Ensaio | Cênicas


Ilustração de Flávia Bomfim

Nota dos editores: para uma melhor apreciação, sugerimos clicar nos hiperlinks de acesso às fotos mencionadas no texto.

Desde sua consolidação nos anos 1970, a arte da performance sempre lançou mão da fotografia com o objetivo de certificar uma presença que tenha se dado apenas em um momento e um espaço específicos. Hoje, há correntes teóricas que buscam distanciar a materialidade de cada uma dessas linguagens (Peggy Phelan e Hans Ulrich Gumbrecht são importantes nomes nesse contexto), afirmando que há um tipo específico de presença na performance que jamais pode ser alcançado em suas documentações.

Qualificada muitas vezes como inédita ou irreprodutível, tal presença faria frente à lógica da mercadoria, por se recusar ao imperativo da reprodução. Mas há quem afirme haver uma performatividade própria das documentações de performance, necessária inclusive à tal presença específica da arte da performance: assim, a duplicidade e a mediação da imagem fotográfica seriam partes constituintes das presenças articuladas por artistas performáticos (Philip Auslander é quem apresenta esse argumento, mas também fazem parte desse recorte autoras como Amelia Jones e Rebecca Schneider). Eu, que sempre me posicionei ao lado do segundo grupo, pergunto-me se não seria papel da fotografia (re)teatralizar o evento performativo, inserindo no registro dos eventos um segundo campo da imaginação: dúvidas, mitologias e metáforas que, lentamente sedimentadas e repetidas, podem circunscrever em outras narrativas ou mesmo desviar o que foi o acontecimento “original” (com todas as aspas que esse termo necessita quando se fala de performance). O que, segundo penso, as fotografias fazem com a performance é justamente assombrá-las com aquilo do qual ela sempre tentou escapar: sua existência enquanto imagem.

Reconhecer tal assombro é especialmente urgente num tempo como o nosso, no qual a imediatez e a proliferação de imagens fotográficas (inclusive a de performances, que são registradas e, ao mesmo tempo divulgadas em redes sociais) alcançou um estado quase absurdo de tão intenso.

Ora, teatralizar um evento não pode mais ser visto como algo degenerativo ou indesejável. Nos terrenos da arte da performance e das artes visuais, falar sobre teatro ou adjetivar como “teatral” muitas vezes parece ser um demérito, algo do qual se deve fugir (basta lembrarmos das duras críticas de Michael Fried ao minimalismo estadunidense dos anos 1960, acusando-o de ser “teatral” demais). No imaginário do senso comum, geralmente o teatro se aproxima daquele tipo de espetáculo que Guy Debord afirmou nos alienar, tal qual um grande show da Broadway, mas também diz respeito ao campo da representação que muitos artistas buscaram superar no século XX. Portanto, o teatro tende a ser visto como um espaço de ilusão, como aquilo que é falso e nos expulsa da realidade das coisas (poderíamos inclusive nos lembrar que esse preconceito é mais antigo, e se encontra mesmo no mito da caverna de Platão). Mas, como Herbert Blau brilhantemente demonstra, o teatro também pode ser visto como um campo da fantasmagoria, no qual a repetição que lhe é própria força a lembrança daquilo que foi culturalmente esquecido ou deixado para ser resolvido, tornando novamente visível aquilo que não foi visto, excluído e que volta para ajustar contas[1]. Notem como grandes narrativas do teatro lidam com a questão do luto e do respeito à história e aos corpos dos mortos: o fantasma do pai de Hamlet retorna por uma vingança que se materializa na obra como uma peça teatral dentro da própria peça; Antígona desafia a sociedade para enterrar o corpo de seu irmão, que seria deixado aos abutres.

Falar de teatro é dialogar com os mortos, já dizia o dramaturgo alemão Heiner Müller. Essa relação com os mortos e com os corpos que já foram é sintetizada pela professora Alice Rayner, em seu recente livro Ghosts, da seguinte forma: “teatro é o local específico onde aparecimento e desaparecimento reproduzem as relações entre os vivos e os mortos, não como forma de representação, mas como uma forma de consciência que se moveu para além de dualidades e problemas de representação, sem desconsiderá-los”[2].

