os que consomem e os que produzem e fazem circular essas imagens terríveis consolida a vulgarização da vida, sua invenção pobre, na medida em que nos prepara sempre para o acesso banal a intensidades cada vez mais fortes do “real” pornográfico e hiperviolento, onde todo erotismo e revolta refluiu. Essa é a endocolonização do vulgar travestido de estética – social ou neovanguarda – assentada num suspeito “retorno do real”. Que ironia que a própria dissipação do real, com requintes de crueldade, seja tomada pela sua re-aparição: os dejetos “realísticos” lançados a esmo são ouropéis. Na impossibilidade de desnudá-lo, só nos resta consumi-lo, um real operacionalizado, em sua forma “positiva”, como mais uma mercadoria em circulação. E repetindo a sua função deceptiva, isto é, sempre oferecendo o que nunca nos dará. Se o real é idiota por definição, logo irrepetível, o seu orquestrado “retorno” imagético é reprodutível e circula nos aparelhos e suas telas. Pois, se o real é impossível, cinde a realidade, abrindo caminho imperioso para o desconhecido, a entropia, a alteridade; já o real espetacular se esgota em si mesmo, sem negatividade – precarização da imaginação, quando o recuo do simbólico nos revela um desértico devir.

Se o mundo é de uma aridez plena, elidida a ilusão entre real e realidade sob uma luz dura, também o “sujeito” o será. Caso ainda haja sujeito entre as derivas automatizadas das telas e aparelhos e redes.

3.

“esse oco é o tudo que posso eu jamais ter” (C. Lispector)

Não é possível se fazer uma história do sujeito e as modalidades de sua constituição sem assumirmos um certo niilismo temperado: não há fundamento para o sujeito, apenas as várias armações, deslocamentos na superfície e as posições que aí ocupa, numa ligação acidental entre um conjunto de práticas e narrativas. O sujeito é “um oco de alma”, como escreveu Clarice Lispector, nunca totalmente preenchido, refém das circunstâncias históricas. Em cada recorte histórico deveríamos nos perguntar sob quais narrativas (e práticas!) o sujeito estabelece relações consigo mesmo, constituindo-se. Embora, a sociedade capitalista tenha se especializado na produção e consumo de mercadorias, convergindo para a segurança dos comportamentos, enquadrados em formas constantes, repetitivas e ordenadas, ao dobrar-se sobre si, num jogo disruptivo entre práticas e narrativas, o sujeito que aí emerge torna-se uma inflexão acidental entre o fazer e o dizer. A prática da escrita é uma dessas modalidades de constituição de si que, independentemente dos gêneros, espalhou-se em cartas, diários, romances, crônicas etc.

Entretanto, o que poderíamos creditar aos diários e cartas do século passado, com toda a sua tessitura de saberes capsulados entre a estética literária e uma disciplina como prática da escrita – reservada aos restritos círculos dos que dominavam a técnica de escrever – parece ter se deslocado, com o advento das imagens reprodutíveis, telas e aparelhos, para o terreno da produção massiva, anônima, banal. As práticas de uma “escrita de si”, enquanto constituição do sujeito, se apegavam de alguma maneira a uma fronteira entre a literatura – como distinção e uso de classe – e um esforço autobiográfico, em que a rememoração ou a escrita não se afastava jamais de uma relação consigo mesmo. A escrita não estaria – assim como a laca japonesa – não laqueada, como descrita por Junichiro Tanikazi, envolta em “camadas e camadas de sombra”, derivadas da “escuridão” que se abate sobre tudo? Com as imagens reprodutíveis, impôs-se ao sujeito, reforçado pelos aparelhos, um regime de imagens e exposição como consequência da iluminação excessiva em que tudo deve ser visto, mostrado, revelado sem cessar.

5.

“a luz, quanto mais clara, tanto mais cega” (S. Juan de la Cruz)

Hoje, entretanto, a constituição do sujeito se dá sobretudo no cruzamento entre imagens, telas e aparelhos numa exposição e “claridade” imediata. Enquanto uma “escrita de si” ainda continha o “tempo morto”, negativo, da espera, evocando o tédio e o desconforto do segredo – inadmissível para nossos dias cada vez mais histéricos, na obscenidade comunicacional, o que pode restar do “sujeito” se inscreve em fragmentos de uma “cosmética de si”. Não basta aparecer, mas aparecer instantaneamente sob os signos do obsceno em que a fronteira entre o que é público e o que é privado se esfuma. Não é apenas ao nível do conteúdo que se dá a afirmação do obsceno, enquanto pornografia e hiperviolência, mas, sobretudo, pelo excessiva exposição imagética de si pela qual o “sujeito” emerge nas redes.

