A cidade nunca havia experimentado tamanha excitação. Muitos não acreditavam que aquilo iria acontecer, apesar de terem visto na televisão que ele já havia passado no Rio de Janeiro para gravar parte de seu novo clipe. Comentava-se que para realizar as filmagens na favela da Rocinha, a equipe de produção precisou negociar com os traficantes. Mas claro que não acreditávamos nisso, pois quem seria louco de dar ordens para Michael Jackson? Para nós, era Michael na terra e também no céu. Acompanhávamos sua trajetória desde a época do Jackson Five. Quando ele passou a focar mais na sua carreira solo “adulta”, talvez nem tivesse noção da mudança que ocorreria. Desde o começo da parceria com o produtor Quincy Jones, já se notava que aquela seria uma jornada deveras peculiar. Off the wall já indicava uma qualidade diferenciada, mas foi com Thriller que ele mudou o mundo da música. A partir de então, Michael Jackson passou a ser reconhecido como o Rei do pop.
O lançamento de Bad trouxe a primeira grande polêmica do cantor. Na capa, Michael aparece com a pele mais clara do que o usual. Lembro que comprei o disco somente para poder quebrá-lo. O maior problema era que, para variar, o disco era muito bom. Os anos 90 foram o começo do declínio para Michael. Com o lançamento de Dangerous, o artista fez referências às polêmicas sobre sua condição étnica,afirmando que “não importa se é branco ou preto”. Isso talvez tenha feito com que alguns se afastassem do artista. Junta-se a isso a mudança de ambiente na música. O furacão Grunge saiu de Seattle para tomar o mundo de assalto com guitarras sujas e distorcidas. Quando o Nirvana desbancou Michael Jackson do topo da Billboard, uma nova ordem musical começou a se estabelecer. Foi também no começo dos anos 90 que surgiram as primeiras acusações de pedofilia contra o cantor norte-americano.
Era nesse cenário que ele vinha ao Brasil, em 1996, gravar o vídeo para sua nova canção “They don’t care about us”. Enquanto muitos ficavam eufóricos, eu tentava organizar meus sentimentos com relação a ele. Ainda me sentia muito magoado com a “traição” da época de Bad e as acusações de pedofilia não ajudavam. O problema era que quando escutava sua música, todos esses pensamentos e questionamentos desapareciam. Inclusive, estava escutando o Bad pela enésima vez, quando meu amigo Gilberto Mussa, me convocou:
– Negão, acorda pra cuspir! Bota uma rôpa, pega uma grana, desce pra Sete Portas pra gente pegar o buzu pro Aeroporto…
– Oxe, que porra que eu vou fazer no Aeroporto, desgraça?!
– ELE tá chegando hoje, ô misera!
Mussa nem precisou dizer de quem se tratava. Me vesti o mais depressa possível e corri para a Sete Portas. Rapidamente pegamos o ônibus e quando chegamos no aeroporto, havia centenas de pessoas para recepcioná-lo. O que mais nos chamou atenção foi o número de sósias do cantor. Aproveitamos o ensejo para nos divertirmos criando pequenos tumultos,gritando e apontando para os falsos Reis do Pop. As pessoas corriam até o local e só saíam de lá quando viam que aquele não era Michael. Fizemos isso umas três vezes, até que ficamos manjados.
Sabendo de toda euforia que o esperava, Michael saiu do aeroporto sem ser visto. Conversando com outros fãs, ficamos sabendo que a gravação do clipe seria na sexta-feira. Mas como a euforia era muito grande, resolvemos seguir para o Hotel da Bahia, onde ele iria se hospedar. Seguimos aquela multidão que fez um carnaval fora de época, entoando canções do artista dentro do buzu. Até o cobrador gritava para o povo:
– Canta “Billy Jean”, galera! Essa música é boca de zero nove!
A cantoria foi tão intensa que nem notamos quando chegamos no Campo Grande. Descemos do ônibus e a rua do Hotel da Bahia já estava tomada por outros fãs. Ficamos na rua do lado oposto ao hotel, aguardando para ver se ele iria aparecer. Quando me cansei de toda epopeia, falei com Mussa que iria para casa descansar e ele concordou. Quando já estávamos perto da Casa de Itália, ouvimos um som de tumulto. Eu e Mussa nos entreolhamos e voltamos correndo para a frente do hotel. Quando chegamos, só ouvimos uma pessoa falando:
– Era ele! Era ele! Branquinho feito o diabo! Tava com uma máscara preta e um chapéu. Acenou pra gente! Michael acenou pra gente, porra!
Mussa olhou para mim como se eu fosse o maior criminoso do universo. Como a probabilidade de ele aparecer de novo era muito remota, seguimos nosso caminho com a mente já direcionada para a sexta-feira. Me despedi de Mussa e segui para casa para escutar um pouco de Michael e entrar no clima.