A fotografia teatraliza (ou diríamos: assombra?) os eventos performativos por envolvê-los novamente em um campo misterioso de tudo aquilo que se deu após a ação performativa ter ocorrido. Além disso, ela também sugere aquilo que poderia ter se dado para além do instante registrado. Talvez um dos casos mais sintomáticos seja o do artista Rudolf Schwarzkogler, erroneamente conhecido por ter amputado o próprio pênis em uma performance e morrido em decorrência desse ato. Tal mito foi difundido pelo crítico Robert Hughes em um texto de 1972, no qual citava uma série de fotografias nas quais o artista estaria documentando uma automutilação. Nem o artista estava lá (na verdade foi seu amigo Heinz Cibulka quem posou para as fotos), nem a automutilação aconteceu, sendo apenas encenada. São fotos fictícias que, enquadradas no contexto do acionismo vienense e da radicalidade da arte da performance, persuadem o espectador a acreditar que o evento foi real, gerando tamanho mito ao redor da imagem – e tanto preconceito e desinformação para a arte da performance, como Biaggio Pecorelli aponta em sua tese de doutorado[3]. O ponto é: mesmo que o artista tenha morrido por outros motivos que não a performance, tendemos a buscar naquela imagem algo que já apresente, como uma espécie de oráculo, o destino trágico de Scharzkogler e as causas da futura morte daquele corpo.

Tal assombro do futuro parece sempre acompanhar as imagens fotográficas: em seu texto Pequena História da Fotografia, Walter Benjamin demonstra estar assombrado por uma fotografia feita pelo fotógrafo Dauthendey ao lado de sua esposa. O mistério dessa foto não se dá apenas porque o olhar da mulher está “fixado em algo de distante e catastrófico”, mas principalmente porque, algum tempo depois da foto, ela se suicidaria. Para o filósofo, não há como não procurar, na última imagem da mulher, o momento em que a “realidade chamuscou a imagem”, o que o leva a afirmar que, para além do que foi planejado na composição da imagem, o futuro de quem foi retratado volta para assombrar. A conclusão de Benjamin é precisa: “A natureza que fala à câmara não é a mesma que fala ao olhar; é outra especialmente porque substitui a um espaço trabalhado conscientemente pelo homem, um espaço que ele percorre inconscientemente”[4].

Vejam, por exemplo, como é fantasmagórica a foto de Bas Jan Ader dentro de seu barco antes de desaparecer, em seu último trabalho, Em busca do milagroso (1975). Nele, o artista tentou cruzar o Oceano Atlântico sozinho com um barco, e seu corpo nunca mais foi encontrado. Quando olhamos a foto mais difundida do trabalho – exibindo a fonte clássica com o nome da obra abaixo do artista, ele de colete salva-vidas a olhar para o mar que o engoliria – é difícil não pensar sobre o futuro daquele corpo: teria sido encontrado por um pescador, já sem pele? Seus ossos estão no fundo do mar, perto de algum coral? Ou o trabalho foi uma tentativa de fuga e o artista hoje vive na Bahia, com uma longa e espessa barba? Nesta imagem, ficamos a buscar alguma centelha daquele futuro na posição de seu corpo, no vazio do oceano, nos elementos do barco.

A imagem, portanto, não apenas prova o início de determinado procedimento performativo, mas também abre campo para tudo aquilo que aconteceu ou teria acontecido posteriormente à foto (seja o evento em si do desaparecimento, seja tudo o que o evento deixa de nos contar). A ação toda se cristaliza na desfocada imagem, que serve como condensadora de todos os possíveis do futuro de Ader. Há, na imagem, algo da ordem do incômodo, que se revela ainda mais quando acessamos a(s) história(s) que a circundam.

Para encontrar essa fantasmagoria, não basta apenas um movimento de leitura das imagens de performance, mas sim seu escavar, mergulhar nelas, olhar para elas como um memorial de corpos que não estão mais entre nós ou cuja condição material (pele, ossos, rosto, voz) está, com certeza, alterada. Esse exercício benjaminiano com as imagens pede para que as tratemos, enfim, como um brinquedo. É preciso reconfigurar os focos de atenção, olhar para aquilo que não pede para ser olhado, inverter as forças compositivas. Em Benjamin, isso se faz claro em seu interesse pelas imagens surrealistas, assim como em sua leitura enérgica do anjo de Klee ou mesmo em suas experiências com haxixe, nas quais ele afirmava conseguir “florestar as imagens”[5]. Para Benjamin, há algo que se dá a ver para além do que está visivelmente posto na imagem, o que o permite falar que, na fotografia, “a diferença entre técnica e magia é uma variável totalmente histórica”. Nas imagens fotográficas, aquilo que era pequeno e oculto demais para o olho nu, outrora disponível apenas para os sonhos, ganha tamanho via câmera lenta ou ampliação. Com Benjamin, “a técnica mais exata pode dar às suas criações um valor mágico”[6].