Segundo Jean Baudrillard, a contaminação de todas as imagens pela pornografia e hiperviolência provoca a emergência de um estado de obscenidade midiática. Para ele “a obscenidade começa quando não há mais espetáculo, nem cena, nem teatro, nem ilusão, quando tudo se torna transparente e de uma visibilidade imediata”. Essa é a descrição da impostura do sujeito nas nossas plataformas digitais, onde as imagens reforçam uma “cosmética de si” – não mais como uma imposição de fora mas como “performatividade” publicitária do eu. Anos-luz distantes da distopia marxista da alienação ou, em sua visão pós-moderna, da “dominação” e “disciplinarização” foucaultianas. A “cosmética de si” é a dobra de um “sujeito” cada vez mais fragmentado e movido por uma performatividade viral, auto-infligida, em nome de uma vida mais “real” chancelada pelas imagens reprodutíveis, em fluxo nas redes sociais. Ao “retorno do real” se exige que a cada segundo registremos nossas vidas “realizadas” como mercadoria: a exposição perversa de crianças sob o disfarce da celebração da hereditariedade numa espécie de pedofilia social; a exumação da felicidade através da montagem subcinematográfica de aniversários, casamentos, batizados, jantares, festas, numa espécie de existência sem negativo; o deslocamento mercantil e ostentatório – logo inócuo – em viagens e aventuras como mapeamento da imbecilidade turística contemporânea em que o máximo de mobilidade se expressa no mínimo de descoberta, pois subjugado à lógica do mesmo; por último, a fantasmagoria objetual do “sujeito” (ou seu desaparecimento) como máscara cadavérica (selfie), imagem-mercadoria, numa espécie de reinvenção do fetichismo na era do sex appeal da morte. Aqui, nenhuma beleza senão aquela que se esfuma no consumo; nenhuma sensualidade a não ser a fria, triste e compulsiva pornografia-nossa-de-cada-dia; nenhuma alma, só a trama gélida dos algoritmos.

O escritor Georges Bataille só compreendia o erotismo em sua ligação com a morte, momento de esgotamento e apagamento do “sujeito”, revelando sua vacuidade na petite mort. Diferentemente da sexualidade presente nos animais e marcada pela exterioridade, o erotismo batailleano internaliza o fora, formando uma dobra no “sujeito” e a desfazendo incessantemente no êxtase. Dramaticidade que já não nos pertence, substituída pela circunscrição da morte aos espaços hospitalares e privados – indivíduos à mercê das máquinas; pela hiperviolência e pornografia generalizada; e a exposição imediatizada nas redes. Essa a cena da fragmentação do “sujeito” na “cosmética de si”.

6.

 “il n’y a pas de rapport sexuel” (Lacan)

Nas gélidas imagens pornográficas (e violentas) que nos assediam, o corpo feminino encena as regras do distanciamento. Ao se submeterem aos ritos enfadonhos e musculares do sexo (emulação grotesca e simiesca do comércio sexual) as mulheres praticam a indiferença ao uso do próprio corpo. Nada mais que a terrível descrição batailleana de “um tubo com dois orifícios anal e bucal”. Tomam-se como bonecas que ridicularizam o orgasmo feminino em gritos, gestos e expressões faciais de onde Eros escapou célere. Mas aqui, a principal vítima não é o amor. A pornografia é a inimiga do erotismo, o qual transforma em desempenho, performance, tornando as carícias impossíveis e o gozo um espasmo masturbatório. O corpo torna-se um empecilho e poderia ser reduzido às genitálias, na reversão à exterioridade do sexual. Eros – que imanta com graça e prazer o comércio dos corpos – abandona a vida fria, célere em direção ao seu exílio.

Numa recente exposição, os desenhos de Thais Calazans nos impõem o contrário de tudo isso, dessa obscena indiferença pornô aos comércios sexuais. Neles, uma série de desenhos de mulheres e travestis, o corpo feminino em sua gesticulação centrada na “flor originária”, está tão quente quanto a cor vermelha onipresente que se espelha e espalha por todas as direções. A duração e o sombreado retornam para assombrar, iludir, desviar. Ainda será possível o erotismo? Aí, nos parece, se insurge um corpo rumo a uma mancha anamórfica. Revogado o exílio da morte e do outro, reinventa-se o que não mais se esperava: os traços incertos e orgânicos do inumano.


Washington Drummond, Professor do curso de Pós-graduação em Crítica Cultural -Uneb.

2018 | Revista Barril - ISSN 2526-8872 - Todos os direitos reservados.