Quando o grande dia chegou, estava tão excitado que fui andando do Matatu até o Pelourinho. Encontrei Mussa no caminho com uma cara não muito boa. Antes de eu perguntar, ele já foi me informando:
– Cara, deu merda. Era conversa da galera. A gravação parece que vai ser amanhã.
Fiquei atônito com a notícia. Mussa tentou me consolar da maneira mais óbvia:
– Pelo menos o Olodum vai tá e a gente vai poder assistir eles de graça.
– Porra de Olodum, véio! Eu quero ver Michael!
– Eu sei, eu sei… mas vamos lá ver o que acontece…vai que é hoje mesmo e a pilha pra amanhã é pra evitar o povo de ir, né?
Chegamos no largo do Pelourinho e vimos poucos fãs, o que nos desanimou, e uma grande equipe de filmagem. A gravação iria ocorrer e, no que dependesse de mim, faria campana até ela acontecer. Fomos nos aproximando e vimos Neguinho do Samba regendo a turma de percussionistas, inclusive Bira, que depois entraria para a família Jackson sem nem precisar ter se casado.
– Bora, galera! Vamos gravar essa porra de uma tacada só, certo?
Os percussionistas responderam afirmativamente e gravaram a base para a canção em um só take. Ficamos lá até o final da tarde, quando soubemos que haveria um show de música caribenha na Pedro Arcanjo. Fomos até a praça e antes mesmo de o show começar, conhecemos duas gringas: uma da Macedônia e outra dos Estados Unidos. Ficamos conversando um pouco e elas disseram que estavam hospedadas no Hotel Meson. Pensei que poderia fazer uma campana VIP.
Acordamos com o som de uma voz pelo megafone. As meninas estavam indo para Morro de São Paulo e haviam até nos convidado, mas por nada nesse mundo perderíamos a filmagem. Nos despedimos delas e fomos até o largo que agora estava abarrotado e cercado por uma barreira de policiais. Quando fomos passar, um deles nos perguntou:
– Vocês são moradores?!
Olhei para Mussa e sem pestanejar respondi.
– Na verdade, estamos hospedados no Meson e nossas namoradas foram para Morro de São Paulo…
– Bem, se estão hospedados, tudo bem…podem passar.
Quando vimos, sem muito esforço, estávamos dentro da locação do videoclipe de “They don’t care about us”. Comemoramos discretamente e ficamos próximo ao Bar de Sergipe, uma vista privilegiada. As pessoas choravam, gritavam e cantavam as músicas. Então percebemos uma movimentação estranha de policiais e da equipe de filmagem. Eis que surgia, usando óculos escuros, jeans e uma camiseta vermelha do Olodum, o maior artista de todos os tempos. As tomadas começaram a ser feitas e de repente uma senhora meio alourada quebrou a barreira de segurança e deu um abraço em Michael Jackson. Quando outras pessoas tentaram fazer o mesmo, a polícia começou a agir e ele caiu no chão. Todos fizeram aquele “Ooooh..”, até que ele foi ajudado a se levantar e continuou a gravar como se nada tivesse acontecido. Foi uma chuva de palmas e assovios.
Minha cabeça estava um verdadeiro caos. Estava a poucos metros do maior ídolo de minha vida, mas não poderia sequer tocá-lo. Foi então que tive uma ideia para chamar a sua atenção. Comecei a gritar repetidamente a plenos pulmões:
– Michael, I have some kids for you!! Michael, I have some kids for you!!
Mussa começou a rir da minha ideia. O artista não me deu a mínima bola. De chofre, surgiu próximo de mim um neguinho de cavanhaque, usando óculos de sol com lentes azuis, com uma mochila nas costas e vestido com bermuda e uma camisa da seleção brasileira. De repente, ele olhou para mim e começou a gritar:
– What the fuck ya talkin’ about? Ya crazy, motherfucker?!
Como toda ação provoca uma reação, retruquei:
– What?! Go fuck yourself, you little ass nigga! Suck my dick, you piece of shit!
Ele, então, olhou para uns seguranças e ordenou:
– Take this motherfucker outta here! Right now!
Os seguranças me pegaram pelo cinto, me levantaram e começaram a me retirar do local de filmagem. Mussa estava me seguindo e notei que ele não parava de gargalhar. Quando me largaram na entrada do Bar de Neuzão, eu já me preparava para me levantar e perguntar a Mussa do que ele ria tanto, como se ele nunca tivesse sido expulso de bares, festas, shows, jogos de futebol e afins, mas, antes de eu proferir palavra, ele foi mais rápido:
– Véeeeeeiiii, cê sabe com quem CÊ tava batendo boca?!
– A porra de um neguinho ousado da desgraça…um tamborete de puta daqueles…
– Aquele tamborete de puta era Spike Lee, velho! Você tava batendo boca com Spike Lee, man! Spike Lee, cara!
Kaw Malangue é escritor, roteirista, músico, designer e ludopedista. Também atua como professor de inglês e português.