Esse olhar que escava e rearticula é posteriormente trabalhado por Roland Barthes, que buscou diferenciar o espaço objetivo da foto daquilo que nela nos pinça, cutuca ou incomoda; o punctum. No belo texto chamado Câmara Clara, o autor percebe como a fotografia tem relação direta com o teatro, não apenas lidando com a composição e a encenação, como também possibilitando o diálogo com os mortos. Para Barthes, “por mais viva que nos esforcemos com concebê-la […] a Foto é como um teatro primitivo, como um Quadro Vivo […]”[7]. Mesmo no processo de invenção de suas primeiras tecnologias, a fotografia já fazia tal aproximação entre encenação, morte e ficção: a famosa fotografia de 1840 feita por Hippolyte Bayard, um dos pioneiros da fotografia, mostra um homem afogado (o próprio Bayard) que teria se suicidado por não ter tido o devido reconhecimento pela invenção da técnica fotográfica. Essa imagem, que hoje seria rapidamente enquadrada como fake news, não é nada mais que uma performance para a câmera que confia no poder “mágico” de criar narrativas e contextos a partir do instante. Se, na realidade, Bayard não poderia ficar para sempre sem respirar, no instante da foto ele pôde.

E, assim como os diversos registros de performance que vemos hoje, a foto precisou vir acompanhada de uma narrativa textual, que contextualizava o instante e o inscrevia em certo tempo e espaço, já que a crítica ácida em relação a seu rival Daguerre (inventor do daguerreótipo) só se consolidava através do texto, escrito à mão no verso da imagem.

Há, na fotografia de performance, certo mistério do que foi enquadrado versus seu amparo narrativo: alguém que diz, o artista que conta, a curadoria que explica, o boca a boca que distorce certas imagens. Quem nos afirma que, sob o amontoado cinza da foto, há de fato o corpo do artista Chris Burden, em sua performance Deadman (1972)? A narrativa “oficial”? A “voz do artista”? As mesmas narrativas e vozes que falaram e mostraram durante décadas que apenas o corpo do artista Antonio Manuel entrou nu no Museu de Arte Moderna em 1970, proclamando que seu próprio corpo era a obra em uma das primeiras performances brasileiras? Não foram essas mesmas vozes que excluíram o fato de que uma mulher chamada Vera Lucia Santos também entrou ao seu lado? Em que vozes confiar para além daquela da própria fotografia? Acredito que hoje já sabemos o quanto devemos desconfiar da totalidade dessas narrativas, o que nos obriga a reconhecer sua dimensão de construção.

Se Susan Sontag afirmava que “a fotografia, na verdade incapaz de explicar o que quer que seja, é um convite inexaurível à dedução, à especulação e à fantasia”[8], Frayze-Pereira complementa que, por ser “centro de uma pluralidade de significações, a fotografia convida a fantasia a entrar em cena. A fotografia não explica nada. Ela fascina”[9]. O autor prossegue afirmando que a fotografia não dissocia ilusão e real, mas sim os apresenta em conjunto, como se a primeira fosse uma forma mais sutil do real. E hoje sabemos que essa dimensão de fascínio e violência da imagem fotográfica é muito bem articulada pelas mídias sensacionalistas e pelas redes sociais, que distorcem e se apropriam de imagens, reconduzindo-as a seu bel prazer (vale notar que artistas da performance se tornam cada vez mais, para além de agentes dessa manipulação, seus alvos, como nos recentes casos de Wagner Schwartz e Juliana Notari).

Não quero dizer, com isso, que precisemos usar da mesma força, da mesma violência e da mesma distorção que são perpretadas sobre essas fotos pelo fervor imediatista que caracteriza o debate nos nossos tempos, mas sim que é preciso lembrar que todo registro de performance tem uma vida em si mesmo. E, como algo vivo, é passível de manipulação, crescimento, alteração e deformação. É passível de ser teatralizado, de ser recontado por outros e ganhar novas versões.  Intuo que é por tal relação fantasmática que Charlotte Cotton dirá que a fotografia, quando livre de questões de autoria e originalidade, é vista como sinal[10]. Não é à toa que várias narrativas de fantasmas no cinema lidem com fotografias: em seu processo de revelação nas salas escuras, os fantasmas se tornam visíveis; nos arquivos, reencontramos os mesmos rostos. Há casos memoráveis: O iluminado (1980) tem o desfecho de sua história, mostrando que o protagonista que visitou o hotel sempre esteve lá, visto no centro de uma fotografia histórica datada 50 anos atrás; o protagonista do filme tailandês Shutter (2004), depois de inúmeras fotos que indicavam a presença do fantasma a escapar, enfim fotografa a si mesmo para perceber que o fantasma sempre esteve sobre seus ombros.

Toda fotografia reinscreve o mistério do tempo naquilo que se deu em um momento específico. Tal dissincronia temporal, que envolve de mistério determinados registros de performance, é justamente o que descola essas proposições de um real imediato e sem possibilidade de imaginação. As fotografias sujam a presença pura da performance, tiram sarro dela, pedem revisão histórica e clamam pelo acerto de contas. As fotografias de performance fazem aquilo que o teatro faz desde muito tempo: colocam as pessoas que observam diante de um impasse. O que fazer com essa imagem, mas, principalmente, o que fazer a partir dessa imagem?

Olho, por fim, para a foto de Bruce Nauman, que o registra tentando levitar em seu estúdio, sintetizando sua preparação, ação e fim. Mas comprime tudo em um mesmo instante, o que não nos deixa saber se a ação obteve sucesso ou fracasso. Aquele corpo no chão, afinal, pode ser tanto o corpo que cai quanto o corpo que se prepara para subir. Aquele corpo que flutua como num show de mágica pode ter durado uma fração de segundo suspenso ou ter alcançado sucesso (o que nos faz cair no chão, é claro, é seu título, que afirma que houve uma falha na tentativa). Mas isso não é o que a fotografia nos diz. Ela abre campo para pensarmos que talvez tenha sido possível levitar, ou ao menos que ainda seria possível de alguma forma. Ela nos convida a seguir tentando.

Talvez Rancière tenha colocado essa questão melhor do que ninguém, já que, para o autor, as fotografias na verdade recusam qualquer leitura do passado ou do futuro de um corpo que se apresenta na fotografia. O que as fotografias nos falam é, antes de tudo, “a capacidade de expor um corpo ao pedido da câmera, sem rendê-lo, para tanto, ao pensamento e sensação que o habita. Essa tensão entre exposição e retração dissolve na pura relação do espectador com a morte que vem vê-lo”[11]. Ou seja, as fotografias são silenciosas demais, misteriosas demais e justamente por isso convidam a uma especulação infinita, a um trabalho de rememoração que inevitavelmente passará pelo imaginário. Assim como os fantasmas mais assustadores, não dizem a que vieram: apenas nos perseguem, silenciosamente à noite. E voltam. E voltam de novo. E de novo. E esse assombro do impossível, aquilo que apenas um fantasma poderia provocar, é um aspecto central da força de toda obra performativa.


Renan Marcondes é artista, pesquisador e doutorando em Artes da Cena (USP)

 

[1] BLAU, H. The Eye of the Prey: Subversions of the Postmodern. Bloomington: Indiana University Press, p. 171-173

[2] RAYNER, A. Ghosts: death’s double and the phenomena of theatre. Minneapolis: Minnesota Press, 2006, p. xvi, trad. nossa.

[3] PECORELLI, B. Poéticas do sacrifício (1960-1978): excesso e martírio na arte da performance à luz dos escritos de Georges Bataille e do Acionismo de Viena. 2019. 392f. Tese de Doutorado. Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, 2019.

[4] BENJAMIN W. Pequena história da fotografia. In:_Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.

[5] DIDI-HUBERMAN, G. Quando as imagens tomam posição: o olho da história, I. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2017.

[6] BENJAMIN, W. Op. cit

[7] BARTHES, R. A câmera clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. pp 53-54.

[8] SONTAG, S. Ensaios sobre Fotografia. Rio de Janeiro, Arbor, 1981, p. 22.

[8] FRAYZE-PEREIRA, J. Arte, Dor: Inquietudes entre Estética e Psicanálise. SP: Ateliê Editorial, 2005, p. 115.

[10] COTTON, C. A fotografia como arte contemporânea. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010. p. 191.

[11] RANCIÉRE, Jacques. Notes on the Photographic Image. In: ALLIEZ, E; OSBORNE, P. Spheres of Action: Art and Politics. London: MIT Press. 2013. p. 25, tradução nossa.

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